Carta de Sauípe

Juízes devem enfrentar cobranças e exigências populares, diz Ajufe.

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15 de outubro de 2004, 19h12

A Associação dos Juízes Federais (Ajufe) divulgou carta à nação em que expõe as resoluções aprovadas por seus membros durante o 21º Encontro Nacional dos Juízes Federais do Brasil. Nela, os juízes tratam de temas como a ampliação do acesso à Justiça rápida, criação de varas agrárias federais, revisão das leis processuais e fixação do teto remuneratório para todos os integrantes do serviço público, sem exceção.

Na carta, os juizes também defendem que os magistrados não devem se preocupar somente com a preservação de seus interesses imediatos ou corporativistas. Devem, ao contrário, enfrentar as cobranças e exigências populares quanto às limitações de eficácia e morosidade e defender suas prerrogativas como garantias de cidadania, sem se eximir de debates ou se esconder atrás de tabus.

A entidade registrou no documento seu apoio à instalação e ampliação das varas especializadas em crimes financeiros e de lavagem de dinheiro e o ataque ao tráfico internacional de armas e entorpecentes. Defendeu, também, a ampliação do número de varas e juízes federais e dos Tribunais Regionais Federais.

Quanto à reforma do Judiciário, a Ajufe manifestou otimismo, ao considerar que, apesar de não avançar “no combate à morosidade e na democratização” do Poder, é positiva ao criar o Conselho Nacional de Justiça, ao federalizar os crimes contra os direitos humanos e ao aumentar o número de juízes federais nos Tribunais Regionais Eleitorais.

Por fim, reafirmou que a postura ativa dos juízes federais nas questões jurídicas deve ser mantida, “pela certeza de que a transformação do Poder Judiciário em um instrumento efetivo no combate às desigualdades sociais é uma necessidade essencial do processo democrático”.

Com fim previsto para este sábado (16/10), o encontro foi aberto pelo ministro da Casa Civil José Dirceu. Durante o discurso, ele afirmou, entre outros pontos, que a reforma da Constituição vai “até onde for necessário, porque encontramos um país em estado de degradação, que precisa de reformas” e que “as relações do governo Lula com o Judiciário nunca foram tão boas como agora”.

Dirceu também abordou a criação do Conselho Federal de Jornalismo, da Ancinav e a questão das quebras de sigilo. O discurso ganhou tom de repúdio às críticas de que existe uma tendência autoritária do governo do PT ao propor tais medidas. “Não é justo que se julgue um governo por ter apresentado um projeto a pedido da própria Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)”, entidade que propôs o CJF, ou da “Ancinav, que está há um ano sendo debatido com o setor”.

Quanto à quebra de sigilo fiscal e bancário, ele defendeu que a medida seja aplicada aos que estão sendo investigado por crimes de narcotráfico e lavagem de dinheiro. “Não queremos atingir o cidadão comum”, disse.

Já o presidente da Ajufe, juiz Jorge Maurique, destacou que o 21° Encontro é promovido no mesmo mês em que a Constituição Federal completa 16 anos, “sem que tenha sido implementada plenamente, sem que tenha alcançado a força normativa que gostaríamos, submetida a um permanente processo de desconstrução por intermédio de dezenas e dezenas de Emendas, que parecem nunca ter fim”.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Velloso, que é juiz federal de carreira, encerrou a solenidade com uma palestra sobre a reforma do Judiciário. Nela, pregou a redução urgente de recursos judiciais. “São eles que fazem com que a Justiça seja tão lenta. Só nós, ministros do STF, que é um tribunal de recursos, recebemos cada um uma média de 10 mil processos por ano, totalizando mais de 100 mil no ano. Precisamos acabar com esse sistema irracional de recursos, derivado de leis processuais extremamente formalistas. Três recursos seriam suficientes no nosso sistema: apelação, na Justiça comum, especial para a Justiça do Trabalho e no âmbito do STJ, e extraordinário para o STF, estritamente em matérias que ofendessem a lei e os princípios constitucionais”.

Leia a íntegra da Carta de Sauípe

Juízes, nos dias atuais, não podem se preocupar tão só com a preservação de seus interesses imediatistas ou corporativistas; juízes comprometidos com as mudanças sustentam suas prerrogativas como garantias da cidadania; e não se eximem de qualquer debate, não se escondem atrás de qualquer tabu – antes enfrentam com serenidade as naturais cobranças e exigências populares quanto às suas próprias limitações de eficácia e morosidade.

Neste contexto, a violência e a criminalidade organizada constituem um perigo real e efetivo ao estado democrático de direito e à democratização da sociedade brasileira. O tráfico de armas e drogas, o descaminho, a lavagem de dinheiro e a corrupção de agentes públicos, com a conivência de setores ligados à segurança pública, bem como sua ramificação e ampliação em braços dos três poderes do Estado, utilizando modernas tecnologias e a informática, comprometem as bases da segurança e da efetividade das garantias constitucionais.

A AJUFE apóia e incentiva a instalação e ampliação das varas especializadas em crimes financeiros e de lavagem de dinheiro, o ataque ao tráfico internacional de armas e entorpecentes, bem como as iniciativas que a Justiça Federal do Brasil tem tomado na integração dos organismos judiciais de vários países.

Por outro lado, os juízes federais se preocupam com o destino de 40 milhões de brasileiros situados em situação de pobreza e mais de 12 milhões na linha de indigência. É esta população que deve ser integrada com urgência ao mundo dos direitos, através de políticas públicas de ampliação do acesso à justiça rápida, eficaz, barata e de qualidade. A proposta dos Juizados Especiais Federais se mostra uma alavanca e uma essencial mudança de paradigma na prestação de jurisdição.

A AJUFE defende a ampliação do número de varas e juízes federais, com a devida estrutura material e humana, a ampliação dos Tribunais Regionais Federais existentes e a criação de outros, e aprovação da proposta de turmas itinerantes destes tribunais, melhorando a relação do número de juízes por habitante, hoje incapaz de assegurar um mínimo aceitável de celeridade processual em virtude do acúmulo de trabalho nos juízos de primeiro grau e nos tribunais.

A Reforma do Judiciário em curso no Congresso Nacional, mesmo não avançando no combate à morosidade e na democratização do Judiciário, é positiva ao criar o Conselho Nacional de Justiça por mais transparência e planejamento; a federalização dos crimes contra os direitos humanos; e o aumento do número de juízes federais nos TREs, evitando o verdadeiro monopólio hoje existente dos Tribunais de Justiça sobre as cortes eleitorais, ajuste indispensável para uma perfeita equalização da questão federativa nas eleições brasileiras.

Além disso, os juízes federais defendem uma revisão urgente das leis processuais para coibir a utilização da Justiça como meio de rolagem das dívidas.

A AJUFE também clama pela imediata implementação de medidas moralizadoras, como a efetiva fixação de um teto remuneratório sem nenhuma espécie de exceção, para todos os integrantes do serviço público e agentes públicos, incluindo todos os integrantes da magistratura nacional, evitando-se a situação hoje insustentável de alguns que recebem salários muito superiores aos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

É ainda indispensável o enfrentamento de graves questões relativas à Política Nacional de Reforma Agrária. A AJUFE está segura de que a criação das varas agrárias federais é uma exigência inafastável para contribuir com a resolução dos conflitos da terra, que vêm se arrastando sem solução e com aumento de sua violência há muitos anos.

Por estes motivos, defendemos a indispensável mudança estrutural da Justiça, fundamental para preservação do pacto federativo, da cidadania e da regularidade das relações econômicas.

Sabemos que a postura ativa que vimos assumindo nos últimos anos leva, por vezes, a afirmações de que os juízes estão buscando tornar-se legisladores sem legitimação democrática, afastando-se do campo da judicialidade, e que ela pode às vezes provocar a disputa pequena por espaços de poder que alguns presumem intocáveis. Mas ela será mantida com firmeza pelos juízes e juízas federais do Brasil, não por orgulho ou pela pretensão de sermos melhores que outros, mas pela certeza de que a transformação do Poder Judiciário em um instrumento efetivo no combate às desigualdades sociais é uma necessidade essencial do processo democrático.

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