Prejuízo igual

Gay e lésbica não pode ser candidato se parceiro estiver na prefeitura

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1 de outubro de 2004, 14h19

Casais homossexuais devem se submeter aos mesmos impedimentos que a Constituição prevê para os heterossexuais nas eleições. Isso quer dizer que se um dos parceiros é prefeito, por exemplo, o outro não poderá se candidatar caso o companheiro não se afaste do cargo seis meses antes das eleições.

A decisão é do Tribunal Superior Eleitoral que acompanhou por unanimidade o voto do ministro Gilmar Mendes. Ele entendeu que, assim como no casamento ou no concubinato, nas relações homossexuais há fortes laços afetivos, capazes de unir pessoas em torno de interesses políticos comuns. Por isso “os sujeitos de uma relação estável homossexual (denominação adotada pelo Código Civil Alemão), à semelhança do que ocorre com os sujeitos de união estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no artigo 14, parágrafo 7º, da Constituição Federal”, afirmou o ministro Gilmar Mendes.

A decisão derruba a candidatura da deputada estadual Maria Eulina Rabelo de Sousa Fernandes, à prefeitura de Vizeu Pará (PA), porque sua companheira, Astride Cunha está no cargo há dois mandatos e não pode ser reeleita.

De acordo com o artigo 14, parágrafo 7 da Constituição Federal “são inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”.

Caso concreto

Tudo começou quando o deputado federal Anivaldo Vale (PSDB-PA), protocolou, consulta 23/04 no Tribunal Superior Eleitoral para saber do Tribunal, se a parceira ou parceiro homossexual pode ser elegível. A Corte do TSE reunida em abril deste ano, em sessão administrativa, decidiu desconhecer a consulta do deputado.

O interesse de Vale dizia respeito ao futuro da base tucana no pequeno município de Vizeu Pará, no Pará, que tem cerca de 80 mil habitantes e 32 mil eleitores. O partido pretendia lançar a deputada estadual Eulina Rabelo como candidata à prefeita para suceder no cargo a sua companheira Astride Cunha, que não pode mais ser reeleita porque já está cumprindo o segundo mandato.

Contou o deputado, na ocasião, Eulina e Astride convivem “maritalmente”, o que é público e notório na cidade há anos. Elas constituíram núcleo familiar e criam os filhos que trouxeram de relações anteriores. Apesar da forte pregação da igreja local contra o homossexualismo, elas esbanjam força política. Eulina é a única representante do município no Legislativo estadual.

Recurso Especial Eleitoral nº 24.564

Leia a íntegra do voto do relator

RECURSO ESPECIAL ELEITORAL Nº 24564 – VISEU- PA

RELATOR: MINISTRO GILMAR MENDES

RECORRENTE: PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DO PARÁ

RECORRENTE: IZAIAS JOSÉ SILVA OLIVEIRA NETO

ADVOGADO(S): NELSON FRANCISCO MARZULLO MAIA e outro

RECORRENTE: DILERMANDO JÚNIOR FERNANDES LHAMAS

ADVOGADO(S): INOCÊNCIO MÁRTIRES COÊLHO JÚNIOR e outros

RECORRENTE: LUIZ ALFREDO AMIN FERNANDES

ADVOGADO(S): MANASSÉS ALVES DA ROCHA

RECORRIDO: MARIA EULINA RABELO DE SOUSA FERNANDES

ADVOGADO(S): ROBÉRIO ABDON D´OLIVEIRA e outros

RELATÓRIO

EXMO. SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES:

Trata-se de registro da candidatura da Sra. Maria Eulina Rabelo de Sousa Fernandes ao cargo de Prefeito de Viseu / PA (fl. 2).

O pedido foi impugnado sob o fundamento de que a Sra. Maria Eulina mantém união estável com a atual prefeita reeleita do Município.

O juiz eleitoral indeferiu o registro, por considerar a Candidata inelegível nos termos do art. 14, § 7º, da Constituição Federal (fl. 704).

O Tribunal Regional Eleitoral reformou a sentença (fl. 835). O Acórdão restou assim ementado:

[…]

1. Considera-se união estável, para a proteção do Estado, aquela que decorre de união entre homem e mulher como entidade familiar, a teor do que dispõe a Lei Civil em vigor.

2. Inexistência de previsão constitucional e infraconstitucional. A regra de inelegibilidade inserida no art. 14, § 7º da Constituição Federal não atinge, nem mesmo de maneira reflexa, as relações homoafetivas, por não se enquadrar no conceito de relação estável, e, diante do silêncio eloqüente contido no seu artigo 226, § 3º.

3. A omissão do ordenamento jurídico que regulamente as relações homoafetivas e conseqüentemente as inelegibilidades decorrentes de tais relações, não autoriza a aplicação por analogia das proibições decorrentes dos limites advindos das relações de parentesco para o exercício de mandato eletivo, previstas na Constituição Federal e na Lei n.º 64/90.

4. Considerando o Princípio da Legalidade, não incumbe ao intérprete ampliar o elenco de inelegibilidades, o que conduziria a se imiscuir na vontade do legislador. De igual modo, há de ser observado o Princípio da Isonomia Material, não podendo ser restringidos direitos, sob pena de, a despeito da omissão legal, incorrer em inadmissível e inconcebível discriminação (fls. 833-834).

O Ministério Público Eleitoral e o Sr. Izaias José Silva Oliveira Neto interpuseram Recurso Especial (fls. 875 e 893).

Os Srs. Luiz Alfredo Amin Fernandes e Dilermando Júnior Fernandes Lhamas opuseram embargos declaratórios (fl. 887 e 906).

O TRE rejeitou ambos os embargos (fl. 912).

Na seqüência, os Srs. Luiz Alfredo Amin Fernandes e Dilermando Júnior Fernandes Lhamas também interpuseram recurso especial separadamente (fls. 919 e 929).

Alegam os Recorrentes, em síntese, que a falta de regulamentação acerca da união entre pessoas do mesmo sexo não poderia afastar a vedação constitucional de perpetuidade de pessoas da mesma família no poder. Apontam violação ao art. 14, § 7º, da Constituição Federal.

O Ministério Público opina pelo provimento do Recurso (fl. 1.067).

É o relatório.

EMENTA

REGISTRO DE CANDIDATO. CANDIDATA AO CARGO DE PREFEITO. RELAÇÃO ESTÁVEL HOMOSSEXUAL COM A PREFEITA REELEITA DO MUNICÍPIO. INELEGIBILIDADE. ART. 14, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal.

Recurso a que se dá provimento.

VOTO

EXMO. SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Relator):

O TRE examinou a prova e concluiu pela caracterização de união de fato entre a Recorrida e a prefeita reeleita de Viseu/PA.

A questão cinge-se em se saber se essa união entre pessoas do mesmo sexo dá ensejo à inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal.

Como bem enfatizado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no voto do Resp. nº 19.442, de 21.8.2001:

[…] as questões acerca do concubinato, do desquite simulado, da irmã da concubina (Súmula nº 7) e tantas outras construções jurisprudenciais que assustaram os ortodoxos, mas, criadas neste Tribunal, vieram a ser consagradas, com uma ou outra exceção, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Essas construções jurisprudenciais sempre objetivaram a não-perpetuação de um mesmo grupo no poder, as chamadas oligarquias, tão presentes em nossa história política.

O TSE, quando reconheceu a elegibilidade do cônjuge do chefe do Poder Executivo para o mesmo cargo do titular, desde que este fosse reelegível e que tivesse renunciado até seis meses antes do pleito, considerou que

Subjacentes a todo o conjunto dessas normas constitucionais, estiveram sempre duas ordens de preocupação: (1) a de impedir o ‘continuísmo’, seja pelo mesmo ocupante do cargo, seja por uma mesma família, ao vedar a eleição subseqüente de parentes próximos, e (2) a de impedir o uso da máquina administrativa em tais campanhas, com evidente desvantagem para os demais competidores e para a lisura do processo de escolha democrática (grifos nossos).

Em todas essas situações — concubinato, união estável, casamento e parentesco — está presente, pelo menos em tese, forte vínculo afetivo, capaz de unir pessoas em torno de interesses políticos comuns. Por essa razão, sujeitam-se à regra constitucional do art. 14, § 7º, da Constituição Federal.

Em que pese o ordenamento jurídico brasileiro ainda não ter admitido a comunhão de vidas entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, acredito que esse relacionamento tenha reflexo na esfera eleitoral.

Vale ressaltar que, no plano patrimonial, o STJ admite a repercussão desse tipo de relação e a denomina sociedade ou união de fato. No Supremo Tribunal Federal, reconheceu-se a companheira homossexual para fins previdenciários (Pet nº 1984-9/RS).

Colaciono trecho bastante elucidativo do voto do Ministro Ruy Rosado, proferido no Resp. 148897-MG, verbis:

A hipótese dos autos não se equipara àquela, do ponto de vista do Direito de Família, mas nada justifica que se recuse aqui aplicação ao dispositivo na norma de direito civil que admite a existência de uma sociedade de fato sempre que presentes os elementos enunciados no art. 1363 do Código Civil [anterior]: mútua obrigação de combinar esforços para lograr fim comum. A negativa da incidência de regra assim tão ampla e clara, significa, a meu juízo, fazer prevalecer princípio moral (respeitável) que recrimina o desvio da preferência sexual, desconhecendo a realidade de que essa união – embora criticada – existiu e produziu efeitos de natureza obrigacional e patrimonial e que o direito civil comum abrange e regula.

Kelsen, reptado por Cossio, o criador da teoria egológica, perante a congregação da Universidade de Buenos Aires, a citar um exemplo de relação intersubjetiva que estivesse fora do âmbito do Direito, não demorou para responder: ‘Oui, monsieur, l’amour’. E assim é, na verdade, pois o Direito não regula sentimentos. Contudo, dispõe ele sobre os efeitos que a conduta determinada por esse afeto pode representar como fonte de direitos e deveres, criadores de relações jurídicas previstas nos diversos ramos do ordenamento, algumas ingressando no Direito de Família, como o matrimônio e, hoje, a união estável, outras ficando à margem dele, contempladas no Direito das Obrigações, das Coisas, das Sucessões, mesmo no Direito Penal, quando a crise da relação chega ao paroxismo do crime, e assim por diante (grifos nossos).

É um dado da vida real a existência de relações homossexuais em que, assim como na união estável, no casamento ou no concubinato, presume-se que haja fortes laços afetivos.

Assim, entendo que os sujeitos de uma relação estável homossexual (denominação adotada pelo Código Civil Alemão), à semelhança do que ocorre com os sujeitos de união estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal.

Ante o exposto, dou provimento aos Recursos.

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