Hospital público

União é condenada a indenizar por erro médico em hospital público

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11 de outubro de 2004, 19h14

A União foi condenada a indenizar os pais de menor, vítima de erro médico em hospital público, em R$ 144 mil por danos morais. Nesta segunda-feira (11/10), o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, rejeitou Agravo de Instrumento e manteve decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Rio de Janeiro.

O menor teve afundamento frontal do crânio, edema cerebral e contusão hemorrágica — lesões decorrentes de nascimento por fórceps, segundo o STF.

A União sustentou a ocorrência de força maior “apta a descaracterizar o nexo causal entre a conduta do agente público e o dano causado ao menor”. O Recurso Extraordinário não foi admitido pela segunda instância. Então, a União ajuizou Agravo de Instrumento no STF.

O relator alegou impossibilidade de reexame de provas e negou provimento ao pedido. Celso de Mello fundamentou sua decisão afirmando que o acórdão recorrido ajusta-se à jurisprudência do STF, baseada na análise do artigo 37, parágrafo 6º da Constituição Federal.

A norma consagra a teoria do risco administrativo que pressupõe a responsabilidade civil objetiva do Poder Público. A teoria impõe o “dever de indenizar a vítima pelos danos sofridos, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais”, explica o relator.

O ministro ressalta, ainda, que o dever de indenizar aplica-se ao caso do recém-nascido, já que o dano ocorreu em hospital público e a responsabilidade recai sobre o estado. Além disso, reafirmou a presença de todos os fundamentos caracterizadores do dano moral, como o nexo causal entre a conduta do agente e o dano sofrido, e a ausência de exceções previstas na lei (culpa da vítima, caso fortuito ou força maior).

O relator assinalou também que o valor da indenização imposta (R$ 144,8 mil) observou “a necessária correlação entre o caráter punitivo da obrigação de indenizar e a natureza compensatória para a vítima”.

Leia a íntegra da decisão do relator

AGRAVO DE INSTRUMENTO 455.846-4 RIO DE JANEIRO

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO. ELEMENTOS ESTRUTURAIS. PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DA INCIDÊNCIA DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. FATO DANOSO PARA O OFENDIDO, RESULTANTE DE ATUAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO NO DESEMPENHO DE ATIVIDADE MÉDICA. PROCEDIMENTO EXECUTADO EM HOSPITAL PÚBLICO. DANO MORAL. RESSARCIBILIDADE. DUPLA FUNÇÃO DA INDENIZAÇÃO CIVIL POR DANO MORAL (REPARAÇÃO-SANÇÃO): (a) CARÁTER PUNITIVO OU INIBITÓRIO (“EXEMPLARY OR PUNITIVE DAMAGES”) E (b) NATUREZA COMPENSATÓRIA OU REPARATÓRIA. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. AGRAVO IMPROVIDO.

DECISÃO: O recurso extraordinário – a que se refere o presente agravo de instrumento – foi interposto contra decisão, que, proferida pelo E. Tribunal Regional Federal/2ª Região, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 18):

“CONSTITUCIONAL – ADMINISTRATIVO – CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – EXTRACONTRATUAL – PREVISIBILIDADE (…) – REPARAÇÃO – DANO MATERIAL E MORAL – CUMULAÇÃO – CABIMENTO – CONDENAÇÃO EXCESSIVA – REFORMA.

– Sendo a responsabilidade objetiva, dispensada está a parte de provar a culpa lato sensu, ante a adoção, pelo direito pátrio, da teoria do risco;

– Demonstrado o fato administrativo (conduta comissiva do agente), o nexo causal e o resultado danoso, devida a reparação por dano material, pois que também não houve culpa da vítima, bem como não restou configurada a excludente de responsabilidade;

– O dano moral encontra matriz constitucional cujas regras expressam a tutela aos direitos da personalidade;

……………………………………………….

– Para a quantificação do dano moral deve-se levar em conta a condição social das partes, a gravidade da lesão, o caráter punitivo para o agente e a natureza compensatória da condenação para a vítima, não podendo ser fonte de locupletamento;

– Apelo e remessa parcialmente providos, apenas para reduzir a condenação por dano moral arbitrada excessivamente.” (grifei)

A União Federal, no apelo extremo em questão, busca sustentar, a partir do exame de fatos e da análise de laudo pericial, que se registrou, na espécie, situação configuradora de força maior, apta a descaracterizar – segundo alega – o nexo de causalidade material entre a conduta do agente público e o dano causado ao menor, que sofreu, quando de seu nascimento, “…afundamento frontal do crânio, edema cerebral e área de contusão hemorrágica, males esses ocasionados por ter sido retirado do ventre de sua genitora à base de fórceps” (fls. 14).

Cumpre observar que o acórdão impugnado em sede recursal extraordinária, apoiando-se na análise dos fatos e do conjunto probatório, reconheceu caracterizada, na espécie, a existência da necessária relação causal, posto que inocorrente qualquer fato capaz de romper o nexo de causalidade entre a conduta comissiva do agente público federal (médico) e o evento danoso infligido à pequena vítima (fls. 12/18).


A pretensão deduzida pela União Federal encontra obstáculo insuperável na impossibilidade de se reexaminarem, em sede recursal extraordinária, elementos probatórios, inclusive aqueles de natureza pericial, considerada, quanto a estes, a soberania do pronunciamento dos Tribunais ordinários sobre matéria de fato (Súmula 279/STF).

Vê-se, pois, que não se revela viável o recurso extraordinário em questão.

É que – tal como precedentemente enfatizado – não se mostra cabível proceder, em sede recursal extraordinária, a indagações de caráter eminentemente probatório, especialmente quando se busca discutir, como na espécie, elementos fáticos subjacentes à causa.

No caso, a verificação da procedência, ou não, das alegações deduzidas pela parte recorrente implicará necessário reexame de fatos e de provas, o que não se admite na sede excepcional do apelo extremo.

Essa pretensão, por isso mesmo, sofre as restrições inerentes ao recurso extraordinário, em cujo âmbito não se reexaminam fatos e provas, circunstância essa que faz incidir, na espécie, a Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal.

Incensurável, desse modo, o fundamento em que se apóia a decisão objeto do presente agravo de instrumento, revelando-se correta, por isso mesmo, a formulação, na espécie, do juízo negativo de admissibilidade do recurso extraordinário em questão (fls. 45).

Cabe observar, de outro lado, presente o contexto probatório soberanamente estabelecido pelo acórdão objeto do recurso extraordinário em questão, que a decisão emanada do E. TRF/2ª Região ajusta-se à orientação jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou na análise do art. 37, § 6º da Constituição da República.

Como se sabe, a teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros, desde a Carta Política de 1946, revela-se fundamento de ordem doutrinária subjacente à norma de direito positivo que instituiu, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civil objetiva do Poder Público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros (CF, art. 37, § 6º).

Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelos danos sofridos, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais, consoante enfatiza o magistério da doutrina (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 561, 21ª ed., 1996, Malheiros; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “Direito Administrativo”, p. 412/413, 5ª ed., 1995, Atlas; DIÓGENES GASPARINI, “Direito Administrativo”, p. 410/411, 1989, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 3, tomo III/172, 1992, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 620/621, 12ª ed., 1996, Malheiros, v.g.).

É certo, no entanto, que o princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maior – ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 – RTJ 55/50 – RTJ 163/1107-1109, v.g.).

Impõe-se destacar, neste ponto, na linha da jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal Federal (RTJ 163/1107-1109, Rel. Min. CELSO DE MELLO), que os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o “eventus damni” e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público, que, nessa condição funcional, tenha incidido, como na espécie, em conduta comissiva, independentemente da licitude, ou não, do seu comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 – RTJ 71/99 – RTJ 91/377 – RTJ 99/1155 – RTJ 131/417).

É por isso que a ausência de qualquer dos pressupostos legitimadores da incidência da regra inscrita no art. 37, § 6º, da Carta Política basta para descaracterizar a responsabilidade civil objetiva do Estado, especialmente quando ocorre circunstância que rompe o nexo de causalidade material entre o comportamento do agente público e a consumação do dano pessoal ou patrimonial infligido ao ofendido.

Esclareça-se, por oportuno, que todas as considerações já feitas aplicam-se, sem qualquer disceptação, em tema de responsabilidade civil objetiva do Poder Público, a situações – como a destes autos – em que o “eventus damni” ocorreu em hospitais públicos (ou mantidos pelo Poder Público) ou derivou de tratamento médico inadequado ministrado por funcionário público (RT 304/876, Rel. Min. Vilas Boas) ou, então, resultou de conduta imputável a servidor público com atuação na área médica (RT 659/139 – RJTJSP 67/106-107, v.g.):


“O Estado responde pela cegueira conseqüente a infecção adquirida por pessoa internada em hospital por ele mantido.”

(RF 89/178, Rel. Des. MÁRIO GUIMARÃES – grifei)

“PROCESSUAL CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

I – ‘Se o erro ou falha médica ocorrer em hospital ou outro estabelecimento público, a responsabilidade será do Estado (Administração Pública), com base no art. 37, § 6º, da Constituição Federal (…).’”

(AC 278427, Rel. Juiz CASTRO AGUIAR – TRF/2ª Região, DJU de 22/08/2003, p. 255 – grifei)

“CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MATERIAIS E DANOS MORAIS. INVALIDEZ RESULTANTE DE ATO CIRÚRGICO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. INDENIZAÇÃO DEVIDA.

1. A Fundação Universidade Federal de Mato Grosso, na qualidade de mantenedora do Hospital Universitário Júlio Müller, responde objetivamente pelos danos resultantes de ato cirúrgico a que foi submetido o autor naquele nosocômio (CF, art. 37, § 6º).”

(AC 01000520560, Rel. Juiz DANIEL PAES RIBEIRO – TRF/1ª Região, DJU de 03/04/2003, p. 142 – grifei)

“(…) 2. Sendo objetiva a responsabilidade do Hospital conveniado e do INAMPS, estes respondem pelos danos causados ou produzidos diretamente por agentes que estavam a seu serviço, independentemente da apuração de culpa ou dolo. O constituinte estabeleceu para todos os entes do Estado e seus desmembramentos administrativos a obrigação de indenizar o dano causado a terceiro por seus servidores, independentemente de prova de culpa no cometimento da lesão. Adotou a Constituição a regra do princípio objetivo de responsabilidade sem culpa pela atuação lesiva dos agentes públicos e seus delegados.”

(AC 01000054165, Rel. Juiz MÁRIO CESAR RIBEIRO – TRF/1º Região, DJU de 18/06/1999, p. 298 – grifei)

Impende assinalar, de outro lado, que a fixação do quantum pertinente à condenação civil imposta ao Poder Público – presentes os pressupostos de fato soberanamente reconhecidos pelo Tribunal a quo – observou, no caso ora em análise, a orientação que a jurisprudência dos Tribunais tem consagrado no exame do tema, notadamente no ponto em que o magistério jurisprudencial, pondo em destaque a dupla função inerente à indenização civil por danos morais, enfatiza, quanto a tal aspecto, a necessária correlação entre o caráter punitivo da obrigação de indenizar (“punitive damages”), de um lado, e a natureza compensatória referente ao dever de proceder à reparação patrimonial, de outro.

Definitiva, sob tal aspecto, a lição – sempre autorizada – de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (“Responsabilidade Civil”, p. 55 e 60, itens ns. 45 e 49, 8ª ed., 1996, Forense), cujo magistério, a propósito da questão ora em análise, assim discorre sobre o tema:

“Quando se cuida do dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: ‘caráter punitivo’ para que o causador do dano, pelo fato da condenação, se veja castigado pela ofensa que praticou; e o ‘caráter compensatório’ para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido.

……………………………………………….

O problema de sua reparação deve ser posto em termos de que a reparação do dano moral, a par do caráter punitivo imposto ao agente, tem de assumir sentido compensatório. (…). Somente assumindo uma concepção desta ordem é que se compreenderá que o direito positivo estabelece o princípio da reparação do dano moral. A isso é de se acrescer que na reparação do dano moral insere-se uma atitude de solidariedade à vítima (Aguiar Dias).

A vítima de uma lesão a algum daqueles direitos sem cunho patrimonial efetivo, mas ofendida em um bem jurídico que em certos casos pode ser mesmo mais valioso do que os integrantes de seu patrimônio, deve receber uma soma que lhe compense a dor ou o sofrimento, a ser arbitrada pelo juiz, atendendo às circunstâncias de cada caso, e tendo em vista as posses do ofensor e a situação pessoal do ofendido. Nem tão grande que se converta em fonte de enriquecimento, nem tão pequena que se torne inexpressiva. Mas é certo que a situação econômica do ofensor é um dos elementos da quantificação, não pode ser levada ela ao extremo de se defender que as suas más condições o eximam do dever ressarcitório.” (grifei)

Essa orientação – também acompanhada pelo magistério doutrinário, que exige, no que se refere à função de desestímulo ou de sanção representada pela indenização civil por dano moral, que os magistrados e Tribunais observem, no arbitramento de seu valor, critérios de razoabilidade e de proporcionalidade (CARLOS ALBERTO BITTAR, “Reparação Civil por Danos Morais”, p. 115 e 239, itens ns. 20 e 40, 2ª ed., 1994, RT; PABLO STOLZE GAGLIANO/RODOLFO PAMPLONA FILHO, “Novo Curso de Direito Civil”, vol. II/319, item n. 2, 2ª ed., 2003, Saraiva; CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO/SÉRGIO CAVALIERI FILHO, “Comentários ao Novo Código Civil”, vol. XIII/348-351, item n. 4.5, 2004, Forense; YUSSEF SAID CAHALI, “Dano Moral”, p. 175-179, item n. 4.10-D, 2ª ed., 1998, RT; SÍLVIO DE SALVO VENOSA, “Direito Civil: Responsabilidade Civil”, vol. 4/189-190, item n. 10.2, 2ª ed., 2002, Atlas; MARIA HELENA DINIZ, “Curso de Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil”, vol. 7/105-106, 18ª ed., 2004, Saraiva, v.g.) – é igualmente perfilhada pelos Tribunais, especialmente pelo E. Superior Tribunal de Justiça, cuja jurisprudência, na matéria em questão, firmou essa mesma diretriz (REsp 295.175/RJ, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA – REsp 318.379/MG, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI – REsp 355.392/RJ, Rel. p/ o acórdão Min. CASTRO FILHO, v.g.):

“I – A indenização por dano moral objetiva compensar a dor moral sofrida pela vítima, punir o ofensor e desestimular este e outros membros da sociedade a cometerem atos dessa natureza.”

(RSTJ 151/269-270, Rel. Min. ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO – grifei)

“I – A indenização por dano moral objetiva compensar a dor moral sofrida pela vítima, punir o ofensor e desestimular este e a sociedade a cometerem atos dessa natureza. A fixação do seu valor envolve o exame da matéria fática, que não pode ser reapreciada por esta Corte (Súmula nº 7)(…).”

(REsp 337.739/SP, Rel. Min. ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO – grifei)

Sendo assim, e pelas razões expostas, nego provimento ao presente agravo de instrumento, eis que se revela inviável o recurso extraordinário a que ele se refere.

Publique-se.

Brasília, 11 de outubro de 2004.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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