Mar aberto

MP quer anular restrição de acesso à praia no Guarujá

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30 de novembro de 2004, 19h40

O Ministério Público de São Paulo quer suspender decisão favorável à restrição de ingresso de veículos nas vias públicas do loteamento conhecido como Tijucopava, no Guarujá, litoral de São Paulo. O acórdão foi proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi favorável para SASTI — Sociedade Amigos Sítio Tijucopava.

A decisão do Segundo Grupo de Câmaras de Direito Público do TJ-SP visa preservar as áreas verdes existentes na região. Mas, segundo o procurador-geral de Justiça do estado, Rodrigo César Rebello Pinho, ela vai de encontro à garantia do acesso amplo e irrestrito às praias marítimas, como estabelece norma federal.

De acordo com ele, o artigo 10 da Lei nº 7661/88, classifica as praias — bens públicos da União por força do art. 20, IV da CF — como “bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido”.

Rebello Pinho argumenta, ainda, que em seu parágrafo 1º, a lei determina que: “Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo”.

Leia a íntegra do recurso

Recurso Especial na Ação Rescisória nº 296.548.5/4

Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo

Recorrida: SASTI – Sociedade Amigos Sítio Tijucopava

EMINENTE DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO,

EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

COLENDA TURMA JULGADORA:

1 – A hipótese em exame

O Segundo Grupo de Câmaras de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria de votos, julgou procedente a ação rescisória ajuizada por SASTI – Sociedade Amigos Sítio Tijucopava e, com isso, rescindiu o V. Acórdão que havia condenado a entidade a “cessar toda e qualquer atividade consistente no embaraço ao livre acesso às praias e vias públicas do Loteamento, mesmo que disfarçada na simples identificação de pessoas” (1).

O Acórdão proferido na ação civil pública foi rescindido porque, segundo o Tribunal, viola literal disposição de lei. O fundamento da rescisória vem resumido nesta passagem: “Na espécie, o acórdão rescindendo violou literal disposição de lei, pois determinou ser livre e incontido o acesso de todos na área de especial preservação que é o Sítio Tijucopava, cuja concessão de zelo foi outorgada à autora. Por outro lado, a legislação vigente (Lei Municipal n º 2.567, de 1997 e Decreto nº 5.435, de 1997 – art. 1º, §§ 1º e 2º) determina expressamente a restrição de acesso de veículos a essas áreas para fins de preservação ambiental”.

Na Rescisória, os votos vencedores e vencido convergem em um ponto: aceitam a aplicação da Lei Municipal n º 2.567/97 para impedir o acesso de pessoas com veículos à praia, que só é alcançável pelas vias que integram o sistema viário do loteamento administrado pela SASTI. Para tanto, interpretam restritivamente os preceitos da Lei Federal nº 7.661, de 16 de maio de 1988.

2 – Cabimento do recurso especial

O recurso encontra perfeita adequação ao disposto no art. 105, inc.III, alínea a, da Constituição Federal, que diz competir ao Superior Tribunal de Justiça o julgamento, em recurso especial, das causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência.

Como o v. Acórdão contraria o alcance e o espírito da Lei Federal nº 7661, de 16 de maio de 1988, e lhe nega vigência na medida em que a considera compatível com a Lei Municipal nº 2.567/97, a adequação do presente recurso à hipótese é incontestável.

A questão federal foi abordada de maneira clara no Acórdão agora recorrido. Para a 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, a Lei nº 2.567/97, do Município do Guarujá, porque restringiu as condições de acesso e utilização de praias e vias públicas — a pretexto de preservar as áreas verdes existentes na região do Loteamento conhecido como “Tijucopava” — , tem força suficiente para “anular um acórdão” que, com expresso fundamento no art. 10 da Lei Federal nº 7661/97, determinou ser “livre e incontido o acesso de todos na área” (Cf. Acórdão – doc. 01). Em outras palavras, o Tribunal paulista afastou a norma jurídica individual consubstanciada no Acórdão que rescindiu para privilegiar a aplicação de uma lei municipal.

3 – Contrariedade e negativa de vigência da Lei Federal

Como se sabe, não há unanimidade entre os doutrinadores acerca do significado das locuções contrariar e negar vigência à lei federal, que, para alguns, seriam até expressões sinônimas e, para outros, de difícil distinção quanto à finalidade. (2)


Entretanto, o entendimento que parece dominante na jurisprudência pátria parte da suposta ausência de conceito técnico para os vocábulos utilizados na alínea a, do inc.III, do art.105, da Constituição da República. A definição é relegada à linguagem de uso comum, segundo a qual, enquanto contrariar significa ofender ou contestar, negar é sinônimo de desconsiderar total ou parcialmente e, ainda, não admitir a sua existência. “Contrariamos a lei quando nos distanciamos da mens legislatoris, ou da finalidade que lhe inspirou o advento; e bem assim quando a interpretamos mal e lhe desvirtuamos o conteúdo. Negamos-lhe a vigência, porém, quando declinamos de aplicá-la, ou aplicamos outra, aberrante da fattispecie”.(3)

Qualquer que seja a abordagem, o recurso especial tem por finalidade precípua evitar a inobservância da lei federal, isto é, o seu descumprimento, que se traduz na desobediência quanto a sua validade ou eficácia. E a interpretação que não atenda à finalidade da lei ou que não leve em consideração, na sua exegese, um conjunto de regras intrínsecas ao sistema e coerentemente interligadas, sujeita-se a esta hipótese recursal.

A “questão federal”, nesta hipótese, está patente. O v. Acórdão recorrido deu interpretação equivocada ao artigo 10 da Lei Federal nº 7661/88, que classifica as praias — bens públicos da União por força do art. 20, IV da CF — como “bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido”. Para que não houvesse dúvidas em relação à amplitude da norma, o parágrafo 1º do mesmo artigo explicitou: “Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo”.

Ao restringir o sentido dessa norma a ponto de entendê-la compatível com a Lei Municipal que impede o acesso de veículos às vias públicas do loteamento — única maneira de se ter acesso terrestre à praia —, o V. Acórdão impede que ela produza concretamente os efeitos desejados pelo legislador: garantir o acesso amplo e irrestrito às praias marítimas.

Em resumo, a questão que se coloca é simples: a lei municipal, que limita o ingresso da população nas vias públicas de um loteamento que leva até a praia, é compatível com a Lei Federal que garantiu de maneira ampla e irrestrita o acesso às praias? Para o Tribunal paulista, essa limitação do direito é possível uma vez que há outros interesses relevantes a serem preservados, quais sejam, o controle do tráfego, “impondo disciplina ao uso popular das vias de acesso às praias”, e a conservação dos bens públicos, do meio ambiente e do ecossistema do remanescente da Mata Atlântica (Cf. fls. 5 do Acórdão aqui recorrido).

Mas, em verdade, a prevalecer o Acórdão que julgou procedente a ação rescisória, restará afastada a norma jurídica individual (art. 10 da Lei 7661/88) consubstanciada no Acórdão proferido na ação civil pública. Aliás, foi exatamente isso que se pretendeu com a edição da lei municipal e do decreto que a regulamentou.

Os desvios de finalidade da legislação agora prestigiada pelo Tribunal de Justiça foram apontados na ação direta de inconstitucionalidade nº 47.068.0/3, e serão apreciados, em sede de recurso extraordinário, pelo Supremo Tribunal Federal. Em declaração de voto no bojo do acórdão prolatado por este Tribunal de Justiça no processo da ação direta, o Desembargador Gentil Leite observou: “Inicialmente chama a atenção o fato de que foi elaborada e promulgada logo após as decisões em ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público, que determinaram a abertura dos loteamentos em questão e o acesso às praias ali localizadas”.

De fato, é sintomático que após a prolação da sentença de primeiro grau na ação civil pública, em maio de 1997, e interposição de recurso de apelação em junho daquele ano, a Câmara Municipal de Guarujá tenha editado lei municipal que, sob a justificativa de disciplinar o trânsito e proteger área que reconhece como de interesse ambiental, estabelece novo comando normativo, contrariando o decidido pelo Poder Judiciário e, diretamente, a Lei Federal nº 7661/88.

Note-se que a autora da ação rescisória, ré na ação civil pública, foi imediatamente beneficiada pela lei municipal que, em seu art. 2º, estabelece ficar outorgada “concessão administrativa de uso” dos bens públicos de uso comum integrantes do sistema viário interno e áreas verdes e institucionais do loteamento Praia Branca Tijucopava, em favor da respectiva Associação de Moradores, para fins de conservação e preservação ambiental.

E o art. 4º, em combinação com seu inciso V, estabelece que a outorga da concessão implica o uso privativo dos bens públicos de uso comum referidos, devendo-se assegurar a utilização dos bens concedidos como meio de acesso às praias, desde que os usuários respeitem a regulamentação estabelecida pela concessionária.


Ora, a regulamentação sobreveio na forma do Decreto nº 5.435, que autorizou as Associações de Moradores a adotar os meios necessários para efetivação da restrição de circulação.

Nem se diga que a livre circulação e o acesso à praia estão garantidos, porquanto restringe-se a circulação de veículos e não de pessoas. Fato certo — e que restou comprovado nas instâncias ordinárias — é que as portarias de acesso ao condomínio são tão distantes das praias que se torna inviável alcançar o litoral sem a utilização de automóveis.

A pretexto de garantir a preservação do meio ambiente e ordenar o trânsito local, a lei municipal e o acórdão que a prestigia elegeram poucos privilegiados para freqüentar áreas de uso comum de todo o povo, que são as vias públicas e a praia, contrariando frontalmente a legislação federal em vigor.

É evidente que o Município tem competência para disciplinar o trânsito. Mas todo o problema consiste em saber até que ponto os limites à utilização de veículos e das vias de circulação são admissíveis com tal propósito, principalmente levando-se em conta que o uso das vias públicas é o único meio de acesso a um bem público de uso comum: a praia.

Essa questão tem sido objeto de consideração na doutrina estrangeira, principalmente entre aqueles que se dedicam a estudar a liberdade de locomoção (o direito de ir e vir). O assunto já foi amplamente discutido em Portugal, na Espanha, na França, na Alemanha e na Itália, cuja doutrina a respeito, pela pertinência, pode ser importada. É que, no campo da liberdade de movimento de um lugar para outro (que a Constituição portuguesa designa como “direito de deslocação” – art. 44º, 1), tem importância examinar se a tutela também compreende (a) o acesso aos pressupostos objetivos e (b) o uso de todos os meios que tornam possível e efetivo o exercício de tal liberdade. Exemplos da primeira categoria (os pressupostos objetivos) são as estradas, as ruas, as praças, os rios e o espaço aéreo. Entre os meios em sentido estrito figuram, por excelência, os automóveis, os barcos e os aviões.

Como em quase tudo que se refere aos direitos humanos, no campo da liberdade de locomoção é bem vasta a zona de transição do claro para o escuro, já que o direito não é ilimitado (como, de resto, nenhum direito é). Mas, ressalvadas as dúvidas, há uma certeza que se pode ter em abstrato: a necessidade de que o conteúdo essencial do direito seja preservado. Bem a propósito, o prudente comentário de dois eminentes constitucionalistas portugueses: “Não constituem restrições, mas sim limites ao seu conteúdo, os que derivam para a liberdade de deslocação e de residência, seja do direito de propriedade (privada ou pública), seja do ordenamento do território em matéria de edificação de habitações, seja das condições e requisitos para utilização das vias públicas (não podendo porém o condicionamento da liberdade de circulação ser de tal modo gravoso que atinja a própria liberdade de deslocação). (4)

Nesse tema, é convincente o magistério de Alessandro Pace, antigo Juiz da Corte Costituzionale e Professor da Universidade “La Sapienza”, de Roma. (5) Esse autor admite que os meios de exercício do direito de liberdade de circulação podem ser limitados, pois, de fato, estão sujeitos à influência concomitante de distintas disciplinas constitucionais: assim se dá, v.g., com os bens de interesse ambiental e com as vias internas de uma propriedade privada. Porém, mesmo com todas as ponderações, o constitucionalista reconhece:

a liberdade de circulação (que é um direito da pessoa natural) se realiza, essencialmente, com a possibilidade de livremente determinar-se acerca de sua transferência de um lugar para outro dentro do território nacional; no que excede a esse núcleo irredutível — inclusive quanto os pressupostos objetivos e aos meios de circulação (em sentido estrito) —, trata-se de um valor constitucional, isto é, uma finalidade ou uma exigência do ordenamento; conseqüentemente, os meios de circulação admitem limites e condicionamentos, desde que não sejam editados para dificultar arbitrariamente a circulação e consintam a mais eficaz realização possível de tal liberdade.

Outros escritores chegam a conclusões análogas, sustentando, em suma, que a liberdade de circulação diz respeito, exclusivamente, à pessoa e não aos meios de que ela se valha (ou dos quais dependa) para circular. Por isso, o uso dos últimos pode ser regulado pela lei. Entretanto, na imposição desses limites é imperioso que se respeite o princípio da igualdade, inclusive na suas vertentes específicas de razoabilidade e proporcionalidade. (6)

Esses cuidados, aos quais está condicionada a legalidade das restrições impostas ao direito de liberdade de locomoção, não foram observados no caso em apreço. Ao contrário, a legislação municipal – que motivou o E. Tribunal a inverter completamente a ordem judicial obtida pelo Ministério Público ao final da ação civil pública – reserva o acesso aos bens de uso comum do povo e, consequentemente, o seu uso, aos poucos proprietários do loteamento, que podem transitar pelas vias públicas internas, inclusive com seus veículos motorizados, e terem acesso livre às praias, em qualquer horário.


Para se ver livre da Lei Federal que garante o acesso às praias (artigo 10 da Lei Federal nº 7661/88 — cuja clareza meridiana está revelada no seu parágrafo primeiro), o legislador municipal encontrou um subterfúgio: reconheceu como de “especial interesse ambiental” “as áreas de reserva de Mata Atlântica, situadas na porção leste da Ilha de Santo Amaro, conhecidas como Praia Branca, Tijucopava, Sítio São Pedro, Iporanga e Praia de Taguíba” e entregou a concessão de uso desses bens em favor das associações de moradores.

Mas a falácia do argumento é patente. A Constituição declara que toda a Mata Atlântica é patrimônio nacional e, mais, área de preservação ambiental. No entanto, isso não pode significar que ao longo do litoral seja possível instituir loteamentos que reservem o acesso à praia e às áreas verdes aos poucos proprietários que seriam, como quer o Município do Guarujá, os guardiães do meio ambiente. Se o intuito do legislador fosse o de proteger a região costeira sob o ponto de vista ambiental teria vedado o uso indiscriminado da praia, e não delegado a particulares o controle do acesso a ela, até porque se trataria, no caso, do exercício do poder de polícia, que, como se sabe, é indelegável.

As praias marítimas são bens de uso comum do povo e, conseqüentemente, não podem ser destinadas ao uso privativo de poucos privilegiados (o que seria uma forma perversa de privatização). Exatamente para evitar essa situação, a ordem trazida no parágrafo primeiro do artigo 10 da Lei Federal n. 7661/88: “Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo”. A razão da norma é evitar a privatização do litoral, área de uso comum da população.

A tendência à privatização do litoral foi constatada, com preocupação, em outras partes do mundo, e levou o Conselho da Europa a editar, ainda no ano de 1973, a Resolução n. 29/73, que já proclamava “o princípio do livre acesso às margens do mar”. Como explica Gilberto D’Avila Rufino, autor de um memorando sobre o patrimônio costeiro e seus fundamentos jurídicos, “o princípio do livre acesso à fachada marítima para uso público implica o desencravamento das praias, necessário sobretudo em zonas super-ocupadas. Esse acesso deve ser estabelecido independentemnte das ações de estruturação fundiária”. Aos poucos, esse princípio foi sendo consagrado nos textos que regem a ocupação do litoral em diversos países, como os Estados Unidos, França, Portugal, Noruega e Espanha.(7)

A doutrina norte-americana, por exemplo, tem reconhecido a supremacia do interesse público nas áreas banhadas pelas marés, ainda quando se trate de “propriedade privada”. Nessa linha, a Suprema Corte declarou que o poder público estadual exerce controle inalienável sobre as terras submersas e as águas que as recobrem, pois esses bens “são destinados ao uso comum do povo, ainda que pertençam a particulares”. Ao consagrar o uso comum dos bens ambientais, explica Rufino, a doutrina do public trust “restringe igualmente a faculdade da administração de conceder títulos de uso ou de propriedade a particulares”.

Esse mesmo entendimento prevaleceu no nosso Supremo Tribunal Federal, como se verifica do voto do preclaro Ministro Oscar Corrêa:

“Não dou pela violação dos textos constitucionais que asseguram a inviolabilidade dos domicílios e o direito de propriedade, se se opõe esse pretenso direito ao invocado pela recorrida, de livre acesso a bens públicos de uso comum do povo, pelo que lhe cabia defendê-los.

A defesa daqueles direitos, não se caracteriza, na hipótese, se não há como admitir direito contra direito. E não se atentou contra a propriedade e a inviolabilidade de domicílio dos impetrantes; apenas se impediu que, contra normas gerais locais, se estabelecessem restrições ao livre acesso a bens de uso comum do povo.

Nem representa isso abuso de poder ou desvio impugnável.

Não colhe, pois, a alegação de inconstitucionalidade da lei municipal n. 557/79, que não viola a Constituição Federal (art. 153, par. 1 e 2) ao proibir a existência de obstáculos ao livre acesso aos terrenos de marinha, praias, etc. Pelo contrário, objetiva assegurar outros direitos constitucionais garantidos, como a liberdade de ir e vir, a utilização de bens públicos ou de uso comum do povo, etc.”

A prevalecer a pretensão dos impetrantes esses outros direitos fundamentais de todos, ou da coletividade, haveriam de subordinar-se aos daqueles poucos, em compreensão ampliada e distorcida do direito de propriedade.

Ao invés de se reconhecer a este, pela asseguração de seu uso individual sem dano social, antes compatibilizando-se com a função social que se lhe reconhece, estar-se-ia a subordiná-lo ao critério pessoal dos indivíduos, em exacerbação que voltaria aos tempos remotos do absoluto “jus utendi fruendi et abutendi”, incompatível com a moderna concepção, constitucionalmente fixada no artigo 160, III, da Constituição Federal”.


(RE. 94.253-0/SP, 12.11.1982, Rel. Min. Oscar Corrêa)

Essa tendência está refletida, no Brasil, na Lei Federal n. 7661/88, também conhecida como Lei do Gerenciamento Costeiro.

Contrariando esse espírito, no julgamento da ação rescisória, prevaleceu a tese da autora no sentido de que o Acórdão proferido na ação civil pública — amparado expressamente no art. 10 da Lei Federal nº 7661/97 — não pode sobreviver por ser incompatível com uma lei local, editada na pendência de um recurso de apelação, que impõe a restrição de acesso de veículos às vias públicas de um loteamento, único caminho até a praia. Um voto vencido julgava improcedente a ação, mas simplesmente porque não deduzia do Acórdão questionado todos os seus efeitos. Entendia que a lei municipal não impede o livre acesso de munícipes à praia, mas apenas regula e disciplina o acesso de veículos automotores; enquanto o Acórdão “assegurou o acesso de pessoas, nada dispondo sobre o acesso de veículos”.

As nuanças na interpretação não alteram o fato: a decisão do Tribunal foi bem compreendida pela imprensa, e rendeu matéria jornalística intitulada “Praia volta a ser privatizada no Guarujá”(8). Mas esse “direito” de uso exclusivo das vias públicas e da praia, reconhecido pelo Acórdão, contraria a Lei Federal n. 7661/88. E por isso o pedido de reforma da decisão.

4 – Pedido de reforma da decisão recorrida

Diante do exposto, demonstrada a violação de que trata o art.105, inc.III, alínea a, da Constituição Federal, que, por sua vez, impediu que a Lei n. 7661/88 produzisse o desejado efeito concreto de garantir o acesso de toda a população às praias do litoral brasileiro, aguarda o Ministério Público do Estado de São Paulo seja deferido o processamento do presente recurso especial, bem como seu ulterior conhecimento e provimento pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, para que se julgue improcedente a ação rescisória.

São Paulo, 29 de novembro de 2004.

RODRIGO CÉSAR REBELLO PINHO

PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA

(1) Apelação Cível nº 58.669-5/0 – 5ª Câmara de Direito Público, jul. 02/09/99, Rel. Dês. Ralpho Oliveira.

(2) Cf. HERMANN HOMEM DE CARVALHO ROENICH – Recursos no Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, AIDE, 1997, p.167; PAULO CÉSAR BACHMANN ALVES – Recurso Especial, Juruá, 1997, p.47; RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO – Recurso Extraordinário e Recurso Especial, Revista dos Tribunais, 1993, p.113; TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ – Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., Atlas, 1994, p.196; PERSEU GENTIL NEGRÃO – Recurso Especial, Saraiva, 1997, p.31; NELSON LUIZ PINTO – Recurso Especial para o STJ, Malheiros, 1996, p.116.

(3) Cf. RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO — Recurso Extraordinário e Recurso Especial, São Paulo, RT, 2003, p. 173.

(4) Cf. José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 251.

(5) Cf. Problematica delle libertà costituzionali: parte speciale, 2ª ed., Padova: Cedam, 1992, n. 64, p. 274/278.

(6) Cf., ad exemplum e também para outras indicações bibliográficas, Paolo Giocoli Nacci e Fulvio Mastroviti, La libertà di circolazione e soggiorno, In: Giuseppe Santaniello (org.), Libertà costituzionali e limiti amministrativi, Padova: Cedam, 1990, p. 144 e ss.; Manlio Mazziotti di Celso, Libertà di circolazione e soggiorno, In: Enciclopedia del Diritto, v. VII, Milano: Giuffrè, 1960, p. 14 e ss.; C. A. Colliard, Libertés publiques, 6ª ed., Paris: Dalloz, 1989, p. 312 e ss.; Faustino Fernández-Miranda Alonso, In: Oscar Alzaga Villaamil (coord.), Comentarios a la Constitucion Española de 1978, t. II, art. 19, Madrid: Cortes Generales-Editoriales de Derecho Reunidas, 1997, p. 494 e ss.

(7) “Patrimônio costeiro e seus fundamentos jurídicos”. www.mma.gov.br/estruturas/orla/_arquivos/volume3.pdf. acesso em 20.11.2004.

(8) Matéria assinada por Thelio de Magalhães, publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, em 17 de junho de 2004.

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