Diagnóstico da Advocacia

Advogados reclamam de juízes e honorários para relator da ONU

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17 de outubro de 2004, 12h26

“Juízes de primeiro e segundo graus, em grande número, tem se mostrado autoritários, recusando-se a dialogar com advogados, num patente obstáculo ao exercício da advocacia. Por outro lado, os honorários tem sido aviltados pelos juízes, arbitrando-os em valores incompatíveis com a responsabilidade e valor econômico da causa, quebrando a equação econômica da advocacia liberal, com clara conseqüência nefasta à independência dos advogados”.

A reclamação é da OAB paulista em documento entregue ao relator especial da ONU para Independência de Juízes e Advogados, Leandro Despouy. Ele participou de uma reunião, no sábado (16/10), na OAB-SP. O relator da ONU foi recebido pelo presidente da entidade, Luiz Flávio Borges D’Urso.

Segundo os advogados “as punições são raras” no Judiciário. “É cada vez maior o número de juízes embevecidos com o poder, que se tornam autoritários, quase déspotas, tratando mal as partes e advogados, sob a tolerância das corregedorias e superiores”, afirmam.

De acordo com o documento, “são evidentes os sinais de desvalorização da Advocacia, politização dos julgamentos — na mais pobre acepção do termo — tratamento privilegiado a determinados setores”. A OAB paulista também citou número de representação contra juízes, promotores e delegados (Leia abaixo).

Conheça o documento

INDEPENDÊNCIA DE ADVOGADOS E JUÍZES:

UM IDEÁRIO EM CONSTRUÇÃO

I. A relevância da visita do Relator Especial sobre a Independência de Juízes e Advogados

Nota inicial deve ser dedicada ao entendimento do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo de que ao estabelecerem contato pessoal com a realidade dos diferentes países, seus governantes, agentes públicos e os protagonistas da sociedade civil, os relatores especiais vinculados ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos reúnem os elementos basilares para que a ONU cumpra sua missão de apontar parâmetros e experiências internacionais úteis para o constante aperfeiçoamento dos direitos individuais e políticos, das liberdades públicas, dos direitos econômicos, sociais e culturais, entre outros.

Este é, sem dúvida, o objetivo último do direito internacional, cujos princípios demandam um esforço permamente de avaliação, intercâmbio, cooperação técnica e aprendizado mútuo entre o conjunto das nações.

Dispensável assinalar que ao aderir ao sistema das Nações Unidas, bem como ao ratificar tratados internacionais, o Brasil assume a dupla responsabilidade de participar ativamente do processo de universalização dos direitos da cidadania (1), ao tempo em que expõe, no plano internacional, os acertos e dificuldades registrados pela jovem democracia brasileira.

Decerto, a coerência, a transparência e altivez que caracterizam a performance do Brasil no concerto das nações explicam o crescente apoio internacional à presença brasileira no Conselho de Segurança da ONU e conferem à nação brasileira credenciais para balizar e enriquecer o debate internacional sobre o funcionamento da

Advocacia e da Magistratura, pilares sem os quais não se pode falar em Estado Democrático de Direito, tampouco em universalização dos direitos humanos.

Por último, mas não em último, não poderia ser mais oportuna a presença entre nós do Relator Leandro Despouy, visto que neste exato momento nosso país discute intensamente um projeto de reforma constitucional que sinaliza com alterações substantivas na organização e funcionamento do Poder Judiciário.

II. Independência dos Advogados e Juízes: avanços e desafios

Desde meados dos anos 80, incluindo o marco jurídico da promulgação da Constituição vigente, o Brasil experimenta possivelmente seu mais longo período de liberdade e franquias democráticas.

Com a Constituição de 1988, instaurou-se um regime de Estado de Direito, com livre funcionamento dos poderes, sendo asseguradas garantias e prerrogativas aos Advogados, Juízes, Promotores de Justiça, Delegados de Polícia e outros servidores da administração da Justiça.

A liberdade, do ponto de vista formal, é nítida e inequívoca. As decisões do Poder Judiciário têm sido acatadas, por mais polêmicas que produzam. Os demais poderes e órgãos do Estado respeitam e submetem-se ao Poder Judiciário, na forma da lei.

A lei transformou-se, mas sem uma necessária correspondência no plano factual, da vida das pessoas, do cotidiano. Com a redemocratização, o Poder Judiciário brasileiro acresceu em atribuições, desfrutando, em conseqüência, de uma maior parcela de poder.

Em conseqüência, passou a receber uma avalanche de processos, num reflexo da maior consciência social de direitos e de cidadania. O princípio jurídico da universalização da jurisdiçãotornou-se efetivo.


Não obstante, a despeito desse fenômeno alvissareiro, alguns fatores contribuíram para que a democratização e o arcabouço legal democrático não se tornasse materialmente efetivos.

Vale lembrar que historicamente o Estado brasileiro consubstancia uma certa elite profundamente arraigada no Estado, usufruindo de suas benesses de maneira excludente da grande massa. Nesse ponto, são contundentes as observações de Raymundo Faoro sobre a existência de um estamento burocrático apropriando-se das oportunidades econômicas para o desfrute de bens. Estamento que, com a independência, passou dos colonizadores portugueses para a própria elite brasileira.

Essa elite patrimonialista sempre tratou a coisa pública como sua propriedade. A face perversa sempre foi sua fantástica capacidade de cooptação.

Assim, pela primeira vez na história, investido de um poder excepcional, o Poder Judiciário parece estar, aos poucos, sendo cooptado pela elite, não raro em detrimento dos anseios populares.

Com efeito, são evidentes os sinais de desvalorização da Advocacia, politização dos julgamentos – na mais pobre acepção do termo – tratamento privilegiado a determinados setores, etc.

Dada sua relevância, alguns tópicos merecerão tratamento destacado:

Assistência judiciária

A despeito de ser anunciado no Texto Constitucional, o acesso ao Poder Judiciário não está disponível a todos. Inexiste um efetivo aparelho para permitir o acesso das classes menos favorecidas à Justiça.

O primeiro obstáculo para as pessoas pobres (que chegam a dois terços da população) é o custo do processo judicial. Desde a contratação de profissionais (Advogados) até o pesado encargo das custas e despesas judiciais. Embora haja previsão de assistência judiciária, implicando na isenção das taxa judiciária, a assistência legal é notoriamente insuficiente.

A defensoria pública, nos Estados nos quais está regulamentada, excluindo São Paulo, conta com parcos recursos humanos e materiais, em todos os níveis, nomeadamente na seara federal, sendo incapaz de atender a demanda.

A título de ilustração vale notar que no caso de São Paulo a Ordem dos Advogados do Brasil, em convênio com a Procuradoria Geral do Estado deverá atender cerca de 1.000.000 (um milhão) de pessoas carentes, assegurando-lhes a competente defesa técnica em processos cíveis e penais.

Falta de estrutura material

Embora em muitos estados estejam sendo aparelhados os poderes judiciários locais, a Justiça Federal encontra-se mal distribuída, fazendo com que não raramente a tramitação de seus processos dure mais de dez anos.

O Estado é o maior tomador dos serviços judiciais (entre ointenta e noventa por centos dos casos, ao que tudo indica, pois ainda não há estatísticas claras e confiáveis), praticamente sobrecarregando o aparelho judiciário, contribuindo para o inadmissível problema da morosidade.

Entretanto, ao invés de aumentar quadros e aparelhamento, promove o aumento de custas judiciais e cria restrição no uso de recursos, criando ônus somente para as parte privada,

O caso mais grave, em matéria de aparelhamento, é do poder judiciáro paulista, como veremos abaixo.

Ausência de transparência

O Judiciário, a despeito de poucas exceções, como parece ser o Superior Tribunal de Justiça, é extremamente impermeável, cultivando um espírito clerical e hermético.

As punições são raras. É cada vez maior o número de juízes embevecidos com o poder, que se tornam autoritários, quase déspotas, tratando mal as partes e Advogados, sob a tolerância das corregedorias e superiores.

Arbitrariedades são comuns, com liminares “inaudita altera pars” sendo concedidas em condições temerárias. A imprensa refere até uma certa “indústria de liminares”. Não há notícia de punições ou afastamento, senão em raríssimos casos, após longo e literalmente secreto processo.

A falta de transparência, que não se resume aos fatos descritos acima, bem como a escassez de recursos têm levado a existência de relações marcadas com certo clientelismo dentro do Poder Judiciário, trazendo nódoas à necessária independência do magistrado de instância inferior.

Atentados ao livre exercício da Advocacia

A despeito do quadro aqui descrito, que aponta o próprio poder público como principal responsável pela repetição de causas já decididas pelos tribunais superiores, freqüentemente os Advogados são acusados de sobrecarregar o Judiciário com supostos recursos protelatórios.

No caso brasileiro, a diminuição acriteriosa de recursos termina colaborando para condutas arbitrárias de juízes, sobretudo de primeira instância.

Juízes de primeiro e segundo graus, em grande número, tem se mostrado autoritários, recusando-se a dialogar com Advogados, num patente obstáculo ao exercício da advocacia.


Por outro lado, os honorários tem sido aviltados pelos juízes, arbitrando-os em valores incompatíveis com a responsabilidade e valor econômico da causa, quebrando a equação econômica da advocacia liberal, com clara conseqüência nefasta à independência dos advogados.

Desde o início da Gestão D´Urso, no dia primeiro de janeiro do ano corrente, a OAB-SP concede, em média, cinco desagravos por mês a Advogados ofendidos em suas prerrogativas.

Cresce a incriminação de Advogados – imputando-se-lhes a prática do crime de desacato – por agentes públicos inconformados com o destemor, a altivez e a defesa técnica promovida pelo Advogado, que nada mais faz do que defender os direitos e interesses da cidadania.

Vejamos alguns indicadores dos problemas mais freqüentes enfrentados pela Advocacia paulista, registrados deste 1º de janeiro de 2004.

1 – Pedidos de Assistência e Desagravo

Juiz Trabalhista — 5

Juiz Estadual — 10

Juiz Federal — 3

Promotor de Justiça — 5

Procurador — 3

Delegado de Polícia Federal — 3

Delegado de Polícia Civil — 0

Policial Militar — 4

Policial Civil (Investigador, Escrivão) — 1

2 – Representação por Exercício Ilegal

109 processos em andamento

3 – Pedidos de Assistência

133 processos em andamento

4 – Autuação de Diversos

294 processos em andamento

5 – Pedidos de Representação

Juiz Trabalhista — 8

Juiz Estadual — 61

Juiz Federal — 5

Promotor de Justiça — 16

Procurador — 2

Delegado de Polícia Federal — 13

Delegado de Polícia Civil — 5

Policial Militar –10

Policial Civil — 4

Serventuários — 12

Outros — 17

6 – Pedidos de Desagravo

Juiz Trabalhista –1

Juiz Estadual –21

Juiz Federal –1

Promotor de Justiça — 9

Procurador –1

Delegado de Polícia Federal –2

Delegado de Polícia Civil — 0

Policial Militar — 13

Policial Civil — 0

Serventuários — 5

Outros — 10

II. Um exemplo de atentado à Judicatura: o descumprimento de ordens judiciais de pagamento (precatórios)

Precatórios são ordens de pagamento assinadas por Presidentes de Tribunal, em virtude de sentenças definitivas contra a Fazenda Pública (União, Estados membros, DF e Municípios, administração direta e indireta).

Precatórios dividem-se basicamente em duas naturezas: créditos de natureza alimentícia (salários e questões correlatas de servidores públicos, indenizações a pessoas físicas, por danos físicos e morais, p. exemplo) e não-alimentícia (danos patrimoniais, como desapropriações, indenizações contratuais).

O descumprimento de precatórios tornou-se rotina, banalizou-se após o Supremo Tribunal Federal ter sinalizado com a adoção da tese de que esse fato, por si só, não importa em descumprimento de ordem judicial, a determinar intervenção federal no Estado-membro, ou, intervenção estadual no município.

Entender-se-ia que o remédio constitucional (intervenção) se limitaria “à hipótese de atuação dolosa e deliberada do ente devedor de não efetuar o pagamento, não bastando a simples demora de pagamento na execução de ordem ou decisão judiciária, por falta de numerário” (IF 492/SP, Rel. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, por maioria de votos, DJ de 01-08-2003, p. 00111).

No mundo real, onde vivem os seres humanos, instalou-se o calote institucional, na impossibilidade de se provar uma intenção “dolosa” do Governador ou Prefeito, que também se aproveitam da crise e ausência de efetividade do Poder Judiciário.

O Estado de São Paulo tem um estoque de R$ 6 bilhões de precatórios alimentares em inadimplência (o último precatório pago tem a ordem cronológica de 695/97), ou seja, US$ 2 bilhões.

O Estado de São Paulo é inadimplente nos não-alimentares de aproximadamente R$ 12 bilhões (US$ 4 bilhões), objeto de uma moratória inconstitucional de 10 anos, contra a qual a OAB Federal ingressou com ADIN – Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (n.º 2362), com voto favorável do Ministro Relator. A Min. Ellen Gracie pediu “vista” do processo, o qual se encontra engavetado há mais de 3 anos.

A Prefeitura do Município de São Paulo tem um estoque de R$ 1.5 bilhão de inadimplência de alimentares (o último precatório pago tem o numero de ordem cronológica 44/98) e aproximadamente R$ 5 bilhões em não-alimentares, também sob moratória.

A maioria absoluta dos demais municípios de São Paulo tem inadimplência crônica de precatórios.

A situação no resto do país é a mesma ou pior: Estados como o Paraná não cumpriram a moratória de 1.988 (8 anos) para não-alimentares, nem estão cumprindo a de 2.000 (10 anos), existindo Estados (a notícia que temos é de Goiás e Alagoas) onde o Poder Público não paga absolutamente nada, alimentares ou não, há décadas.


Não existe nenhum levantamento objetivo do estoque de dívidas judiciais no país, e a última tentativa de diagnóstico foi feita pelo Min. Marco Aurélio, enquanto Presidente do STF.

Algumas estimativas conservadoras falam em pelo menos R$ 100 bilhões (União, R$ 30 bilhões, São Paulo, 18 bilhões, Paraná, R$ 10 bilhões, e por aí vai) de inadimplência = US$ 30 bilhões, quantia demolidora para as teses governamentais de “contas em ordem”.

É digno de registro que o Governo Federal tem em orçamento R$ 1 bilhão para indenizações a anistiados políticos, sem qualquer necessidade de processos judiciais

ou precatórios. Em outras palavras, o indenizável político administrativo tem preferência sobre o indenizável judicial.

Por outro lado, e quando é politicamente conveniente, débitos bilionários (FGTS, INSS) já foram ou estão sendo solucionados amigavelmente, sem necessidade de processo judicial ou precatórios, com dação em pagamento de ações da Vale do Rio Doce, e, agora, até aumento de impostos! Os processos judiciais levam, em média, de 5 a 10 anos, mais o tempo para pagamento de precatórios, 3 ou 4 anos, num total de 14 a 15 anos para efetivação da “Justiça”. O prazo absurdo para efetivação de Justiça configura a ausência de prestação jurisdicional.

Pode-se dizer hoje, sim, com segurança e base nos fatos já descritos acima, e contrariamente aos esforços dos políticos para vender uma imagem rósea no exterior, para atrair investimentos que (a) o país está em moratória (Emenda 30 à Constituição Federal), no caso de dívidas judiciais não-alimentícias, (b) o país é inadimplente, no que se refere a dívidas judiciais alimentícias e (c) o país descumpre ordens e acordos judiciais. Lamentavelmente o debate deste tema tão importante e sensível tem sido feito basicamente na área judiciária, e, mais timidamente, na área financeira, sem nenhum ênfase no fundamental: DIREITOS HUMANOS.

Um levantamento no Estado de São Paulo (com exclusão das Prefeituras) demonstra que existem mais de 500.000 credores, pessoas físicas, normalmente idosos, e mais de 35.000 já morreram sem receber seus precatórios.

A estatística fala em três dependentes por credor, no mínimo, logo estamos falando, somente no Estado de São Paulo (prefeituras excluídas), num universo de 2.000.000 de vítimas, enorme força política e de reivindicação.

Os dramas humanos (doentes, idosos, aleijados, despejados, famélicos, etc) atrás dos fatos jurídicos e financeiros constituem verdadeiro holocausto.

A mídia tem abordado mais recentemente inúmeros casos, e o tema ganha mais e mais espaço, hoje realmente insuportável.

A título de conclusão vale notar que o Congresso Nacional está apreciando uma proposta de reforma da Constituição que introduz mudanças qualitativas na organização do Poder Judiciário, merecendo realce a federalização dos crimes contra os direitos humanos, a instituição de um controle externo dos aspectos orçamentários e administrativos do Poder Judiciário, a adoção do princípio do prazo razoável para a tramitação dos processos, a inscrição de critérios de eficiência e produtividade na judicatura, dentre outras alterações que poderão significar um alento para a Advocacia e para todos quanto comprometidos com a concretização da cidadania e do Estado Democrático de Direito.

São Paulo, 16 de outubro de 2004.

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

Secção de São Paulo

Comissão de Direitos Humanos

Comissão de Assuntos Institucionais

Comissão de Direitos e Prerrogativas

Comissão de Reforma do Poder Judiciário

Comissão Especial de Assuntos Relativos aos Precatórios Judiciais

Nota de rodapé

1 – Mesmo porque trata-se de comando de natureza constitucional, conforme disposto na norma do art. 4o, inciso IX, da Constituição da República: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (…) cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”.

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