Contratação fraudulenta

Estagiário que não recebe orientação é empregado, decide TRT-SP.

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11 de outubro de 2004, 17h45

É fraudulenta a contratação de estagiário que trabalha em atividade ligada ao objeto social da empresa, sem qualquer orientação voltada para sua formação profissional.

Com esse entendimento, os juízes da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região condenaram a Associação Cristã de Moços (ACM) a anotar na carteira de trabalho da contratada e a pagar as verbas rescisórias: aviso prévio, 13º salários proporcionais, férias integrais e proporcionais acrescidas do terço constitucional, depósitos do FGTS e multa de 40%, além da multa prevista no artigo 477 da CLT e indenização do seguro-desemprego.

O relator do processo no TRT paulista, juiz Paulo Augusto Câmara, declarou a nulidade do contrato de estágio e reconheceu o vínculo empregatício entre as partes na função de professora. A decisão da 4ª Turma foi unânime.

Na primeira instância, a 4ª Vara do Trabalho de Guarulhos, em São Paulo, julgou válido o contrato de estágio firmado entre a professora de ginástica e dança e a Associação Cristã de Moços. A vara fundamentou que, de acordo o artigo 4º da Lei 6.494/77, que dispõe sobre os estágios de estudantes de ensino superior, “o estágio não cria vínculo empregatício de qualquer natureza e o estagiário poderá receber bolsa, ou outra forma de contraprestação que venha a ser acordada, ressalvado o que dispuser a legislação previdenciária, devendo o estudante, em qualquer hipótese, estar segurado contra acidentes pessoais”.

A professora recorreu ao TRT-SP contra a decisão da vara, pedindo o reconhecimento do vínculo com a ACM, alegando que, embora tivesse sido contratada quando ainda freqüentava o primeiro semestre do curso universitário de Educação Física, atuava em condições de igualdade aos demais professores empregados da empresa, ministrando aulas sempre sozinha, sem qualquer supervisão ou orientação de um profissional da área.

Para o juiz Paulo Augusto Câmara, relator, “o foco da questão reside no fato de valer-se a reclamada da força de trabalho de um empregado comum, camuflado sob a pseudo denominação de estagiário, furtando-se às responsabilidades imperativas daí decorrentes”.

De acordo com o relator, o objetivo da lei que institui o estágio para os universitários é “proporcionar ao estudante a possibilidade de alcançar experiência prática, avanços e aprimoramento da capacidade profissional, paralelamente à formação universitária e, ao mesmo tempo, trouxe um atrativo ao empresariado, face os notórios benefícios advindos dessa espécie de contratação”.

“Não basta a inserção isolada do aluno em quadros de trabalho, uma vez que o estágio pressupõe a ativação do estudante sob supervisão constante e intensiva avaliação do profissional da área em conformidade com os programas e calendários escolares, porque essa é a forma adequada de se alcançar a complementação do ensino, sob pena de resultar seriamente comprometido tal objetivo. E esse é o caso dos autos, porquanto, restou claramente demonstrada a ausência de um regime de aprendizagem”, concluiu Câmara.

Leia o voto do relator

PROCESSO TRT/SP Nº 01754200231402003

RECURSO ORDINÁRIO – 4ª VARA DO TRABALHO DE GUARULHOS

RECORRENTE: SHEILA DA SILVA

RECORRIDO: ASSOCIAÇÃO CRISTÃ DE MOÇOS DE SÃO PAULO

Ementa: Relação de emprego. Contratação fraudulenta de empregado por meio de compromisso de estágio. Vínculo configurado. A tese de que o compromisso de estágio exclui a relação empregatícia não prospera naquela circunstância em que fica provado que o trabalhador sempre desempenhou atividades ligadas ao objeto social da empresa, sem qualquer orientação voltada para sua formação profissional, desvirtuando, assim, o escopo teleológico da norma que rege a matéria (Decreto nº 87.497/82, art. 2º, que regulamenta a Lei nº 6.494/77). A admissão de empregado mascarada pelo contrato de estágio padece de nulidade ante os termos do art. 9º da CLT.

Inconformada com a r. sentença de fls. 105/106 que julgou improcedente a ação, interpôs a reclamante recurso ordinário consoante razões de fls. 109/114, buscando o reconhecimento do vínculo empregatício, sob o argumento de que houve desvirtuamento ao contrato de estágio.

Custas comprovadas à fl. 115.

Contra-razões apresentadas às fls. 119/124.

O Parecer da douta Procuradoria do Ministério Público do Trabalho, à fl. 128, não é circunstanciado, opinando aquele órgão pelo prosseguimento.

É o relatório.

VOTO

Conheço do recurso, atendidos os pressupostos de admissibilidade.

A peça inicial noticia que a autora, embora admitida na qualidade de estagiária, sempre ativou-se em condições de igualdade aos demais professores empregados da reclamada, ministrando as aulas de ginástica e dança sempre sozinha, sem qualquer supervisão ou orientação de um profissional da área. Renovando a tese em sede recursal, insiste a recorrente no reconhecimento do liame empregatício, na função de professora.


Razão lhe socorre. O foco da questão reside no fato de valer-se a reclamada da força de trabalho de um empregado comum, camuflado sob a pseudo denominação de estagiário, furtando-se às responsabilidades imperativas daí decorrentes.

Nesse contexto, concessa venia do entendimento esposado na r. sentença, procede a pretensão quanto ao reconhecimento do vínculo de emprego, não se podendo atribuir validade e eficácia ao contrato de estágio, e suas prorrogações (fls. 53/64), firmado quando cursava o primeiro semestre do curso universitário de Educação Física. O atendimento à exigência contida no § 1º da Lei 6494/77, disciplinando a admissão de alunos e a realização de estágios, bem como à formalidade dos contratos firmados, não é suficiente para excluir a formação do vínculo de emprego, sob pena de tornar letra morta as demais disposições contidas na referida lei. A regularidade formal da contratação não suplanta as irregularidades constatadas quanto a execução do objeto acordado.

Na realidade, intencionou o legislador, ao permitir tal modalidade contratual, proporcionar ao estudante a possibilidade de alcançar experiência prática, avanços e aprimoramento da capacidade profissional, paralelamente à formação universitária e, ao mesmo tempo, trouxe um atrativo ao empresariado, face os notórios benefícios advindos dessa espécie de contratação.

A par disso, reprime-se as circunstâncias em que fica comprovado que o trabalhador (estagiário) sempre desempenhou atividades ligadas ao objeto social da empresa, sem nenhuma orientação voltada à sua formação profissional, porque evidencia desvirtuamento ao escopo teleológico da norma (Decreto nº 87.497/82, art. 2º, regulamentando a Lei nº 6.494/77). A utilização do contrato de estágio como biombo das autênticas contratações, afronta as regras legais que regulam a matéria.

Outrossim, vigora, dentre as normas que disciplinam o direito do trabalho, o princípio da primazia da realidade, impulsionando perquerir-se sobre os limites da atuação da autora, ou seja, se restritos ao estágio, em respeito ao seu processo de aprendizagem, ou se expandidas a ponto de ativar-se na qualidade de verdadeiro empregado, a teor do artigo 3º da CLT. Ao exame do processado, prevalece a segunda hipótese, porquanto, exsurge que a reclamante não se ativava na condição de simples estagiária, revelando-se requisitos tipificadores da relação empregatícia. Embora sustentado pela defesa que os seus serviços eram supervisionados e não se confundiam com aqueles realizados pelos empregados comuns, a prova dos autos, especialmente a testemunhal, desmente tal assertiva.

Note-se que as testemunhas obreiras foram uníssonas ao confirmarem que as aulas eram ministradas unicamente pela reclamante, sem qualquer acompanhamento ou orientação de um supervisor, asseverando a primeira, na qualidade de associado, aluno e voluntário da reclamada que “….a reclamante sempre ministrava as aulas sozinha; que somente depois de muito tempo veio a saber que a reclamante era estagiária;….” e a segunda, também na qualidade de associada e aluna que “….a reclamante inicialmente foi professora de suas filhas e posteriormente da depoente;….. que também em 2000 a depoente passou a ter aulas com a reclamante…..; que a reclamante sempre dava as aulas sozinha; que os monitores não iam às salas; que em caso de reclamação iam à sala da supervisora Isabel ou Maurício; (fl. 94) .

Corroborando nesse sentido, temos o depoimento da única testemunha da recorrida ao assim afirmar: “…que a reclamante inicialmente acompanhava outros professores em aulas de localizada e axé, depois assumia as aulas quando algum professor faltava ou estava em férias, depois passou a ministrar as aulas sozinha, até ser contratada” (grifamos) infirmando assim, a assertiva de que o aprendizado da reclamante era feito com o acompanhamento dos professores nas aulas (fl. 95). Revela, ainda, a sua atuação em condições de igualdade aos demais professores empregados.

Evidente o distanciamento à finalidade da lei. Não basta a inserção isolada do aluno em quadros de trabalho, uma vez que o estágio pressupõe a ativação do estudante sob supervisão constante e intensiva avaliação do profissional da área em conformidade com os programas e calendários escolares, porque essa é a forma adequada de se alcançar a complementação do ensino, sob pena de resultar seriamente comprometido tal objetivo. E esse é o caso dos autos, porquanto, restou claramente demonstrada a ausência de um regime de aprendizagem, afrontando o disposto no § 3º do art. 1º da Lei 6.494/77, que assim prevê:

“Os estágios devem propiciar a complementação do ensino e da aprendizagem e ser planejados, executados, acompanhados e avaliados em conformidade com os currículos, programas e calendários escolares” .


Ora, ministrando as aulas sozinha, passou a autora a executar as tarefas pertinentes ao profissional admitido pela reclamada na qualidade de empregado, a rigor da contratação sob a égide celetista.

Como se não bastasse, a testemunha da reclamada admitiu ainda que “… não havia encaminhamento de relatórios à faculdade ou acompanhamento direto desta…” apontando, inquestionavelmente, para a inexistência de qualquer interação da instituição de ensino na relação havida entre as partes, infringindo, mais uma vez, os termos da lei supra referida que dispõe em seu artigo 3º:

“A realização do estágio dar-se-á mediante termo de compromisso celebrado entre o estudante e a parte concedente, com interveniência obrigatória da instituição de ensino.”

Reza o art. 4º do Decreto 87497/82 que:

“As instituições de ensino regularão a matéria contida neste decreto e disporão sobre:

…….

d) sistemática de organização, orientação, supervisão e avaliação de estágio curricular”.

Com efeito, a instituição de ensino não deve figurar como mera signatária do Acordo de Cooperação formalizado com a empresa concedente, porquanto, a lei exige mais do que isso, atribuindo-lhe a iniciativa de participar efetivamente do processo pedagogo e de aprimoramento.

Some-se ainda que, após o termo final do contrato de estágio, a reclamada firmou um contrato de experiência com a autora pelo prazo de 60 dias, período em que não se verificou qualquer alteração na forma de atuação da reclamante, seja quanto à jornada de trabalho ou à forma de prestação dos serviços, conforme informado pelas testemunhas obreiras. Tal fato assume relevância à medida em que serve como indicativo de que a situação pretérita vivenciada pela autora perdurou-se idêntica, mesmo após a rescisão do contrato de estágio.

Logo, inobservada a substância do contrato de estágio, cumpre concluir pela nulidade da avença, à luz do disposto no art. 9º da CLT, com o conseqüente reconhecimento do vínculo empregatício com a reclamada, no período em que firmado o contrato de estágio, a saber de 10.04.2000 a 12.10.2001, conforme pleiteado.

Nesse contexto, em conformidade com o art. 515 do CPC, passo à análise das demais questões pertinentes ao reconhecimento do vínculo empregatício, ante a inexistência de questões fáticas que obriguem a remessa dos autos à Vara de origem. Assim, impõe-se à reclamada a retificação da CTPS da autora e o pagamento das verbas rescisórias devidas e pleiteadas nos itens “a ” a “n” da exordial, a saber: aviso prévio, 13º salários proporcionais referentes a 8/12 do ano de 2000 e 10/12 avos de 2001, férias integrais relativas ao período de 10.04.2000 a 10.04.2001 e, proporcionais de 11.04.2001 a 12.10.2001, ambas acrescidas do terço constitucional, além dos depósitos do FGTS e multa de 40%.

Inobstante o reconhecimento judicial do liame empregatício, a decisão, cuja carga de eficácia é declaratória, faz retroagir os fatos ao status quo ante, implicando, assim, a mora do empregador na quitação dos haveres rescisórios, atraindo assim, a multa prevista no § 8º do art. 477 da CLT.

A indenização do seguro-desemprego é medida que se impõe, em face dos prejuízos sofridos pela autora, impedida de exercer o direito de receber as parcelas correspondentes. Inteligência do atual art. 186 do Código Civil e 159 da legislação vigente à época dos fatos.

Ante o exposto, conheço do apelo obreiro e, no mérito, dou-lhe parcial provimento para, declarando a nulidade do contrato de estágio, reconhecer o vínculo empregatício entre as partes no período de 10.04.2000 a 12.10.2001, na função de professora e condenar a reclamada “ACM” a anotar a CTPS da autora no prazo de cinco dias do trânsito em julgado e a pagar as seguintes verbas rescisórias: aviso prévio, 13º salários proporcionais referentes a 8/12 do ano de 2000 e 10/12 avos de 2001, férias integrais relativas ao período de 10.04.2000 a 10.04.2001 e, proporcionais de 11.04.2001 a 12.10.2001, ambas acrescidas do terço constitucional, depósitos do FGTS e multa de 40%, além da multa prevista no art. 477 da CLT e indenização do seguro-desemprego, tudo nos termos da fundamentação. Juros e correção monetária nos termos da lei, observada a Orientação Jurisprudencial 124 da SDI-1 do C. TST.

Recolhimentos previdenciários e fiscais nos termos do Provimento 01/96 da CGJT. Em face do decidido, arbitro à condenação o montante de R$ 12.000,00 e custas em reversão, nos termos do Enunciado 25 do C. TST.

PAULO AUGUSTO CAMARA

Juiz Relator

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