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Juiz diz que Banco Mundial é maior interessado na súmula vinculante

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8 de outubro de 2004, 19h11

A dois dias do início de uma das maiores reuniões de representantes do Judiciário, o II Encontro Nacional de Juízes Estaduais, o presidente da Associação Paulistas dos Magistrados (Apamagis), Celso Limongi, não gastou munição e apontou sua metralhadora verbal em direção à súmula vinculante.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Limongi acusou o Banco Mundial, do qual o maior acionista é os Estados Unidos, de ser o patrocinador das reformas nos Judiciários da América Latina. No Brasil, o órgão seria, segundo ele, o maior interessado na adoção da súmula vinculante. Tanto o banco quanto o governo estariam “interessados em constituir um Judiciário fraco, previsível e favorável aos conglomerados internacionais”.

Na entrevista a seguir, Limongi também falou dos temas que serão abordados no encontro, marcado para os dias 10 e 11 de outubro (domingo e segunda-feira), por ironia, na Câmara Americana de Comércio. Tratou, ainda, de questões como o poder de investigação criminal pelo Ministério Público.

Leia a entrevista

Qual é a “Justiça que queremos” que dá nome ao evento?

Em primeiro lugar temos de reconhecer a necessidade de união dos juízes. Isso não significa tratar de temas corporativistas, mas de aspectos que justifiquem e garantam o estado democrático de direito. Queremos que o Judiciário continue tendo as garantias de independência que sempre teve e que a Justiça seja efetiva. O que adianta decidir se a determinação do juiz não é cumprida? Precisamos, também, organizar a Justiça de acordo com o interesse da sociedade, da qual somos meros servidores. Nosso Judiciário é o melhor da América Latina.

Em que aspectos?

Aqui, os juizes de primeira instância podem reconhecer a inconstitucionalidade de uma lei, por exemplo. Temos a vantagem do chamado controle difuso, diferentemente do controle concentrado que se vê na Europa e em outros países, onde essas decisões são dadas apenas pelos tribunais superiores. Outro ponto positivo são as garantias concedidas aos juízes, como a vitaliciedade, a inamovibilidade (a prerrogativa de que o juiz não pode ser transferido de comarca contra sua vontade e só será promovido se assim quiser) e a irredutibilidade dos rendimentos. Nossos juízes permanecem no cargo até os 70 anos, não são removidos das comarcas e não têm os vencimentos reduzidos, o que garante que ele terá independência para poder julgar um caso sem temer a perda do cargo. Também não há injunção do poder Executivo ou Legislativo. Os tribunais se auto-governam.

Como, efetivamente, acontece esse descumprimento das decisões?

Muitas vezes as decisões dadas pelos juízes são frustradas. Como podemos admitir que o débito de um precatório afirmado pela Justiça demore anos para ser pago? Isso não tem sentido, é uma humilhação para os credores dos executivos federais, estaduais e municipais. Os credores de precatórios são nossos maiores clientes. O devedor, por seu lado, sempre busca meios de furtar-se ao cumprimento da condenação. Precisamos de uma Justiça ágil e efetiva que faça cumprir sua determinação. Não adianta proferir a condenação se o réu desaparece com seu patrimônio e o credor fica sem a penhora.

Que medidas podem ser tomadas para a garantia do cumprimento das decisões?

É necessário que os Códigos de Processo Civil e Penal sejam alterados. É neles que estão as características técnicas para obter a solução. As garantias já existem na Constituição Federal e são próprias do estado democrático de direito. No entanto, precisamos preservá-las nos pontos em que a lei não é muito clara. Esse é o caso da instituição da súmula vinculante.

Qual o maior problema da adoção da súmula vinculante (prevista na reforma do Judiciário)?

A súmula vinculante fará com que tenhamos sempre decisões previsíveis, o que interessa muito ao Banco Mundial. Ele é, em tese, o patrocinador da reforma Judicial dos países da América do Sul e do Caribe.

Como assim?

O Banco Mundial possui contratos padrão e quer que as decisões sejam de acordo com esses contratos. Isso irá custar o sucateamento indústrias nacionais em favor dos grandes conglomerados econômicos financeiros.

Qual é a alternativa para se chegar a uma Justiça mais célere?

Outro caminho é a adoção da súmula impeditiva de recurso. O problema da súmula vinculante é seu caráter político. Imaginemos a futura composição do Supremo Tribunal Federal [que é quem determina as súmulas vinculantes], que é um órgão político, caso o PT nomeie os 11 ministros. Não é difícil prever que o STF irá ceder a pressões de grupos e do governo federal. A súmula vinculante, como já diz o nome, vincularia toda a magistratura a tomar decisões em benefício das empresas globalizadas e do governo, que também tem interesse em ver o Poder Judiciário fraco e previsível. O governo sabe que os investimentos virão se o Judiciário for um órgão previsível. Já a súmula impeditiva de recurso não vincula os juizes inferiores. Eles podem ou não aplicar o entendimento prévio.

A medida pode ser classificada como propulsora do enfraquecimento do Judiciário?

Sim. E além dela temos o controle externo do Judiciário, que é outro ponto que contribuirá para o enfraquecimento da Justiça. O problema do controle externo reside no fato de ele propiciar a intromissão de políticos na magistratura, indicados pela Câmara de Deputados e pelo Senado. A saída está em o controle ser feito por um conselho nacional formado por magistrados.

Não há risco de esse conselho ser corporativista?

Acho que não. Até pela questão geográfica. O conselho teria Brasília como sede. A eqüidistância dos interessados com o órgão barraria o corporativismo.

Há algum outro ponto negativo nas propostas da reforma do Judiciário?

Há ainda a mudança na Lei Orgânica da Magistratura (Loman). Não conheço bem o anteprojeto, mas sempre se discute muito sobre as férias dos juizes, divididas em dois períodos de 30 dias. O que não é levado em consideração é que os juizes não podem exercer nenhuma outra atividade além da magistratura, incluindo cargo político, o que reduz a possibilidade de ganhos. A única coisa que podem ser é professor. [O salário base para a carreira de juiz em São Paulo é de R$ 5,8 mil brutos]. Outro aspecto do qual as pessoas parecem se esquecer é que o juiz não ganha hora extra, não tem sábado e domingo, e trabalha, via de regra, num regime de excesso de horas desumano. Em média, os juizes trabalham 14 horas por dia. Sem contar que é um trabalho exaustivo, que requer o exame de volumes de processos com 30, 50 volumes. Somos submetidos, ainda, a um árduo e duríssimo concurso público e temos de comprar livros e revista do nosso próprio bolso. É muito diferente da empresa privada.

Qual a posição da Justiça estadual hoje no Poder Judiciário como um todo?

Existe a tendência de o governo federal, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, em tentar reduzir a importância das Justiças estaduais, o que é uma profunda injustiça. Os juizes estaduais são os mais próximos do cotidiano da população. São eles que decidem sobre temas como Direito do consumidor, Direito de família e sobre os benefícios previstos para a ressocialização do sentenciado. A Justiça eleitoral, por exemplo, que deu um verdadeiro espetáculo de eficácia, tem por base a Justiça estadual. É um grande engano dar tratamento que possa desqualificar a Justiça estadual.

Qual a posição do senhor em relação ao poder investigatório criminal do Ministério Público?

Acho que o Ministério Público pode e deve investigar, mas precisa ser controlado por outro órgão. Esse controle deve ser feito justamente pelo Judiciário. Não se pode permitir que exista investigação ampla e irrestrita, sem que haja outro órgão para fiscalizar a atividade do MP. A prerrogativa também depende de uma Emenda Constitucional que expresse a autorização da atividade. Do jeito que está hoje [na Constituição Federal], o Ministério Público não pode investigar.

A programação do evento prevê o painel “Comunicação e Pesquisa”. Sobre o que ele irá tratar?

Os juizes têm como tradição não conceder entrevista. O Judiciário não se comunica e isso nos afastou da sociedade. A população não conhece o Judiciário. É preciso que criemos um canal com a sociedade e que façamos pesquisas para descobrir o que ela espera de nós e quais os aspectos que considera negativos. Precisamos de estatísticas. Esses dados serviriam para o Judiciário se adaptar melhor às necessidades da população.

Segundo uma pesquisa que fizemos no primeiro semestre, a visão das pessoas é de que os juizes trabalham muito. Os entrevistados reconhecem que somos honestos, mas disseram que a Justiça não funciona. Esse levantamento será apresentado no painel e discutido com os participantes. Temos a preocupação em mostrar o que o Judiciário é verdadeiramente e de que essa imagem seja um reflexo da verdade, seja ela boa ou mal. Queremos que nossa atividade seja eficaz e que, perdoe-me o pleonasmo, a Justiça seja justa.

E quanto ao painel “Por uma Política de Tolerância – Administrando as Diferenças”, que tem o deputado Fernando Gabeira como palestrante?

Não se pode falar que existe igualdade no Brasil. A igualdade aqui é somente perante Deus. Temos de começar a pensar na minoria, nos excluídos, a interpretar a Lei de acordo com o que propõe a Constituição Federal, que é a social-democracia. Nosso objetivo deve ser a inclusão e não a exclusão. Há de se reconhecer, nas decisões, os direitos das minorias. Temos de cumprir o artigo 3º da Constituição Federal, que determina que a constituição de uma sociedade justa e igual.

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