Sem empecilho

Baixa remuneração na advocacia pública gera pedidos de licença

Autor

  • Pedro C. Raposo Lopes

    é procurador regional da Fazenda Nacional (1ª Região) professor de Direito Administrativo dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense e da Fundação Getúlio Vargas.

18 de outubro de 2004, 14h48

Em virtude da baixa remuneração da advocacia pública federal, um problema que já assume relevo é o do assaz elevado número de pedidos de licença de advogados públicos federais abrangidos pelo regime da Lei Complementar nº 73, de 10.FEV.1993, seja sob a modalidade estatutária, prevista no artigo 81, inciso VI, da Lei nº 8.112, de 11.DEZ.1990, seja sob a modalidade incentivada, de que trata a Medida Provisória nº 2.174-28, de 24.DEZ.2001.

O êxodo para outras carreiras públicas não é uma novidade no âmbito da Advocacia-Geral da União (AGU). A preocupação é antiga, conforme, aliás, restou consignado na reunião de seu Conselho Superior, ocorrida aos 24.MAR.2003(1), na qual foram apresentadas propostas para solucionar o baixo índice de provimento de cargos.

Com o crescente número de pedidos de licença de seus membros, em breve a AGU deverá arrostar-se com uma nova realidade e suas implicações jurídicas, qual seja a possibilidade do exercício da advocacia privada por parte de seus membros afastados temporariamente do exercício de suas funções.

Não se diga ser um desafio novo. É tão antigo quanto a própria AGU. Ou melhor, é anterior a ela, já que os pedidos de licença antecedem a sua criação, sendo encontráveis inúmeros exemplos na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Quid iuris no que concerne ao exercício da advocacia pelo advogado público?

A LC 73/93 é peremptória ao proscrever, em seu artigo 28, inciso I, verbis:

“Art. 28. Além das proibições decorrentes do exercício de cargo público, aos Membros efetivos da Advocacia-Geral da União é vedado:

I – exercer advocacia fora das atribuições institucionais.

[…]”

O preceptivo legal parece não dar margem a dúvidas em sua literalidade, e decerto a AGU(2) se valerá da literalidade para reafirmar a proibição, conjurando, assim, o risco de que seus membros venham a se sentir tentados pelas propostas da iniciativa privada.

Já se cogitou, inclusive, de inserir nos editais da AGU cláusula que vedasse ao nomeado que ingressasse em outras carreiras jurídicas por concurso público durante o período do estágio confirmatório, obrigando, a fórceps, a permanência compulsória em suas fileiras como panacéia capaz de sanar o anátema da baixa remuneração de seus membros. Uma irrisão, à toda evidência.

O intérprete assisado, contudo, não irá ater-se à interpretação literal do texto legal. É como já pontificava CARLOS MAXIMILIANO, o príncipe da exegese, há mais de setenta anos atrás: “Quem só atende à letra da lei, não merece o nome de jurisconsulto; é simples pragmático.”(3)

A interpretação literal pode conduzir a verdadeiras estultices. JEAN CRUET, ao escrever em 1908 seu “A vida do Direito e a Inutilidade das Leis”, contou que se citava na Inglaterra uma anedota simbólica: a de um homem que tendo furtado dois carneiros foi absolvido, porque só era punível o furto de “um carneiro”.

É nesse sentido que se deve auscultar a ratio essendi da norma proibitiva acima transcrita, no sentido de buscar seu real alcance e significado. Nesse intento, as palavras de CARLOS MAXIMILIANO conservam o viço original:

“Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesses para a qual foi regida.”(4)

Foi decerto inspirado nas lições de Maximiliano (que datam de 1923), que o legislador de 1942 fez introduzir verdadeira norma de sobredireito no Decreto-lei nº 4.657, a conhecida Lei de Introdução ao Código Civil que, na verdade, contamina todos os ramos de nosso Direito, como diretriz interpretativa:

“Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

Já alforriados dos grilhões da literalidade, pode-se afirmar que a vedação constante da Lei Orgânica da AGU encontra razão de ser em um duplo fundamento: de um lado procurou assegurar a dedicação exclusiva dos membros das suas carreiras, de outro procurou salvaguardar a Administração Pública de interferências de advogados públicos que, com seu prestígio, poderiam influir nas decisões administrativas em prol de seus constituintes.

Sob esse prisma, pode-se afirmar que ambos os sustentáculos da vedação desvanecem e esfumam, relativamente aos licenciados. O afastado temporariamente encontra-se, à obviedade, desobrigado de seu dever de dedicação exclusiva. Ao mesmo tempo, encontrando-se fora da sede da Administração, mais remota ficará a possibilidade de interferir no bom andamento do serviço público(5).


Na busca do alcance do conteúdo das normas, não pode o intérprete deixar de fazê-lo à luz da interpretação sistemática, cônscio de que “o Direito não é um aglomerado de preceitos a esmo, mas um conjunto, orgânico e harmônico, de regras que guardam correlação entre si e se reportam a princípios inspiradores mais elevados, os gerais de Direito”(6).

O advogado público (com o perdão da filosofia acaciana) é advogado, e como tal deve obediência aos ditames de seu mister, sobretudo aqueles constantes do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (EAOAB – Lei nº 8.906, de 04.JUL.1994), que é, inclusive (e tal dado não pode ser desconsiderado), posterior à Lei Orgânica da AGU. De fato, eis a dicção do artigo 3º, §1º, do EAOAB, verbatim:

“Art. 3º. O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.

§1º. Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta Lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.”

O EAOAB é didático ao disciplinar os institutos e ao regulamentar o exercício da profissão de advogado.

Confira-se o seu artigo 27, encimado pela epígrafe do Capítulo VII (“Das Incompatibilidades e Impedimentos”):

“Art. 27. A incompatibilidade determina a proibição total, e o impedimento, a proibição parcial do exercício da advocacia.”

Parece extreme de dúvidas que a LC 73/93, ao vedar o exercício da advocacia pelo Advogado Público Federal fora de suas atribuições institucionais, não pretendeu transubstanciar impedimento em incompatibilidade. Apenas elasteceu a proibição constante do artigo 30, inciso I, do EAOAB. Legem Habemus:

“Art. 30. São impedidos de exercer a advocacia:

I – os servidores da administração direta, indireta e fundacional, contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora;

II – os membros do Poder Legislativo, em seus diferentes níveis, contra ou a favor das pessoas jurídicas de direito público, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas, entidades paraestatais ou empresas concessionárias ou permissionárias de serviço público.

Parágrafo único. Não se incluem nas hipóteses do inciso I os docentes dos cursos jurídicos.”

Apesar do maior elastério, uma realidade inarredável é a condição de “impedido” a que se assujeita o membro da AGU com o ato de investidura, tanto que está habilitado a exercer a advocacia em nome de sua única constituinte, que é a entidade em relação à qual mantém vínculo de natureza estatutária.

Qual a disciplina que o EAOAB confere ao impedido afastado de suas atribuições?

Embora silente a respeito do impedido, ao cuidar do incompatível foi a lei peremptória ao determinar, no parágrafo primeiro do artigo 28, que a “incompatibilidade permanece mesmo que o ocupante do cargo ou função deixe de exercê-lo temporariamente”.

Não é necessário grande esforço exegético para compreender que o impedido que se encontre afastado temporariamente deixa de ostentar tal condição, recobrando toda a capacidade postulatória que ficara suspensa por força de sua investidura, passando a sua conduta a reger-se tão-somente pelos preceitos de ética de seu mister.

Poder-se-ia argumentar que o vínculo funcional que une o advogado público à entidade persistiria mesmo no gozo de sua licença, o que se comprova pela inexigibilidade de submissão a novo concurso público de provas e títulos para o seu retorno à condição de ativo.

Tal asserção também não pode ser hipostasiada.

O vínculo com a Administração efetivamente não é interrompido, já que nasce com a investidura na forma dos artigos 2º(7) e 7º(8) da Lei nº 8.112/90, e se extingue na forma dos artigos 33 a 35 da mesma lei.

Se de um lado o vínculo funcional persiste, de outro não é incorreto afirmar não se encontrar o servidor no exercício de suas atribuições, e que, portanto, todos os impedimentos que não sejam incompatíveis com a sua nova condição devem ser relevados, a não ser que a lei disponha de forma diversa.

Afirme-se, pois, que o vínculo funcional persiste, mas em estado latente, devendo as restrições ao exercício de sua profissão constarem de texto legal de forma expressa, pois, a teor do artigo 5º, inciso XII, da Constituição da República (CR/88), “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.”


A licença para tratar de interesses particulares está prevista, como visto, no inciso VI do artigo 81 e 91 da Lei nº 8.112, não havendo menção a qualquer restrição acerca das atividades particulares que o servidor licenciado possa exercer em sua vida privada.

Confira-se a redação do artigo 102, litteratim:

“Art. 102. Além das ausências ao serviço previstas no art. 97, são considerados como de efetivo exercício os afastamentos em virtude de:

I – férias;

II – exercício de cargo em comissão ou equivalente, em órgão ou entidade dos Poderes da União, dos Estados, Municípios e Distrito Federal;

III – exercício de cargo ou função de governo ou administração, em qualquer parte do território nacional, por nomeação do Presidente da República;

IV – participação em programa de treinamento regularmente instituído, conforme dispuser o regulamento; (Redação dada pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

V – desempenho de mandato eletivo federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal, exceto para promoção por merecimento;

VI – júri e outros serviços obrigatórios por lei;

VII – missão ou estudo no exterior, quando autorizado o afastamento, conforme dispuser o regulamento; (Redação dada pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

VIII – licença:

a) à gestante, à adotante e à paternidade;

b) para tratamento da própria saúde, até o limite de vinte e quatro meses, cumulativo ao longo do tempo de serviço público prestado à União, em cargo de provimento efetivo; (Redação dada pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

c) para o desempenho de mandato classista, exceto para efeito de promoção por merecimento;

d) por motivo de acidente em serviço ou doença profissional;

e) para capacitação, conforme dispuser o regulamento; (Redação dada pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

f) por convocação para o serviço militar;

IX – deslocamento para a nova sede de que trata o art. 18;

X – participação em competição desportiva nacional ou convocação para integrar representação desportiva nacional, no País ou no exterior, conforme disposto em lei específica;

XI – afastamento para servir em organismo internacional de que o Brasil participe ou com o qual coopere. (Inciso incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)

Verifica-se, por exclusão, que a licença concedida não é computada como efetivo exercício, interrompendo-se, portanto, na forma do artigo 16(9), o exercício do cargo.

A outro tanto, os artigos 121 e 124 da mesma lei prevêem a responsabilidade civil, penal e administrativa dos servidores apenas em decorrência do exercício irregular de suas atribuições(10) (11).

A responsabilidade administrativa, em especial, decorre exclusivamente de ato omissivo ou comissivo praticado no desempenho do cargo ou função, o que ocorre, à luz do artigo 15(12), somente na vigência do exercício.

Interrompido o exercício por força da concessão da licença para trato de assuntos particulares, ou licença incentivada, não se concebe, de lege lata, a aplicação de sanção disciplinar ao servidor (advogado público).

Como visto no início do presente estudo, a interpretação literal é a gênese de um processo exegético que encontra na letra da lei também o seu limite. Tal aparente paradoxo resolve-se com inolvidável truísmo: ao desbordar dos limites da lei estará o intérprete imiscuindo-se numa atividade que a si é proibida, qual seja a de legislador positivo. Embora lhe seja lícito, em alguns casos, criar norma para hipóteses imprevistas pelo legislador (vedado que está o non liquet) não poderá alargar os lindes normativos a hipóteses não queridas pelo legislador.

Repontando-se para o teor da proibição legal, vê-se que ao advogado público federal não é dado exercer advocacia fora das atribuições institucionais. Pergunta-se: encontra-se o licenciado investido em alguma atribuição institucional?

Decerto que não, tanto que, no exato momento em que concedida a licença, perde a capacidade postulatória para demandar e ser demandado em nome da entidade a que se encontra subordinado.

Despido de atribuições institucionais queda o advogado fora do guante normativo do artigo 28, inciso I, da LC 73/93, para incidir na craveira comum do EAOAB, o qual, como visto, não lhe veda o exercício da advocacia, dês que afastado temporariamente.

Todas as observações ora lançadas demonstram a plena possibilidade da advocacia privada pelo advogado público em gozo de licença estatutária ou incentivada.

Ainda que assim não viesse a entender (o que é bem provável, ante a carência de seus quadros, que minguam dia-a-dia), a AGU nada poderia fazer, já que, como visto, o estatuto funcional (ao qual se assujeita o advogado público) só permite punições disciplinares por força do efetivo desempenho das atribuições.

Pode-se mesmo afirmar que o direito ao exercício da advocacia pelo advogado público licenciado é cognato de uma opção legislativa.

Deveras, poderia ter o legislador permitido o exercício concomitante da advocacia pública e privada (a exemplo do que acontece, a sabendas, nas Procuradorias Estaduais). Optando pela dedicação exclusiva, abriu a possibilidade aos advogados públicos federais que, diante de graves injunções financeiras, pudessem exercer sua profissão livres de quaisquer peias ou ameaças.

O que não se pode pretender é vedar o exercício da profissão pelos legalmente habilitados que tenham, como signo da mais absoluta lhaneza e transparência, requerido e obtido o “benefício” da licença. Sem for essa a intenção, decerto estará o Administrador a acoroçoar a prática ilegal da advocacia privada pelos membros da AGU (o que, infelizmente, já vem ocorrendo), sendo de se aplicar o vetusto brocardo: summum jus, summa injuria!!!!!

Notas de rodapé

(1) Confira-se notícia veiculada no informativo “ANAUNI em dia”, Ano 2, nº 07, abril de 2003, divulgado pela Associação Nacional dos Advogados da União

(2) que, ao que se sabe, nunca foi chamada a se pronunciar conclusivamente sobre o assunto

(3) Hermenêutica e Aplicação do Direito; 13ª. ed.. Editora Forense. 1993.

(4) Ob.cit., pp. 151/152

(5) Entender de outra forma seria vedar o exercício da advocacia privada ao aposentado, ou ao definitivamente desligado dos quadros da Administração.

(6) Luiz Roldão de Freitas Gomes. NORMA JURÍDICA. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO. Editora Forense. Rio de Janeiro.

(7) Art. 2º Para os efeitos desta Lei, servidor é a pessoa legalmente investida em cargo público.

(8) Art. 7º A investidura em cargo público ocorrerá com a posse

(9) “Art. 16. O início, a suspensão, a interrupção e o reinício do exercício serão registrados no assentamento individual do servidor.

Parágrafo único. Ao entrar em exercício, o servidor apresentará ao órgão competente os elementos necessários ao seu assentamento individual.”

(10) Art. 121. O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.

(11) Art. 124. A responsabilidade civil-administrativa resulta de ato omissivo ou comissivo praticado no desempenho do cargo ou função.

(12) Art. 15. Exercício é o efetivo desempenho das atribuições do cargo público ou da função de confiança.

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    é procurador regional da Fazenda Nacional (1ª Região), professor de Direito Administrativo dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense e da Fundação Getúlio Vargas.

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