Velhos tempos

Ex-servidora não esquece Figueiredo e quer voltar ao cargo

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16 de outubro de 2004, 14h10

Ao deixar a Presidência da República, em 1985, pela porta de trás do Palácio do Planalto, o general João Baptista Figueiredo tinha um único desejo: “Me esqueçam”. Ficou apenas na vontade. Embora tenha morrido em 1999, sua passagem pelo Planalto Central, na condição de chefe do SNI do governo Geisel e depois de presidente da República, continua sendo remexida nesses dias de governo Lula. Quem está trazendo de volta o nome do ex-presidente para o debate dentro do governo não é nenhuma vítima do período duro dos governos militares, mas alguém que diz ter compartilhado, naquela época, a mesa e a cama do primeiro mandatário no país — afirmações que ele, enquanto vivo, sempre repudiou — e que, por conta disto, se sentiu perseguida pelo governo de José Sarney, sucessor de Figueiredo. A reportagem do jornalista Marcelo Auler está publicada no site www.nominimo.com.br.

Desde julho de 2000, tramita na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça o processo 2002.01.08095, no qual a ex-digitadora da extinta Escola Nacional de Informações, Edine Souza Correia, atualmente com 48 anos, pleiteia o retorno à administração pública, da qual foi demitida em junho de 1986, segundo alega, “por perseguição política do governo Sarney, que queria atingir o Velho”.

É assim que ela se refere ao ex-presidente Figueiredo, com quem alega ter tido uma relação amorosa da qual — segundo insiste em dizer, mesmo não tendo conseguido sucesso no processo judicial que moveu contra ele — nasceu um filho, hoje com 22 anos.

Oficialmente, segundo os registros públicos, Edine começou a trabalhar no governo em 13 de abril de 1976 — na Presidência da República, mais precisamente, no Conselho de Segurança Nacional. Em outubro de 1978, portanto nos últimos meses do general João Baptista Figueiredo à frente do Serviço Nacional de Informações (SNI), ela foi contratada para trabalhar na Escola Nacional de Informações –ESNI, de onde foi desligada em 30 de junho de 1986, já no governo de José Sarney.

A história da suposta relação de Edine com o ex-presidente já é bastante conhecida. Em 1988, quando ela ingressou com uma ação de reconhecimento de paternidade no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o caso ganhou as páginas das revistas e jornais.

Um resumo do caso está registrado no quarto volume da coleção lançada pelo jornalista Elio Gaspari contando a história da ditadura militar no Brasil — A Ditadura Encurralada: “Ao contrário das personalidades de Médici e Geisel, que passaram inalteradas pelo poder, a de Figueiredo fora reciclada, nem tanto por sua iniciativa, mas com sua concordância. Oito das dezenove fotos em que aparecera nas revistas ‘Veja’ e ‘Isto É’ o mostravam na companhia de cavalos. O cavaleiro atlético escondia um cardiopata teimoso. Agravava os padecimentos da coluna ao persistir nos exercícios de hipismo. O general severo também era uma construção. Uma ex-funcionária do SNI, Edine Souza Correia, viria a acusá-lo de tê-la seduzido nas cavalariças do Torto, em 1971. Ela era menor de idade. Quatro anos depois, foi nomeada auxiliar de censura na Polícia Federal e, em 1976, acabara de ser transferida para o SNI. (Essa relação foi escandalosamente divulgada em 1988 pela senhora. Ela pedia dinheiro a Figueiredo, acusando-o — falsamente — de ser o pai de seu filho. Dois telefonemas gravados, uma ordem de pagamento e um bilhete manuscrito do general permitem afirmar que quando ela estava com dezessete anos ele já a conhecia e que lhe mandou um cartão de boas festas dizendo: ‘Meu jardim tem muitas flores caídas, mas tem uma flor…’ Num telefonema disse-lhe que ‘te amei’. Em juízo, sempre negando que tivesse intimidade com a senhora, reconheceu que ela freqüentava a granja do Torto.)”

Pedido negado

Poderia ser uma corriqueira história de dois amantes para os padrões da sociedade atual, mas acabou ganhando destaque não apenas por envolver um presidente, mas por misturar questões pessoais com dinheiro público.

Embora sempre tenha negado qualquer tipo de relacionamento íntimo com Edine, o ex-presidente Figueiredo nunca negou que a conhecesse. Nem podia. No processo judicial que ela moveu para reconhecimento de paternidade, foram juntadas provas que comprovavam que eles se conheciam — entre elas, um cartão de Boas Festas e uma fita com a conversa telefônica dos dois.

Agora, Edine e seu advogado, Elmo Sampaio, estão tentando transformar o caso em “político”. Alegam, no processo, que ela só foi demitida da Escola Nacional de Informações, depois de oito anos de serviços prestados, por motivação puramente política.

“Fui perseguida política por causa do Velho”, insiste Edine. Em síntese, a tese defendida por Sampaio na Comissão de Anistia é que sua cliente perdeu o cargo porque o governo Sarney queria atingir seu antecessorcessor. ”O governo Sarney queria fazer uma caça às bruxas, mas, como não tinha nenhuma outra maneira de atingir o antecessor, decidiu mandar embora a amante dele” justifica o advogado.

A tese não passou pelo crivo da 1ª Câmara da Comissão de Anistia, em janeiro, quando o processo foi levado à discussão pelo relator, o desembargador aposentado do TJ-DF Deocleciano de Elias Queiroga. Em seu voto, acatado pelos dois colegas da Câmara — a advogada Sueli Bellato e o representante dos anistiados, Márcio Gontijo –, ele propôs o indeferimento do pedido por falta de prova documental ou testemunhal de que a demissão foi provocada por motivação política.

Sampaio não se deu por vencido. Em junho, desarquivou o processo e entrou com recurso, redistribuído ao conselheiro Ulisses Riedel de Resende, que deverá encaminhar seu parecer ao plenário, do qual participam os nove conselheiros e o presidente da comissão, o advogado Marcello Lavenère Machado. Desde julho, o processo está aguardando uma diligência.

Recurso sem provas

O recurso do advogado também não apresenta nenhuma prova documental ou testemunhal da motivação política da demissão, mas insiste que essa é a única explicação para que sua representada, que sempre trabalhou cumprindo horário e marcando o ponto, fosse exonerada do serviço público meses depois da posse de José Sarney.

Edine, por sua vez, conta em detalhes perseguições que teria sofrido dentro da extinta Escola Nacional de Informações logo após a mudança de governo (leia seu depoimento abaixo) e garante que foi parar na psicóloga da casa, de quem teria ouvido um conselho curto e direto: “Talvez seja melhor você pedir as contas antes que lhe arranjem uma justa causa e você perca tudo sem nenhuma indenização.”

Desde que saiu do governo, Edine não teve mais emprego fixo. Ela alega que, por causa do processo de reconhecimento da paternidade impetrado na Justiça dois anos depois de sua demissão, passou a ser vítima da pressão exercida pelo Velho para que nada mais conseguisse. O último dinheiro que dele recebeu foram os 25.500 cruzados remetidos em julho de 1988, pouco antes de ela ingressar com a ação de paternidade.

Hoje, morando ainda com dois filhos – David, de 22 anos, que ela insiste ser filho do ex-presidente apesar de não ter conseguido provar judicialmente, e Iuri, de 19 anos, “fruto de um deslize com um amigo da Igreja Evangélica” –, diz sobreviver graças ao Renda Família do governo Lula. Mas, segundo conhecidos, consegue também alguns bicos como acompanhante de idosos.

Nas previsões de Edine, se a reintegração sair, ela deve ter direito a uma função com salário aproximado de R$ 3 mil mensais, sem falar nos atrasados. É com isto que ela hoje sonha e para isto tem rezado com freqüência, ora na Igreja Batista, ora na Universal do Reino de Deus.

“Fui perseguida política”

“Com 12 anos, morando na Asa Norte de Brasília, graças ao meu irmão que era da Aeronáutica e conhecia o então major do Exército Porto Carreiro, passei a freqüentar o Regimento de Cavalaria de Guarda onde fazia equitação. No RGI, ficava o cavalo Corazón, que era do Velho, e eu, com autorização de um oficial de dia, e sem que o Velho soubesse, passei a montá-lo. Eu passei a cuidar do cavalo e assim, aos 14 anos, acabei conhecendo o general. Ele se aproximou e eu, pensando que iria levar uma bronca, acabei sendo convidada para ser sua amazona, passando a montar os animais dele.

Foi ele quem mandou fazer meu uniforme, comprou a bota e assumiu a função de meu instrutor. Era só amizade. Depois, ele passou a me convidar para ir à Granja do Torto, mas ainda não tinha ocorrido nada. Ele viajava e me trazia roupas íntimas da França, chocolates da Suíça. Minha mãe estava ficando muito desconfiada com aqueles presentes todos. Aí, ele resolveu ir à minha casa e pedir autorização para eu montar seus cavalos.

Na época, ele era o chefe do SNI do governo Geisel. Como ele continuava me dando presentes, fazendo minha mãe ficar desconfiada, propus que ele me arranjasse um emprego, pois eu poderia dizer que tinha comprado o que ganhava dele. Ele me colocou na Polícia Federal, foi na época do coronel Moacir Coelho, e eu recebia contra recibo. Minha função era de datilógrafa.

Aos poucos, ele foi se aproximando, como qualquer homem faz quando quer conquistar uma mulher. Chegava devagarzinho, não foi nada forçado, não, não houve brutalidade e é claro que eu também queria. Em 1976, resolvi fazer um concurso do antigo DASP e aí fui trabalhar no Estado Maior das Forças Armadas. Não sei por que o registro fala que trabalhei no Conselho de Segurança Nacional, eu trabalhei mesmo foi no EMFA, numa sessão denominada FA-10, na mapoteca.

Quando o Velho foi indicado para o cargo maior, ele achou melhor darmos um tempo, para evitar transtorno. Foi aí que eu casei com um cara que conheci na Polícia Federal e engravidei da minha primeira filha (Francine, hoje com 26 anos, casada). Só fiquei como o Francisco o tempo de engravidar e a menina nascer, pois ele descobriu entre os meus pertences uma foto do Velho e não gostou nada, inclusive me agrediu. Ele morreu, de barriga d’água (cirrose), e depois continuamos nos encontrando, mas eu não ia mais à Granja do Torto, pois dona Dulce deu ordens aos seguranças de proibir a minha entrada. Nos encontrávamos em um apartamento de algum conhecido dele na Asa Sul ou mesmo na minha casa. Eu morava no Cruzeiro Novo, e ele ia lá disfarçado, até usou peruca e bigode.

Quando eu engravidei do David, ninguém no serviço ficou sabendo de quem era. Depois, eu me mudei para o bairro Octogonal 1, para um apartamento melhor. Já freqüentava a Igreja Evangélica e lá tinha um rapaz que teve um problema na vida e perdeu tudo, ficou sem nada. Eu o levei para minha casa, era só amizade, mas houve um deslize meu e acabei engravidando do Iuri, meu filho menor. O Velho ficou com muita raiva.

Depois que ele deixou o governo, começaram a me perseguir dentro do serviço. Na Escola, eu fui operadora de terminal, auxiliar de documentarista, digitadora do departamento de informações e secretária do chefe do departamento. Fiquei oito anos e nunca tive nenhum tipo de problema. Eu não falava sobre nossa relação, mas pode ser que alguns soubessem por baixo do pano. Eu era muito inocente e não tinha noção da gravidade do relacionamento com uma pessoa como ele. Começaram a me perseguir.

Um papel que passava pela minha mão ia para os outros e desaparecia. Diziam que tinha sido eu, mas eu provava que tinha passado adiante, aí o papel aparecia em uma gaveta qualquer. Sumiam com chaves das salas e me acusavam. Um dia, um amigo foi me visitar e a segurança deixou ele entrar sem avisar. Ele me encontrou no refeitório. Fui chamada pelo chefe de contra-informações, mas eu não tinha culpa, quem deixou entrar foi o segurança.

Numa destas vezes, eu fiquei chorando, foi quando fui chamada pela psicóloga que me perguntou o que estava acontecendo comigo, eu disse que ‘eles estavam me perseguindo, querendo dar um jeito de eu ir embora’ e ela, então, falou que eu tinha acertado e me aconselhou a sair de livre e espontânea vontade, antes que me arranjassem uma justa causa e eu saísse sem nenhuma indenização. Depois que saí, fui despejada do apartamento em que eu morava na Octogonal. Na Justiça, quando entrei com o processo, o Velho conseguiu uma brecha legal e não aceitou fazer o exame de DNA. Alegou que não podia ser obrigado a fazer e não fez. Ficou tudo por isso mesmo. Estou pedindo a anistia porque eu fui perseguida politicamente. Logo, tenho direito também.

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