Cobrança legal

Conheça o voto de Gilmar Mendes sobre a contribuição dos inativos

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19 de outubro de 2004, 12h26

“Não vejo qualquer obstáculo a que seja estabelecido, no âmbito da contribuição previdenciária, uma disciplina legislativa assemelhada àquela prevista para o imposto de renda, com o estabelecimento de isenções a partir da identificação de situações singulares que justifiquem tal benefício”. O entendimento é do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que votou a favor da cobrança de contribuição dos inativos, em agosto deste ano.

No julgamento, o STF declarou constitucional a cobrança do desconto de 11% de aposentados e pensionistas. O placar da vitória foi de 7X4. A decisão não afastou a contribuição porém, aumentou o limite de isenção dos inativos para R$ 2,5 mil.

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes lembrou que o STF já havia se pronunciado no sentido da legitimitidade da cobrança de contribuição social dos inativos e pensionistas antes da reforma constitucional de 1998.

” Assim foi ementada a decisão cautelar proferida nos autos da ADI 1.441-DF: Extensão, aos proventos dos servidores públicos inativos, da incidência de contribuição para o custeio da previdência social. Insuficiente relevância, em juízo provisório e para fins de suspensão liminar, de argüição de sua incompatibilidade com os artigos 67; 195, II; 40, § 6o; 194, IV e 195, §§ 5o e 6o, todos da Constituição Federal. Medida cautelar indeferida, por maioria.” (Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 18.10.96)”.

Leia a íntegra do voto

18/08/2004 TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.105-8 DISTRITO FEDERAL

VOTO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – RELATOR:

Introdução: Interpretação do texto constitucional anterior à Emenda 41

Com a instituição da contribuição dos inativos, pela Emenda Constitucional no 41, de iniciativa do Governo Lula, e o ajuizamento da presente ação direta a impugnar a referida Emenda, na parte em que institui a contribuição dos inativos, esta Corte novamente está diante de questão bastante sensível e que tem gerado debates acalorados na sociedade brasileira.

As críticas à contribuição dos inativos são amplamente conhecidas. E obviamente não se pode menoscabar, além de uma questão jurídica relevante, a ser decidida por esta Corte, o impacto de tal medida no orçamento individual dos pensionistas e inativos. Mas, infelizmente, a nossa história eleitoral recente mostra um uso demagógico e irresponsável dessa perspectiva dos pensionistas e aposentados que, certamente, possuem interesse legítimo em contestar, pelas vias democráticas, tal como se verifica nas ações diretas em exame, esse novo ônus tributário. Faço tal observação apenas para registrar, nesse julgamento público, a par do papel desta Corte em proferir um julgamento a partir de critérios jurídico-constitucionais, uma expressa rejeição a uma utilização demagógica e “eleitoreira” de um pleito defendido por um setor expressivo da nossa sociedade.

Como já assinalei, o tema ora em discussão não é novo nesta Corte.

Este Tribunal, antes da reforma constitucional de 1998, já se havia pronunciado no sentido da legitimitidade da cobrança de contribuição social dos inativos e pensionistas. Assim foi ementada a decisão cautelar proferida nos autos da ADI 1.441-DF:

“Extensão, aos proventos dos servidores públicos inativos, da incidência de contribuição para o custeio da previdência social.

Insuficiente relevância, em juízo provisório e para fins de suspensão liminar, de argüição de sua incompatibilidade com os artigos 67; 195, II; 40, § 6o; 194, IV e 195, §§ 5o e 6o, todos da Constituição Federal. Medida cautelar indeferida, por maioria.” (Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 18.10.96).

Esse entendimento foi ratificado na ADI 1.430 (Rel. Min. Moreira Alves, DJ 13.12.96).

Em ambas as decisões, asseverou o Tribunal que não só o art. 40, § 6o, que estabelecia a possibilidade de instituição de contribuição social sobre a remuneração, mas também o art. 40, § 4o, que determinava a revisão compulsória dos proventos dos inativos sempre que houvesse alteração dos vencimentos do pessoal ativo, tornavam legítima a instituição de contribuição social para os servidores inativos e pensionistas.

Sobre essas decisões, assim nos manifestamos juntamente com o Prof. Ives Gandra Martins: “Fica evidente que aqui o Tribunal atribuiu pouco significado à ‘letra da lei’, optando claramente por uma interpretação contextualizada e sistemática da letra constitucional.” (Contribuição dos inativos. Revista CONSULEX, a. III, n. 36, dez. 1999, p. 41).

Penso que a mesma exegese era aplicável a partir da promulgação da Emenda Constitucional no 20, de 1998. Com efeito, é insuficiente conjugar o disposto no art. 40, § 12 com o art. 195, II, numa incorporação mecânica e automática da disciplina do Regime Geral de Previdência Social, em tudo assimétrica, para afastar a possibilidade de cobrança de contribuição previdenciária dos inativos e pensionistas.


Asseveramos no mencionado texto:

“[…] Se considerarmos que o art. 40, caput, determina a instituição de um modelo contributivo de previdência do servidor público, que seu § 3o assegura o direito do servidor a se aposentar com base na última remuneração percebida na ativa (aposentadoria integral) e que o § 8o do aludido artigo, tal como o antigo § 4o da redação anterior, concede o direito de revisão dos proventos toda vez que houver alteração da remuneração do pessoal da ativa, temos de reconhecer que haveria elementos suficientes para manter a jurisprudência firmada em 1996. Até porque os regimes de aposentadoria dos servidores públicos e o regime geral de Previdência Social continuam antes e depois da revisão constitucional marcadamente distintos. Enquanto os servidores públicos gozam dos benefícios já referidos, com direito à aposentadoria integral e à elevação real do valor dos proventos, os beneficiários do regime da Previdência Social estão submetidos a um teto de R$ 1.200 e fazem jus a reajustes apenas a recompor o valor real, nos termos do art. 14 da Emenda Constitucional no 20.”

Sem dúvida, a redação dada ao caput do art. 40 pela Emenda 20 assegurou aos servidores regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservassem o equilíbrio financeiro e atuarial. Essa imposição é reproduzida no caput do art. 201 da Constituição.

O princípio do “equilíbrio financeiro e atuarial” contém basicamente duas exigências. A primeira impõe que as receitas sejam no mínimo equivalentes aos gastos, e aqui temos o denominado equilíbrio financeiro. A segunda exigência, relativa ao equilíbrio atuarial, determina a adoção de correlação entre os montantes com que contribuem os segurados e os valores que perceberão a título de proventos e pensões.

No que se refere ao equilíbrio atuarial, portanto, exige-se uma correlação entre os montantes relativos à contribuição e ao benefício. Ocorre que a Constituição já dispõe sobre o valor dos benefícios previdenciários dos servidores públicos. Assim, para se cumprir o mandamento constitucional de preservação do mencionado equilíbrio, reconhecido inclusive por este Supremo Tribunal Federal (ADIn’s 2.110 e 2.111, Rel. Min. Sydney Sanches, Informativo no 181), resta ao Estado tão-somente disciplinar a questão da contribuição. Todavia, o valor da contribuição incidente sobre a remuneração dos servidores em atividade não poderia implicar confisco, nem assumir valores exorbitantes, tornando insustentável a vida financeira do indivíduo.

Com efeito, existem evidentes limites factuais e normativos para a elevação das alíquotas das contribuições previdenciárias dos servidores em atividade. Destarte, evidencia-se a importância de que todos os beneficiários do regime de previdência social do servidor público, inclusive os servidores inativos, concorram para a solidez e manutenção do sistema previdenciário, assegurando-lhe tanto o equilíbrio financeiro entre receitas e despesas quanto o equilíbrio atuarial entre contribuições e benefícios.

Ademais, a Constituição, anteriormente à Emenda 41, ao empregar o termo genérico “servidor”, ao meu ver, já abrangia tanto os servidores ativos como os inativos, tanto que quando o constituinte intentou alguma diferenciação, a ofereceu expressamente, como de fato o fez no art. 40, § 8o, em sua redação anterior à Emenda 41, que se referia aos “servidores em atividade”. Assim também o art. 20 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ao aludir explicitamente aos “servidores públicos inativos”.

Nesse sentido, vale transcrever trecho do voto do Relator, Ministro Carlos Velloso no julgamento do RE 163.204-6:

“De fato. A aposentadoria encontra disciplina na Constituição e nas leis dos servidores públicos. A Constituição estabelece os casos de aposentadoria e o tempo de serviço necessário à sua obtenção (CF, art. 40), estabelecendo, mais, que ‘os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação de cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei’ (art. 40, § 4o [atual art. 40, § 8o, que, inclusive estendeu para aposentados e pensionistas]) […] Os servidores públicos aposentados não deixam de ser servidores públicos: são como bem afirmou Haroldo Valadão, servidores públicos inativos. A proibição de acumulação de vencimentos com proventos decorre, na realidade, de uma regra simples: é que os vencimentos, que são percebidos pelos servidores públicos ativos, decorrem de um exercício atual do cargo, enquanto os proventos dos aposentados decorrem de um exercício passado. Ambos, entretanto, vencimentos e proventos, constituem remuneração decorrentes do exercício — atual ou passado — de cargos públicos, ou de empregos e funções em autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações mantidas pelo poder público (CF, art. 37, XVI e XVII, e art. 40). Por isso mesmo, essa acumulação de vencimentos e proventos incide na regra proibitiva, porque ambos — vencimentos e proventos — constituem remuneração decorrente do exercício de cargo público. E a Constituição, no artigo 37, XVI, ao estabelecer que ‘é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos’, observadas as exceções por ela previstas, está justamente vedando a acumulação remunerada decorrente do exercício de cargos públicos.” (julg. 09.11.94, DJ 31.03.95, p. 07779).


O § 1o do art. 149 da Constituição, na redação anterior à Emenda 41, também não diferenciava entre as espécies de servidores, razão pela qual também se sustentou, antes da Emenda 41, a inexistência de óbice a que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituíssem contribuição previdenciária sobre os proventos dos seus servidores inativos. Tal entendimento, cabe lembrar, também não foi acolhido por esta Corte.

Outrossim, da leitura das normas inseridas pela Emenda Constitucional no 20, de 1998, constatou-se que o constituinte derivado manteve a equiparação entre tratamento dispensado aos servidores em atividade e aquele dos servidores inativos e pensionistas. É o que se extrai do aludido § 8o do art. 40, bem como dos §§ 3o e 7o do mesmo dispositivo, em sua redação anterior à Emenda 41.

Igualado o tratamento entre servidores ativos e inativos e estabelecido um regime de caráter contributivo, não havia, ao meu ver, já no regime anterior à Emenda 41, obstáculo constitucional à instituição de contribuição previdenciária aos servidores aposentados, sob pena de violação ao princípio da isonomia, com repercussões imensuráveis ao equilíbrio do regime de previdência dos servidores públicos, como de fato tem-se verificado.

Da assimetria entre os regimes previdenciários constitucionalmente previstos

Poder-se-ia argumentar que a combinação do estabelecido no art. 40, § 12 com o art. 195, II, teria concedido imunidade à cobrança de contribuição previdenciária dos inativos. Esse, na verdade, é um argumento formulado antes da edição da Emenda 41 e que ora se renova. Ocorre que o regime de previdência dos servidores públicos não se confunde com regime geral de Previdência Social, regulado no art. 201, disciplinados em distintas passagens do texto constitucional.

Este Egrégio Tribunal já reconhecia a diversidade dos regimes quando do julgamento da mencionada ADIn 1.441-DF, na qual assim se manifestou o Ministro Relator:

“Ao contrário dos trabalhadores na iniciativa privada, que nenhum liame conservam com os seus empregadores após a rescisão do contrato de trabalho pela aposentadoria, preservam os servidores aposentados um remarcado vínculo de índole financeira, com a pessoa jurídica de direito público para que hajam trabalhado.

Não é por outro motivo que interdições, tais como a imposição do teto de remuneração e as proibições de vinculação ou equiparação de vencimentos do cômputo de acréscimos pecuniários percebidos ao mesmo título, bem como a de acumulação remunerada (incisos XI, XIII, XIV e XVI do art. 37 da Constituição [com a EC no 20, de 1998, tais incisos mantiveram a mesma numeração, com algumas alterações de conteúdo]), são por igual aplicáveis tanto aos servidores ativos como aos inativos, no silêncio da Constituição.

Essa perfeita simetria, entre vencimentos e proventos, é realçada pela disposição do § 4° do art. 40 da Constituição:

[transcreve a redação do art. 40 do § 40, atual § 8°]

Contraste-se essa norma, concernente aos servidores públicos, com a do art. 201, § 2°, destinada aos segurados do regime geral da Previdência Social, e ver-se-á que, enquanto para estes últimos é somente estatuída a preservação do valor real do benefício original, são àqueles estendidos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos funcionários em atividade, e até mesmo decorrentes de transformação ou reclassificação do cargo ou função.”

E arremata o eminente Ministro Octavio Gallotti:

“Dita correlação, capaz de assegurar aos inativos aumentos reais, até os motivados pela alteração das atribuições do cargo em atividade, compromete o argumento dos requerentes, no sentido de que não existiria causa eficiente para a cobrança de contribuicões de aposentado, cujos proventos são suscetíveis, como se viu, de elevacão do próprio valor intrínseco, não apenas da sua representacão monetária, como sucede com os trabalhadores em geral.” [sem grifos no original]

Essa é a interpretação que considero adequada, já a partir da EC n° 20, de 1998. O art. 40, § 12 dispõe que ao regime de previdência dos servidores públicos aplicam-se, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social. Essa aplicação subsidiária das regras deste regime, portanto, só é possível se compatível com as prescrições daquele. Ora, uma vez que as vantagens percebidas pelo servidor aposentado em muito se afastam das do beneficiário do regime geral de previdência social, pelas razões já expostas, não é minimamente razoável a tese da absoluta impossibilidade de cobrança de contribuição previdênciária dos servidores inativos, implicando uma ampliação ainda maior das desigualdades entre os beneficiários dos dois sistemas. Equiparam-se situações jurídicas manifestamente desiguais.


Na oportunidade daquele referido estudo, chegamos a propor, caso fosse reconhecida a aplicação do inciso II do art. 195, isentando-se os servidores inativos e pensionistas, haveria de se ressalvar que tal só se impõe até o limite vigente para os benefícios da Previdência Social. Caso contrário, conforme enfatizávamos, “o não-estabelecimento dessa ressalva produz um resultado altamente insatisfatório, que não se compatibiliza com o princípio central da igualdade e com o postulado da justiça social constantes do texto constitucional”, levando a uma “soma de felicidades”.

A Emenda 41

A decisão cautelar proferida por esta Corte nos autos da ADI 2010, no sentido de suspender disposição legal que previa a contribuição de inativos por certo remeteu o Poder Executivo a conceber nova emenda à Constituição.

Assim, o Governo Lula logrou a aprovação da ora discutida Emenda à Constituição, com expressa previsão da contribuição previdenciária dos inativos.

Renovam-se, aqui, as impugnações relativas à constitucionalidade da contribuição. Tal como já expus, já não vislumbraria inconstitucionalidade caso a contribuição tivesse sido fixada em lei. Cabe, todavia, refutar os argumentos que se renovam, agora acrescidos da alegada violação a cláusulas pétreas.

Desde logo gostaria de assentar que, ainda que se considerasse que a Emenda 20 teria criado uma imunidade (antes certamente não havia), o tema não teria por isso status de cláusula pétrea, uma vez que foi introduzido por emenda constitucional.

Passo a análise das impugnações, sob a perspectiva de violação a cláusulas pétreas.

Interpretação das cláusulas pétreas

Cláusulas Pétreas: Natureza e Significado

Uma concepção conseqüente da idéia de soberania popular deveria admitir que a Constituição pode ser alterada a qualquer tempo por decisão do povo ou de seus representantes. Evidentemente, tal entendimento levaria a uma instabilidade da Constituição, a despeito das cautelas formais estabelecidas para uma eventual mudança.

Tal como apontado por Jorge Miranda, são três as concepções básicas sobre as chamadas “Cláusulas Pétreas” ou limites materiais da revisão: “a dos que os aceitam ou que os tomam mesmo como imprescindíveis e insuperáveis; a daqueles que impugnam a sua legitimidade ou a sua eficácia jurídica; e a daqueles que, admitindo-os, os tomam apenas como relativos, porventura sucetíveis de remoção através de dupla revisão ou de duplo processo de revisão”(1).

Dentre os expoentes do ceticismo em relação às cláusulas pétreas — ou pelo menos, em relação à sua eficácia — há de ser mencionado Karl Loewenstein (2).

Outros, como Biscaretti de Ruffia, admitem que os limites explícitos podem ser superados mediante processo de emenda constitucional, em duas etapas: a primeira, destinada a derrogar a norma proibitiva; a segunda, levada a efeito com o propósito de instituir as reformas pretendidas(3).

Não se nega, como referido, que uma concepção radical da idéia de soberania popular deveria admitir que a Constituição poderia ser alterada a qualquer tempo por decisão do povo ou de seus representantes(4).

Tal entendimento permitiria questionar, porém, o próprio significado da Constituição enquanto ordem jurídica fundamental de toda a Comunidade (rechtliche Grundordnung des Gemeinswesens)(5). A Constituição somente poderá desempenhar essa função — acentua Hesse — se puder estabelecer limites materiais e processuais(6).

Restam evidenciadas aqui a permanente contradição e a inevitável tensão entre o poder constituinte originário, que legitima a alteração da Constituição ou, até mesmo, a substituição de uma ordem constitucional por outra, e a vocação de permanência desta, que repugna mudanças substanciais(7).

Do prisma teórico, o problema dos limites materiais da revisão constitucional foi seriamente contemplado por Carl Schmitt, na sua Verfassungslehre (Teoria da Constituição, 1928).

A problemática assentar-se-ia, segundo Schmitt, na distinção entre constituinte (Verfassungsgeber = Schöpfer der Verfassung) e legislador constituinte (Verfassungsgezetzgeber = Gesetzgeber über die Verfassung).

Schmitt enfatizava que a modificação de uma Constituição não se confunde com sua abolição, acrescentando com base no exemplo colhido do art. 2o da Lei Constitucional francesa, de 14 de agosto de 1884 (La forme républicaine du Government ne peut faire l’objet d”une proposition de revision”):

“Si por una expresa prescripción legal-constitucional se prohíbe una cierta reforma de la Constitución, esto no es más que confirmar tal diferencia entre revisión y supresión de la Constitución”(8).

Portanto, para Schmitt não se fazia mister que a Constituição declarasse a imutabilidade de determinados princípios.


É que a revisão não poderia, de modo algum, afetar a continuidade e a identidade da Constituição:

“Los límites de la facultad de reformar la Constitución resultan del bien entendido concepto de reforma constitucional. Una facultad de “reformar la Constitución, atribuída por una normación legal-constitucional, significa que una o varias regulaciones legal-constitucionales pueden ser sustituidas por otras regulaciones legal-constitucionales, pero sólo bajo el supuesto de que queden garantizadas la identidad y contituidad de la Constitución considerada como un todo (…)”(9).

Vê-se, assim, que não só os princípios gravados, eventualmente, com a cláusula de imutabilidade, mas também outras disposições — inclusive aquelas relativas ao processo de revisão constitucional — não poderiam ser alterados sem afetar a identidade e a continuidade da Constituição.

A concepção de Schmitt relativiza um pouco o valor exclusivo da declaração do constituinte originário sobre a imutabilidade de determinados princípios ou disposições, atribuindo-lhe quase conteúdo declaratório.

Tais cláusulas devem impedir, todavia, não só a supressão da ordem constitucional(10), mas também qualquer reforma que altere os elementos fundamentais de sua identidade histórica(11).

É verdade que importantes autores consideram risíveis os resultados práticos de tais cláusulas, diante de sua falta de eficácia em face de eventos históricos como os golpes e as revoluções(12).

Isto não deve impedir, porém, que o constituinte e os órgãos constitucionais procurem evitar a ocorrência de tais golpes. Certo é que tais proibições dirigidas ao poder de revisão constituem um dos instrumentos de proteção da Constituição(13).

Bryde destaca que as idéias de limites materiais de revisão e cláusulas pétreas expressamente consagrados na Constituição podem estar muito próximas. Se o constituinte considerou determinados elementos de sua obra tão fundamentais que os gravou com cláusulas de imutabilidade, é legítimo supor que nelas foram contemplados os princípios fundamentais(14). Nesse sentido, a disposição contida no art. 79, III, da Lei Fundamental, poderia ser considerada, em grande parte, de caráter declaratório.

Em qualquer hipótese, os limites do poder de revisão não se restringem, necessariamente, aos casos expressamente elencados nas garantias de eternidade. Tal como observado por Bryde, a decisão sobre a imutabilidade de determinado princípio não significa que outros postulados fundamentais estejam submetidos ao poder de revisão(15).

O efetivo significado dessas cláusulas de imutabilidade na práxis constitucional não está imune a controvérsias. Se se entender que elas contêm uma “proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais” (Verfassungsprinzipiendurchbrechungsverbot), tem-se de admitir que o seu significado é bem mais amplo do que uma proibição de revolução ou de destruição da própria Constituição (Revolutions- und Verfassungsbeseitigungsverbot). É que, nesse caso, a proibição atinge emendas constitucionais que, sem suprimir princípios fundamentais, acabam por lesá-los topicamente, deflagrando um processo de erosão da própria Constituição(16).

A Corte constitucional alemã foi confrontada com esta questão na controvérsia sobre a constitucionalidade de emenda que introduzia restrição à inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas e telegráficas, à revelia do eventual atingido, vedando, nesses casos, o recurso ao Poder Judiciário (Lei Fundamental, art. 10, II, c/c o art. 19, IV).

Nessa decisão do Bundesverfassungsgericht, de 1970, sustentou-se que a disposição contida no art. 79, III, da Lei Fundamental, visa a impedir que “a ordem constitucional vigente seja destruída, na sua substância ou nos seus fundamentos, mediante a utilização de mecanismos formais, permitindo a posterior legalização de regime totalitário”(17).

Essa interpretação minimalista das garantias de eternidade foi amplamente criticada na doutrina, uma vez que, na prática, o Tribunal acabou por consagrar uma atitude demissionária, que retira quase toda a eficácia daquelas disposições. A propósito dessa decisão, vale registrar a observação de Bryde:

“Enquanto a ordem constitucional subsistir, não será necessário que o Bundesverfassungsgericht suspenda decisões dos órgãos de representação popular tomadas por 2/3 de votos. Já não terá relevância a opinião do Tribunal numa situação política em que princípios fundamentais contidos no art. 79, III sejam derrogados”(18).

Não há dúvida, outrossim, de que a tese que vislumbra nas garantias de eternidade uma “proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais” (Verfassungsprinzipiendurchbrechungverbot) não parece merecer reparos do prisma estritamente teórico.


Não se cuida de uma autovinculação (Selbstbindung) do constituinte, até porque esta somente poderia ser admitida no caso de identidade entre o constituinte e o legislador constituinte ou, em outros termos, entre o detentor do poder constituinte originário e derivado. Ao revés, é a distinção entre os poderes constituintes originário e derivado que permite afirmar a legitimidade do estabelecimento dessa proibição(19).

Não se pode negar, porém, que a aplicação ortodoxa dessas cláusulas, ao invés de assegurar a continuidade do sistema constitucional, pode antecipar a sua ruptura, permitindo que o desenvolvimento constitucional se realize fora de eventual camisa de força do regime da imutabilidade.

Aí reside o grande desafio da jurisdição constitucional: não permitir a eliminação do núcleo essencial da Constituição, mediante decisão ou gradual processo de erosão, nem ensejar que uma interpretação ortodoxa ou atípica acabe por colocar a ruptura como alternativa à impossibilidade de um desenvolvimento constitucional legítimo.

As questões que envolvem as cláusulas pétreas, conforme expus, são objeto desse intenso debate doutrinário, a evidenciar sua marcante complexidade. Admiti-las, por certo, implica uma restrição significativa à atividade legislativa ordinária e mesmo ao Poder Constituinte Derivado. Mas tal como estão postas em nosso sistema as restrições à reforma constitucional, não vislumbro uma restrição insuperável ao exercício da democracia parlamentar. As possibilidades da atividade legislativa ordinária ou reformadora, ainda que dentro dos limites constitucionais à revisão, são muito amplas. O que há, por certo, ao nos atermos às restrições impostas pelo Constituinte Originário à reforma constitucional, é um dever de consistência nas formulações que procuram justificar a compatibilidade de determinada alteração constitucional com as cláusulas de imutabilidade.

Direito adquirido e irredutibilidade de vencimentos

Um dos argumentos recorrentes é o da suposta violação ao direito adquirido. Esse argumento agora vem reforçado com a perspectiva de cláusula pétrea.

A discussão sobre direito intertemporal assume delicadeza ímpar, entre nós, tendo em vista a disposição constante do art. 5o, inciso XXXVI, da Constituição, que reproduz norma tradicional do direito brasileiro. Desde 1934, e com a exceção da Carta de 1937, todos os textos constitucionais brasileiros têm consagrado cláusula semelhante.

Como se sabe, a definição de retroatividade foi objeto de duas doutrinas principais – direito adquirido e fato passado ou fato realizado – como ensina João Baptista Machado:

“a doutrina dos direitos adquiridos e doutrina do facto passado. Resumidamente, para a primeira doutrina seria retroactiva toda a lei que violasse direitos já constitutídos (adquiridos); para a segunda seria retroactiva toda lei que se aplicasse a factos passados antes de seu início de vigência. Para a primeira a Lei nova deveria respeitar os direitos adquiridos, sob pena de retroatividade; para a segunda a lei nova não se aplicaria (sob pena de retroatividade) a fatos passados e aos seus efeitos (só se aplicaria a factos futuros)”.(20)

A doutrina do fato passado é também chamada teoria objetiva; a teoria do direito adquirido é chamada teoria subjetiva.

Na lição de Moreira Alves, domina, na nossa tradição, a teoria subjetiva do direito adquirido. É o que se lê na seguinte passagem do voto proferido na ADI 493, verbis:

“Por fim, há de salientar-se que as nossas Constituições, a partir de 1934, e com exceção de 1937, adotaram desenganadamente, em matéria de direito intertemporal, a teoria subjetiva dos direitos adquiridos e não a teoria objetiva da situação jurídica, que é a teoria de ROUBIER. Por isso mesmo, a Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942, tendo em vista que a Constituição de 1937 não continha preceito da vedação da aplicação da lei nova em prejuízo do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, modificando a anterior promulgada com o Código Civil, seguiu em parte a teoria de ROUBIER, e admitiu que a lei nova, desde que expressa nesse sentido, pudesse retroagir. Com efeito, o artigo 6o rezava: “A lei em vigor terá efeito imediato e geral. Não atingirá, entretanto, salvo disposição expressa em contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfeito”. Com o retorno, na Constituição de 1946, do princípio da irretroatividade no tocante ao direito adquirido, o texto da nova Lei de Introdução se tornou parcialmente incompatível com ela, razão por que a Lei no 3.238/57 o alterou para reintroduzir nesse artigo 6o a regra tradicional em nosso direito de que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Como as soluções, em matéria de direito intertemporal, nem sempre são coincidentes, conforme a teoria adotada, e não sendo, a que ora está vigente em nosso sistema jurídico a teoria objetiva de ROUBIER, é preciso ter cuidado com a utilização indiscriminada dos critérios por estes usados para resolver as diferentes questões de direito intertemporal”.(21)


É certo, outrossim, que a dimensão constitucional que se confere ao princípio do direito adquirido, entre nós, não permite que se excepcionem da aplicação do princípio as chamadas regras de ordem pública.

Como destacado por Moreira Alves, há muito Reynaldo Porchat questionava a correção desse entendimento, conforme se lê nas seguintes passagens de sua obra:

“Uma das doutrinas mais generalizadas e que de longo tempo vem conquistando foros de verdade, é a que sustenta que são retroativas as “leis de ordem pública” ou as “leis de direito público”. Esse critério é, porém, inteiramente falso, tendo sido causa das maiores confusões na solução das questões de retroatividade. Antes de tudo, cumpre ponderar que é dificílimo discriminar nitidamente aquilo que é de ordem pública e aquilo que é de ordem privada. No parágrafo referente ao estudo do direito público e do direito privado, já salientamos essa dificuldade, recordando o aforisma de Bacon – “jus privatum sub tutela juris publici latet”. O interesse público e o interesse privado se entrelaçam de tal forma, que as mais das vezes não é possível separá-los. E seria altamente perigoso proclamar como verdade que as leis de ordem pública ou de direito público têm efeito retroativo, porque mesmo diante dessas leis aparecem algumas vezes direitos adquiridos, que a justiça não permite que sejam desconhecidos e apagados. O que convém ao aplicador de uma nova lei de ordem pública ou de direito público, é verificar se, nas relações jurídicas já existentes, há ou não direitos adquiridos. No caso afirmativo a lei não deve retroagir, porque a simples invocação de um motivo de ordem pública não basta para justificar a ofensa ao direito adquirido, cuja inviolabilidade, no dizer de Gabba, também um forte motivo de interesse público”.(22)

Na mesma linha, é a lição de Pontes de Miranda, ao afirmar:

“A regra jurídica de garantia é, todavia, comum ao direito privado e ao direito público. Quer se trate de direito publico, quer se trate de direito privado, a lei nova não pode ter efeitos retroativos (critério objetivo), nem ferir direitos adquiridos (critério subjetivo), conforme seja o sistema adotado pelo legislador constituinte. Se não existe regra jurídica constitucional de garantia, e sim, tão-só, regra dirigida aos juízes, só a cláusula de exclusão pode conferir efeitos retroativos, ou ofensivos dos direitos adquiridos, a qualquer lei”.(23)

Não discrepa dessa orientação Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao enfatizar que o problema da irretroatividade é comum ao direito público e ao direito privado.(24)

Daí concluir Moreira Alves que o princípio do direito adquirido “se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva”.(25)

Nesse sentido é o voto por ele proferido na Representação de Inconstitucionalidade no 1.451, verbis:

“Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos – apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal – de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é vedado constitucionalmente”.(26)

Fica evidente que a natureza constitucional do princípio não permite a distinção sobre eventual retroatividade das leis de ordem pública muito comum em países nos quais o princípio da não retroatividade é mera cláusula legal.

Direito adquirido a estatuto ou instituto jurídico

Mas há aqui uma questão que precisa ser considerada.

As duas principais teorias sobre aplicação da lei no tempo – a teoria do direito adquirido e a teoria do fato realizado, também chamada do fato passado(27) – rechaçam, de forma enfática, a possibilidade de subsistência de situação jurídica individual em face de uma alteração substancial do regime ou de um estatuto jurídico.(28)

Assim, sustentava Savigny que as leis concernentes aos institutos jurídicos outorgam aos indivíduos apenas uma qualificação abstrata quanto ao exercício do direito e uma expectativa de direito quanto ao ser ou ao modo de ser do direito.(29) O notável jurisconsulto distinguia duas classes de leis: a primeira, concernente à aquisição de direito; a segunda, relativa à existência de direitos.(30) Afigura-se digna de registro a lição de Savigny a propósito, verbis:

“A primeira, concernente à aquisição de direitos, estava submetida ao princípio da irretroatividade, ou seja, à manutenção dos direitos adquiridos. A segunda classe de normas, que agora serão tratadas, relacionam-se à existência de direitos, onde o princípio da irretroatividade não se aplica. As normas sobre a existência de direitos são, primeiramente, aquelas relativas ao contraste entre a existência ou a não existência de um instituto de direito: assim, as leis que extinguem completamente uma instituição e, ainda, aquelas que, sem suprimir completamente um instituto modificam essencialmente sua natureza, levam, desde então, no contraste, dois modos de existência diferentes. Dizemos que todas essas leis não poderiam estar submetidas ao princípio da manutenção dos direitos adquiridos (a irretroatividade); pois, se assim fosse, as leis mais importantes dessa espécie perderiam todo o sentido”.(31)


Deveriam ser, portanto, de imediata aplicação, as leis que abolissem a escravidão, redefinissem a propriedade privada, alterassem o estatuto da vida conjugal ou da situação dos filhos.(32)

Essa orientação foi retomada e desenvolvida por Gabba, segundo o qual somente existia direito adquirido em razão dos institutos jurídicos com referência às relações deles decorrentes, jamais, entretanto, relativamente aos próprios institutos.(33)

Nesse sentido, assinala o emérito teórico, verbis:

“Como dissemos inicialmente, nós temos direitos patrimoniais privados em relação aos quais o legislador tem liberdade de editar novas disposições de aplicação imediata, independentemente de qualquer obstáculo decorrente do princípio do direito adquirido. Esses são: 1o) direitos assegurados aos entes privados, graças exclusivamente à lei, como seriam a propriedade literária e a propriedade industrial; 2o) direitos, que não são criados pelo legislador, e aqueles direitos que, desenvolvidos por efeito da liberdade natural do trabalho e do comércio, têm uma vinculação especial e direta com o interesse geral e estão sujeitos a limites, condições e formas estabelecidas pelo legislador, como, v.g., o direito de caça, de pesca, o direito de propriedade sobre florestas e minas e o direito de exigir o pagamento em uma outra espécie de moeda. Não há dúvida de que, como já tivemos oportunidade de advertir (p.48-50), a lei nova sobre propriedade literária e industrial aplica-se não só aos produtos literários e às invenções anteriormente descobertas, como àquelas outras desenvolvidas após a promulgação da lei; e assim aplica-se imediatamente toda lei nova sobre caça, pesca, propriedade florestal ou sobre o sistema monetário”.(34)

O tema é contemplado, igualmente, por Roubier, que distingue, em relação às leis supressivas ou modificativas de institutos jurídicos, aquelas leis que suprimem uma situação jurídica para o futuro sem afetar as relações jurídicas perfeitas ou consolidadas daqueloutras que não só afetam a situação jurídica como também os seus efeitos.(35)

“Ora, as regras que nos guiaram até aqui, nos conduzirão facilmente à solução: ou a lei é uma lei de dinâmica jurídica, que visa mais os meios de alcançar uma determinada situação do que a própria situação em si, nesse sentido, é uma lei de constituição – ela respeitará as situações já estabelecidas; ou a lei é uma lei de estática jurídica, que visa mais o estado ou a situação em si do que os meios pelos quais ela se constitui, assim, é uma lei relativa aos efeitos de uma situação jurídica, ela se aplica desde o dia da entrada em vigor, sem se aplicar retroativamente às situações já existentes”(36).

Adiante, ressalta o mestre de Lyon, verbis:

“As leis que aboliram a escravidão ou os direitos feudais puderam aplicar-se às situações existentes, sem que tenham sido retroativas. E, com efeito, pouco importava o modo de aquisição do direito: o que a lei censurava era o regime jurídico do escravo, o conteúdo do direito feudal: a lei era, então, relativa aos efeitos da situação jurídica, e não à sua constituição; sem retroagir, ela atingiu as situações já constituídas”.(37)

Sistematizando esse entendimento, formula Roubier o seguinte resumo de sua tese, verbis:

“Em suma, diríamos que as leis que suprimem uma situação jurídica podem visar ou o meio de alcançar esta situação – e aí são assimiláveis pelas leis que governam a constituição de uma situação jurídica -, ou, ao contrário, podem visar os efeitos e o conteúdo dessa situação – logo, elas são assimiláveis pelas leis que regem os efeitos de uma situação jurídica; no primeiro caso, as leis não poderiam atingir sem retroatividade situações já constituídas; no segundo, elas se aplicam, de imediato, às situações existentes para pôr-lhes fim”(38).

O problema relativo à modificação das situações subjetivas em virtude da mudança de um instituto de direito não passou despercebido a Carlos Maximiliano, que assinala, a propósito, em seu clássico O Direito Intertemporal, verbis:

“Não há direito adquirido no tocante a instituições, ou institutos jurídicos. Aplica-se logo, não só a lei abolitiva, mas também a que, sem os eliminar, lhes modifica essencialmente a natureza. Em nenhuma hipótese granjeia acolhida qualquer alegação de retroatividade, posto que, às vezes, tais institutos envolvam certas vantagens patrimoniais que, por eqüidade, o diploma ressalve ou mande indenizar”.(39)

Essa orientação básica, perfilhada por nomes de prol das diferentes correntes jurídicas sobre direito intertemporal, encontrou acolhida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Mencione-se, a propósito, a controvérsia suscitada sobre a resgatabilidade das enfiteuses instituídas antes do advento do Código Civil e que estavam gravadas com cláusula de perpetuidade. Em sucessivos pronunciamentos, reconheceu o Supremo Tribunal Federal que a disposição constante do art. 693 do Código Civil aplicava-se às enfiteuses anteriormente constituídas, afirmando, igualmente, a legitimidade da redução do prazo de resgate, levada a efeito pela Lei no 2.437, de março de 1955.(40)


Rechaçou-se, expressamente, então, a alegação de ofensa ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido.(41) Esse entendimento acabou por ser consolidado na Súmula 170 do Supremo Tribunal Federal (É resgatável a enfiteuse instituída anteriormente à vigência do Código Civil).

Assentou-se, pois, que a proteção ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito não obstava à modificação ou à supressão de determinado instituto jurídico.

Em acórdão mais recente, proferido no RE 94.020, de 4 de novembro de 1981, deixou assente a Corte, pela voz do eminente Ministro Moreira Alves, verbis:

“(…) em matéria de direito adquirido vigora o princípio – que este Tribunal tem assentado inúmeras vezes – de que não há direito adquirido a regime jurídico de um instituto de direito. Quer isso dizer que, se a lei nova modificar o regime jurídico de determinado instituto de direito (como é o direito de propriedade, seja ela de coisa móvel ou imóvel, ou de marca), essa modificação se aplica de imediato”.(42)

Esse entendimento foi reiterado pelo Supremo Tribunal Federal em tempos mais recentes.(43)

Em decisão proferida no RE no 226.855, o Supremo Tribunal Federal afirmou a natureza institucional do FGTS, como se lê na ementa do acórdão, igualmente da relatoria do Ministro Moreira Alves:

“Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS. Natureza jurídica e direito adquirido. Correções monetáriasdecorrentes dos planos econômicos conhecidos pela denominação Bresser, Verão, Collor I (no concernente aos meses de abril e de maio de 1990) e Collor II.

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), ao contrário do que sucede com as cadernetas de poupança, não tem natureza contratual, mas, sim, estatutária, por decorrer da Lei e por ela ser disciplinado.

Assim, é de aplicar-se a ele a firme jurisprudência

desta Corte no sentido de que não há direito adquirido a regime jurídico.

Quanto à atualização dos saldos do FGTS relativos aos Planos Verão e Collor I (este no que diz respeito ao mês de abril de 1990), não há questão de direito adquirido a ser examinada, situando-se a matéria exclusivamente no terreno legalinfraconstitucional.

No tocante, porém, aos Planos Bresser, Collor I (quanto ao mês de maio de 1990) e Collor II, em que a decisão recorrida se fundou na existência de direito adquirido aos índices de correção que mandou observar, é de aplicar-se o princípio de que não há direito adquirido a regime jurídico.

Recurso extraordinário conhecido em parte, e nela provido, para afastar da condenação as atualizações dos saldos do FGTS no tocante aos Planos Bresser, Collor I (apenas quanto à atualização no mês de maio de 1990) e Collor II”.(44)

Diante dessas colocações, rigorosamente calcadas nos postulados fundamentais do direito adquirido, poder-se-ia afirmar que muitas soluções legislativas fixadas pela lei nova acabariam por causar prejuízos diretos aos titulares de direitos nos casos específicos.

Embora possa apresentar relevância jurídica, essa colocação já não mais se enquadra nos estritos lindes do direito intertemporal. A propósito, já assentara Savigny que, nesse caso, o problema se desloca do âmbito do direito intertemporal para o plano da política legislativa.(45) Como observado, o emérito jurisconsulto recomendava que, por razões de eqüidade, deveria o legislador conceder uma compensação ao atingido pela providência. “A política e a economia política estarão plenamente satisfeitas”, sustentava Savigny, “se a liquidação desses direitos se efetivasse pela via da reparação, sem privilegiar uma parte às custas de outra”.(46)

Savigny permitiu desenvolver esse raciocínio em passagem memorável do “Traité de Droit Romain”, verbis:

“(…) a Inglaterra nos deu um grande exemplo de eqüidade, quando emancipou os escravos, indenizou, às custas do Estado, o prejuízo que seus proprietários tiveram. Esse objetivo é muito difícil de se alcançar, quando se trata de abolir os feudos e os fideicomissos; pois as pretensões e as expectativas, daqueles chamados à sucessão, são extremamente incertas. Pode-se tentar diminuir o prejuízo suspendendo por algum tempo a execução da lei (§ 399, o). Em diversos casos, uma indenização não é necessária; basta, no entanto, disciplinar a transição de forma a afastar ao máximo todo prejuízo possível. É o que foi feito em muitos casos onde o regime hipotecário prussiano substituiu o direito de garantia estabelecido pelo direito comum. Tratava-se unicamente de conservar para os antigos credores munidos de uma garantia seus direitos de preferência. Dessa forma, foram eles convocados publicamente a se apresentar em dentro de um determinado prazo para inscrever seus créditos nos novos registros hipotecários, na ordem estabelecida pela antiga lei”. (47)


Vê-se, assim, que o princípio constitucional do direito adquirido não se mostra apto a proteger as posições jurídicas contra eventuais mudanças dos institutos jurídicos ou dos próprios estatutos jurídicos previamente fixados.

E parece inegável que esse princípio se aplica de forma inequívoca às Emendas Constitucionais.

Diante da inevitável pergunta sobre a forma adequada de proteção dessas pretensões, tem-se como resposta indicativa que a proteção a ser oferecida há de vir do próprio direito destinado a proteger a posição afetada. Assim, se se trata de direito de propriedade ou de outro direito real, há que se invocar a proteção ao direito de propriedade estabelecida no texto constitucional. Se se tratar de liberdade de associação ou de outro direito de perfil marcadamente institucional, também há se invocar a própria garantia eventualmente afetada e não o princípio do direito adquirido.

É bem verdade que, em face da insuficiência do princípio do direito adquirido para proteger tais situações, a própria ordem constitucional tem-se valido de uma idéia menos precisa e, por isso mesmo mais abrangente, que é o princípio da segurança jurídica enquanto postulado do Estado de Direito.

Embora de aplicação mais genérica, o princípio da segurança jurídica traduz a proteção da confiança que se deposita na subsistência de um dado modelo legal (Schutz des Vertrauens)(48). A idéia de segurança jurídica tornaria imperativa a adoção de cláusulas de transição nos casos de mudança radical de um dado instituto ou estatuto jurídico. Daí porque se considera, em muitos sistemas jurídicos, que, em casos de mudança de regime jurídico, a ausência de cláusulas de transição configura uma omissão inconstitucional.

Nessa linha, afirma Canotilho que “o princípio da proteção da confiança justificará que o Tribunal Constitucional controle a conformidade constitucional de uma lei, analisando se era ou não necessária e indispensável uma disciplina transitória, ou se esta regulou, de forma justa, adequada e proporcionada, os problemas resultantes da conexão de efeitos jurídicos da lei nova a pressupostos – posições, relações, situações – anteriores e subsistentes no momento da sua entrada em vigor”.(49)

É certo que não há, aqui, uma omissão quanto ao estabelecimento de cláusulas de transição, o que certamente não impede o exame da constitucionalidade dessas mesmas cláusulas sob uma outra perspectiva.

De qualquer sorte, não cabe no caso em exame o argumento baseado no direito adquirido.

Quanto ao argumento da irredutibilidade, também não vejo consistência alguma. Fosse correto o argumento, nenhuma espécie tributária poderia ser majorada ou instituída. Registro, ainda, a existência de precedente sobre o tema, da relatoria do Ministro Gallotti, firmado na ADI 1441 (DJ 18.10.96).

Da alegada ausência de causa suficiente

Outro argumento que se coloca é da chamada “causa suficiente”.

O Ministério Público Federal reproduz, em seu parecer, argumento no sentido de uma alegada ausência de causa suficiente para a instituição da contribuição dos inativos. Para tanto, arrima-se em trecho da decisão proferida por esta Corte na ADI 2010, em que se teria assentado que “sem causa suficiente, não se justifica a instituição (ou majoração) da contribuição da seguridade social, pois, no regime de previdência de caráter contributivo, deve haver, necessariamente, correlação entre custo e benefício”.

Em primeiro lugar, não se afigura correta uma simples extensão desse entendimento firmado na ADI 2010, dirigido ao legislador infraconstitucional.

Não parece acertado pressupor, desde logo, que o legislador constituinte esteja vinculado, ao menos de um modo irrestrito, ao regime contributivo, ou ainda, a um modelo de completa correspondência entre contribuição e benefício. Não se nega, obviamente, que a Constituição almeja um sistema baseado especialmente na idéia do regime contributivo, em que os potenciais beneficiários, ao longo de sua vida profissional ativa, depositam recursos em um fundo que, no futuro, lhes devolverá tais recursos na forma de proventos de aposentadoria.

Essa de fato é a idéia básica e o princípio de natureza atuarial concebido para viabilizar a existência e a eficiência do sistema previdenciário.

Mas daí não se pode chegar à conclusão de que qualquer obrigação tributária para fins previdenciários deva ter no futuro um benefício que corresponda de um modo exato àquele ônus. Além da evidente inviabilidade prática desse tipo de percepção, não há exigência constitucional nesse sentido, e muito menos uma cláusula pétrea a estabelecer tal limitação específica. Não estou, obviamente, endossando entendimento no sentido de que qualquer ônus a ser estabelecido para os beneficiários da Previdência podem ser livremente fixados pelo legislador, ainda que legislador constituinte. Os parâmetros constitucionais de controle existem, inclusive as cláusulas pétreas. O que quero afastar desde logo é um argumento que com a devida vênia não parece ter esse amparo constitucional.


Isto porque, a par do caráter contributivo, vigora o princípio da solidariedade. Nesse sentido o preciso ensinamento de Luís Roberto Barroso, em parecer juntado aos autos, verbis:

“Uma das principais características do direito constitucional contemporâneo é a ascensão normativa dos princípios, tanto como fundamento direto de direitos, como vetor de interpretação das regras do sistema. Dentre os princípios que vêm merecendo distinção na quadra mais recente está o princípio da solidariedade, cuja matriz constitucional se encontra no art. 3°, I. O termo já não está mais associado apenas ao direito civil obrigacional (pelo qual alguém tem direito ou obrigação à integralidade do crédito ou da dívida), mas também, e principalmente, à idéia de justiça distributiva. Traduz-se na divisão de ônus e bônus na busca de dignidade para todos. A solidariedade ultrapassa a dimensão puramente ética da fraternidade, para tornar-se uma norma jurídica: o dever de ajudar o próximo. Conceitos importantes da atualidade, em matéria de responsabilidade civil, de desenvolvimento sustentado e de proteção ambiental fundam-se sobre este princípio, inclusive no reconhecimento de obrigações com as gerações futuras.

Pois bem: o sistema de previdência social é fundado, essencialmente, na idéia de solidariedade, especialmente quando se trata do regime próprio dos servidores públicos. Em primeiro lugar, existe solidariedade entre aqueles que integram o sistema em um dado momento, como contribuintes e beneficiários contemporâneos entre si. Além disso, no entanto, existe solidariedade entre as gerações, um pacto de confiança entre elas. O modelo de repartição simples constitui um regime de financiamento solidário, no qual os servidores em atividade financiam os inativos e comungam da crença de que o mesmo será feito por eles em algum lugar do futuro, pela geração seguinte.

À vista de tais premissas, a contribuição previdenciária de ativos e inativos não está correlacionada a beneficios próprios de uns e de outros, mas à solvabilidade do sistema. Como bem captou o Ministro Sepúlveda Pertence:

‘Assim como não aceito considerações puramente atuariais na discussão dos direitos previdenciários, também não as aceito para fundamentar o argumento básico contra a contribuição dos inativos, ou seja, a de que já cumpriram o quanto lhes competia para obter o benefício da aposentadoria.

Contribuição social é um tributo fundado na solidariedade social de todos para financiar uma atividade estatal complexa e universal, como é a Seguridade’.”

Em suma, o compromisso do contribuinte inativo ou pensionista, ao pagar esse específico tributo, é com o sistema como um todo, e não apenas com a sua conta junto ao órgão previdenciário. Daí não haver qualquer incoerência na inclusão dos inativos e pensionistas entre os contribuintes do sistema. Tal fato obviamente sequer desnatura o que é peculiar à contribuição previdenciária, qual seja a vinculação dos seus recursos à manutenção do regime de previdência, com a solvabilidade do sistema e, em última instância, com a capacidade econômica do sistema em honrar os benefícios previdenciários. Tal situação, por certo, jamais poderia ser confundida com a do imposto de renda.

Não vejo, portanto, qualquer razão para que seja estabelecida uma restrição absoluta à instituição para a contribuição dos inativos, tendo em vista esta alegada inexistência de causa suficiente.

Isonomia

Penso, todavia, que há alguns aspectos, relacionados ao princípio da isonomia, que devem ser considerados na análise da Emenda 41.

Da leitura do art. 4o, parágrafo único, verifica-se um tratamento diferenciado entre aqueles que já recebem ou que já preenchem os requisitos para receber benefícios em relação àqueles que se enquadrarão no novo modelo. Para os beneficiários colhidos pela regra do art. 4o, será devida a contribuição sobre o valor dos proventos e das pensões que supere, no caso dos servidores inativos e pensionistas da União, 60% do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art 201 da Constituição. E no caso dos servidores inativos e pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, será tributado o valor que supere 50% daquele limite.

Já para os que ficam sujeitos à regra permanente, está prevista, no § 18 do art. 40, a imunidade até o limite máximo do benefício do regime geral de previdência. Esse limite, nos termos da Constituição, parece ser um elemento de forte identificação entre os dois regimes. É como se houvesse uma presunção, por parte do constituinte, de que, até esse limite máximo do Regime Geral de Previdência Social, não poderia haver cobrança, por se estar ainda no âmbito de um mínimo suficiente para a própria subsistência digna.


Tal linha divisória tem um objetivo de cunho social evidente, ao desonerar a parcela da população que possui uma remuneração mais baixa. Considerado o tratamento diferenciado que a Emenda confere para diferentes grupos, precisamos indagar se há aqui, no dispositivo impugnado, uma discriminação arbitrária.

De plano, não vislumbro qualquer razão para que se estabeleça uma faixa diferenciada de imunidade entre servidores públicos e empregados da iniciativa privada.

Estamos aqui, diante de uma caso de aplicação daquela dimensão do princípio da igualdade designada por Canotilho como “igualdade justa”. Para além da exigência de igualdade material (tratamento igual para o que é igual e tratamento desigual para o que é desigual), o princípio da igualdade pressupõe um juízo quanto à própria relação de igualdade.

Nas palavras de Canotilho, “a fórmula ‘o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente’ não contém o critério material de um juízo de valor sobre a relação de igualdade (ou desigualdade). A questão [continua Canotilho] pode colocar-se nestes termos: o que é que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de uma forma igualmente justa? Qual o critério de valoração para a relação de igualdade?”

A resposta a tal pergunta reconduz-se à proibição geral do arbítrio, de modo que haveria observância da igualdade quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente tratados como desiguais. Sobre o tema, ensina Canotilho:

“Uma possível resposta, sufragada em algumas sentenças do Tribunal Constitucional, reconduz-se à proibição geral do arbítrio: existe observância da igualdade quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária. O arbítrio da desigualdade seria condição necessária e suficiente da violação do princípio da igualdade. Embora ainda hoje seja corrente a associação do princípio da igualdade com o princípio da proibição do arbítrio, este princípio, como simples princípio de limite, será também insuficiente se não transportar já, no seu enunciado normativo-material, critérios possibilitadores da valoração das relações de igualdade ou desigualdade. Esta a justificação de o princípio da proibição do arbítrio andar sempre ligado a um critério material objetivo. Este costuma ser sintetizado da forma seguinte: existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável.”(50)

Como bem percebe o próprio Canotilho, a própria qualificação desse referido “fundamento razoável” conduziria novamente a um problema de valoração. Penso que, nesse ponto, a resposta estaria em tratar a proibição do arbítrio como critério essencialmente negativo, com base no qual são consagrados apenas os casos de flagrante desigualdade.

No caso em exame, verifica-se uma dupla diferenciação arbitrária. A primeira, entre os beneficiários vinculados ao setor público que estão abrangidos pelo art. 4o e os beneficiários do regime geral. A segunda diferenciação é estabelecida entre servidores da União e dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Não há, no caso, qualquer elemento consistente a justificar tais diferenciações. Ao contrário, no que toca à faixa de imunidade, diante das razões acima expostas – fixação de um critério que se relaciona a um valor pecuniário mínimo para a subsistência – encontramos uma justificativa séria para a equiparação entre futuros e atuais beneficiários.

Considero oportuno lembrar, ademais, que o estabelecimento de restrições ao poder de emenda, tendo em vista o princípio da igualdade, não é fato novo nesta Corte.

A propósito, recordo o precedente fixado na ADI 1946, da relatoria do Ministro Sydney Sanches (DJ 16.5.2003), em que se conferiu, ao art. 14 da Emenda Constitucional no 20 interpretação conforme à Constituição, excluindo-se sua aplicação ao salário da licença gestante, a que se refere o art. 7o, inciso XVIII, da Constituição. Naquele caso, a aplicação do princípio da igualdade referia-se à garantia de tratamento isonômico entre homens e mulheres no contexto do mercado de trabalho, em face do art. 60, § 4o, IV, combinado com o princípio da igualdade, previsto no art. 5o, II, da Constituição.

No caso em exame, pelo exposto, considero que a violação ao princípio da igualdade afigura-se suficiente para a declaração da inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 4o da Emenda 41. De qualquer sorte, tenho como oportuno formular algumas considerações sobre outros valores constitucionais, ao lado da igualdade, a serem considerados na análise da Emenda 41.


Segurança jurídica e dignidade humana

Refiro-me aos princípios da segurança jurídica e da dignidade humana. Certamente, entre aposentados e pensionistas colhidos pela Emenda há situações diferenciadas. Haverá entre eles tanto pessoas na faixa de cinqüenta anos com aposentadoria de valor elevado quanto pessoas de idade muito avançada e com aposentadorias de valores não muito expressivos. Haverá ainda aquelas situações de aposentadoria não voluntária, em razão de moléstias que eliminam por completo a capacidade laborativa. Tais situações não estão diferenciadas pela Emenda.

A instituição da contribuição de inativos pela via da emenda constitucional, se de um lado confere maior estabilidade e segurança jurídica, por outro impõe uma moldura normativa mais rígida ao sistema previdenciário.

Penso, todavia, que não há qualquer incompatibilidade para que mesmo o legislador ordinário venha a estabelecer fórmulas que atendam às diferentes situações desses novos contribuintes do sistema previdenciário. Com isto, estariam atendidas as perspectivas de (1) isonomia, com o tratamento desigual entre aqueles que de fato são desiguais, (2) de segurança jurídica, tendo em vista aqueles que sequer possuem alternativas viáveis para contornar a diminuição de renda imposta pela nova contribuição, e (3) de dignidade humana, ao não se impor um ônus que, para alguns indivíduos, poderá afetar diretamente a própria condição de vida digna. Restaria prestigiado, ademais, em concreto, o princípio da proporcionalidade.

Lembro-me aqui a disciplina legislativa do Imposto de Renda. Não obstante pautar-se pelos princípios da generalidade e da universalidade (art. 153, § 2o, I), há disciplina legal expressa a isentar daquele imposto pessoas em situações singulares, como por exemplo os portadores de determinadas moléstias.

Ter-se-ia, assim, uma autêntica aplicação do princípio da proporcionalidade em concreto.

Recordo que a Corte constitucional alemã entende que as decisões tomadas pela Administração ou pela Justiça com base na lei eventualmente aprovada pelo Parlamento submete-se, igualmente, ao controle de proporcionalidade. Significa dizer que qualquer medida concreta que afete os direitos fundamentais há de se mostrar compatível com o princípio da proporcionalidade.(51)

Essa solução parece irrepreensível na maioria dos casos, especialmente naqueles que envolvem normas de conformação extremamente aberta (cláusulas gerais; fórmulas marcadamente abstratas)(52). É que a solução ou fórmula legislativa não contém uma valoração definitiva de todos os aspectos e circunstâncias que compõem cada caso ou hipótese de aplicação.

Richter e Schuppert analisam essa questão, com base no chamado “caso Lebach”, no qual se discutiu a legitimidade de repetição de notícias sobre fato delituoso ocorrido já há algum tempo e que, por isso, ameaçava afetar o processo de ressocialização de um dos envolvidos no crime. Abstratamente consideradas, as regras de proteção da liberdade de informação e do direito de personalidade não conteriam qualquer lesão ao princípio da proporcionalidade. Eventual dúvida ou controvérsia somente poderia surgir na aplicação “in concreto” das diversas normas(53).

No caso, após analisar a situação conflitiva, concluiu a Corte que “a repetição de informações, não mais coberta pelo interesse de atualidade, sobre delitos grave ocorridos no passado, pode revelar-se inadmissível se ela coloca em risco o processo de ressocialização do autor do delito”(54).

Essa distinção não passou despercebida ao nosso Supremo Tribunal Federal, quando apreciou pedido liminar contra a Medida Provisória no 173, de 18 de março de 1990, que vedava a concessão de provimentos liminares ou cautelares contra as medidas provisórias constantes do Plano “Collor” (MPs no 151, 154, 158, 160, 161, 162, 164, 165, 167 e 168).

O voto proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, revela perfeitamente a necessidade de um duplo juízo de proporcionalidade, especialmente em face de normas restritivas abertas ou extremamente genéricas. Após enfatizar que o que chocava na Medida Provisória no 173 eram a generalidade e a abstração, entendeu Sua Excelência que essas características dificultavam um juízo seguro em sede de cautelar na ação direta de inconstitucionalidade(55) .

Vale transcrever expressiva passagem do aludido voto, verbis:

“(…) essa generalidade e essa imprecisão, que a meu ver, podem vir a condenar, no mérito, a validez desta medida provisória, dificultam, sobremaneira, agora, esse juízo sobre a suspensão liminar dos seus efeitos, nesta ação direta.

Para quem, como eu, acentuou que não aceita veto peremptório, vero a priori, a toda e qualquer restrição que se faça a concessão de liminar, é impossível, no cipoal de medidas provisórias que se subtraíram ao deferimento de tais cautelares, initio litis, distinguir , em tese, e só assim poderemos decidir neste processo – até onde as restrições são razoáveis, até onde são elas contenções, não ao uso regular, mas ao abuso de poder cautelar, e onde se inicia, inversamente, o abuso das limitações e a conseqüente afronta a jurisdição legítima do Poder Judiciário.

(…)

Por isso, (…) depois de longa reflexão, a conclusão a que cheguei, data venia dos dois magníficos votos precedentes, é que a solução adequada às graves preocupações que manifestei – solidarizando-me nesse ponto com as idéias manifestadas pelos dois eminentes Pares – não está na suspensão cautelar da eficácia, em tese, da medida provisória.

O caso, a meu ver, faz eloqüente a extrema fertilidade desta inédita simbiose institucional que a evolução constitucional brasileira produziu, gradativamente, sem um plano preconcebido, que acaba, a partir da Emenda Constitucional 16, a acoplar o velho sistema difuso americano de controle de constitucionalidade ao novo sistema europeu de controle direto e concentrado.

(…)

O que vejo, aqui, embora entendendo não ser de bom aviso, naquela medida de discricionariedade que há na grave decisão a tomar, da suspensão cautelar, em tese, é que a simbiose constitucional a que me referi, dos dois sistemas de controle de constitucionalidade da lei, permite não deixar ao desamparo ninguém que precise de medida liminar em caso onde — segundo a premissas que tentei desenvolver e melhor do que eu desenvolveram os Ministros Paulo Brossard e Celso de Mello — a vedação da liminar, porque desarrazoada, por que incompatível com o art. 5o, XXXV, por que ofensiva do âmbito de jurisdição do Poder Judiciário, se mostre inconstitucional.

Assim, creio que a solução estará no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto, nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame da constitucionalidade, inclusive sob o prisma da razoabilidade, das restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva essa restrição, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de dar aplicação, no caso concreto, à medida provisória, na medida em que, em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva” (56).


No HC no 76.060-4, no qual se discutia a legitimidade de decisão que obrigava o pai presumido a submeter-se ao exame de DNA, em ação de paternidade movida por terceiro, que pretendia ver reconhecido o seu status de pai de um menor, o Ministro Sepúlveda Pertence, que, na primeira decisão, manifestara-se em favor da obrigatoriedade do exame, tendo em vista o direito fundamental à própria e real identidade genética, conduziu o entendimento do Tribunal em favor da concessão da ordem, em precedente que acentua essa perspectiva de conformação de direitos fundamentais no caso concreto. A propósito, revela-se ilustrativa a seguinte passagem de seu voto:

“Na espécie, por certo, não estão presentes as circunstâncias – que, atinentes ao direito fundamental à própria e real identidade genética – me induzem a insistir na ressalva prudente.

Cuida-se aqui, como visto, de hipótese atípica, em que o processo tem por objeto a pretensão de um terceiro de ver-se declarado pai da criança gerada na constância do casamento do paciente, que assim tem por si a presunção legal da paternidade e contra quem, por isso, se dirige a ação. Não discuto aqui a questão civil da admissibilidade da demanda. O que, entretanto, não parece resistir, que mais não seja, ao confronto do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade – de fundamental importância para o deslinde constitucional da colisão de direitos fundamentais – é que se pretenda constranger fisicamente o pai presumido ao fornecimento de uma prova de reforço contra a presunção de que é titular”(57).

A manifestação do eminente Relator deixa claro que a conformação do caso concreto pode-se revelar decisiva para o desfecho do processo de ponderação.

Feitas tais considerações, não vejo qualquer obstáculo a que seja estabelecido, no âmbito da contribuição previdenciária, uma disciplina legislativa assemelhada àquela prevista para o imposto de renda, com o estabelecimento de isenções a partir da identificação de situações singulares que justifiquem tal benefício.

Devo dizer – e aí reside uma das riquezas do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade – que tais pretensões poderiam ser formuladas, ao meu ver, nos próprios processos subjetivos.

Conclusão

Concluo, portanto, meu voto, no sentido de – em razão de ofensa ao princípio da igualdade – declarar a inconstitucionalidade do art. 4o, parágrafo único, da Emenda Constitucional no 41, garantindo-se aos servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação da Emenda 41, bem como os alcançados pelo art. 3o da Emenda, o pagamento da contribuição previdenciária com observância da regra de imunidade prevista no § 18 do art. 40, na redação da Emenda 41.

Notas de rodapé

1. Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II, Coimbra: Coimbra, 1990, pág 190.

2. Loewenstein, Karl. Teoría de la Constitución, Trad. esp., 2 ed., Barcelona: Ariel, 1976, p. 192.

3. Biscaretti di Ruffia, Paolo. Derecho Constitucional, Madrid: Technos,1984, p. 282-283.

4. Maunz-Dürig, Kommentar zum Grundgesetz, art. 79, III, no21.

5. Cf. Hesse, Honrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 16ª. ed. Heidelberg: C.F. Müller, 1988, p. 263.

6. Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts, cit., p. 263.

7. Cf., sobre o assunto, Miranda, Manual de Direito Constitucional, cit.,p. 175 s.

8. Schmitt, Carl. Teoría de la Constitución, Trad. esp., Madrid: Alianza, 1982, p. 121.

9. Schmitt, Teoría de la Constitución, cit., p. 119.

10. BVerfGE, 30:1(24).

11. Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts, cit., p. 262.

12. Cf. Loewenstein, Teoría de la Constitución, cit., p. 192.

13. Bryde, Otto-Brun. Verfassungsentwicklung: Stabilität und Dynamik im Vergassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Baden-Baden, 1982, p. 227.

14. Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 236.

15. Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 237.

16. Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 242.

17. BVerfGE, 30:1(24); BVerfGE, 34:9(19); Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts, cit., p. 262-4.

18. Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 240.

19. Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 242.

20. Cf. Machado, João Baptista. Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra, 1983, p. 232.

21. ADIN n. 493, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ 143, p. 724 (750).

22. Porchat, Reynaldo. Curso Elementar de Direito Romano, vol. I, 2ª ed., no 528, São Paulo: Melhoramentos, São Paulo, 1937, págs. 338/339; Cf. também, ADIN no. 493, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ 143, p. 724 (747).


23. Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda no 1 de 1969, Tomo V, 2ª ed., 2ª tiragem, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, pág. 99.

24. Bandeira de Mello, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo, vol. I, 2ª ed., 1979, págs. 333 e segs.

25. ADIn n. 493, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ 143, p. 724 (746).

26. Cf. transcrição na RTJ 143, p. 746.

27. Cf., sobre o assunto, Maximiliano, Carlos. Direito Intertemporal ou Teoria da Retroatividade das Leis, 2a. ed., Rio de Janeiro, 1955, p. 9-13; Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, cit., p. 270 s.

28. Maximiliano, Carlos. Direito Intertemporal, cit., p. 9-13.

29. Cf. Savigny, M.F.C. Traité de Droit Romain, Paris, 1860, vol. 8, p. 375 s.; v., a propósito, Bandeira de Mello. Princípios Gerais de Direito Administrativo, cit., Vol. I, p. 276.

30. Savigny, Traité de Droit Romain, cit., p. 503 s.; 375 s.

31. Savigny, Traité de Droit Romain, cit., p. 503 –504.

32. Cf., a propósito, Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, cit., p. 276.

33. Cf., Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, cit., p. 281.

34. Gabba, Teoria della Retroattivitá delle Leggi, vol. III, Torino, 1897, p. 208.

35. Roubier, Paul. Le Droit Transitoire, 2a. ed., Paris, 1960, p. 210 – 215.

36. Roubier, Le Droit Transitoire, cit., p. 213.

37. Roubier, Le Droit Transitoire, cit., p. 215.

38. Roubier, Le Droit Transitoire, cit., p. 215.

39. Maximiliano, Direito Intertemporal ,cit., p. 62.

40. ERE no 47.931, de 08.08.1962, Relator: Ministro Ribeiro da Costa, in: Referências da Súmula do STF, v. 10, p. 24 s.; RE 50.325, de 24.07.1962, Relator: Ministro Villas Boas, in: Referências da Súmula do STF, v. 10, p. 28 s.; RE no 51.606, de 30.04.1963, Relator: Ministro Ribeiro da Costa, in: Referências da Súmula do STF, v. 10, p. 30 s.; RE 52.060, de 30.04.1960, Relator: Ministro Ribeiro da Costa, in: Referências da Súmula do STF, v. 10, p. 34.

41. ERE no 47.931, de 08.08.1962, Relator: Ministro Ribeiro da Costa, in: Referências da Súmula do STF, v. 10, p. 24 s.; RE 50.325, de 24.07.1962, Relator: Ministro Villas Boas, in: Referências da Súmula do STF, v. 10, p. 28 s.; RE no 51.606, de 30.04.1963, Relator: Ministro Ribeiro da Costa, in: Referências da Súmula do STF, v. 10, p. 30 s.; RE 52.060, de 30.04.1960, Relator: Ministro Ribeiro da Costa, in: Referências da Súmula do STF, v. 10, p. 34.

42. RE no 94.020, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ 104, p. 269 (272).

43. RE no 105.137, Relator: Ministro Cordeiro Guerra, RTJ 115, p. 379; ERE no 105.137, Relator: Ministro Rafael Mayer, RTJ 119, p. 783; RE no 105.322, Relator: Ministro Francisco Rezek, RTJ 118, p. 709.

44. RE 226.855, cit., p.916.

45. Savigny, Traité de Droit Romain, cit., p. 525-526.

46. Savigny, Traité de Droit Romain, cit., p. 526.

47. Savigny, Traité de Droit Romain, cit., p. 526.

48. Cf. Degenhart, Christoph, Staatsrecht I, Heidelberg, 14. ed., 1998, p. 128 s.

49. Canotilho, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional, 5a. edição, Coimbra: Almedina, 1991, p. 384.

50. Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 577.

51. Schneider, Hans. Zur Verhältnismässigkeits-Kontrolle insbesondere bei Gesetzen, in: Starck, Christian (org.), Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, Tübingen, 1976, vol. 2, p. 403

52. Jakobs, Michael. Der Grundsatz der Verhältnismässigkeit, Köln: Carl Heymanns,1985, p. 150.

53. Richter, Ingo; Schuppert, Gunnar Falke. Casebook Verfassungsrecht, Bumke Verlag: CH.Beck, 1996, p. 29.

54. BVerfGE 35, 202 (237).

55. ADIn no 223, Relator para acórdão: Ministro Sepúlveda Pertence, RTJ 132, p. 571 s.

56. ADIn no 223, cit., p. 571 (589-590).

57. HC no 76.060-4, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, Lex-STF –237, p. 304 (309).

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