Lei de arbitragem

Judiciário e a arbitragem não concorrem entre si

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21 de novembro de 2004, 20h33

Comemora-se, em 23 de novembro, o oitavo aniversário de vigência da Lei de Arbitragem e pareceu-nos justo que, aproveitando esse evento, fizéssemos um balanço de tudo o que logramos conquistar ao longo desse período. Essas conquistas o são da sociedade civil que, dessa forma, passou a contar com um meio ágil para a solução de controvérsias, elemento essencial para a manutenção do equilíbrio e estabilidade sociais.

Em várias oportunidades, utilizei-me do recurso de comparação da arbitragem ao ciclo da vida para nele buscar identificar cada uma das fases em que nos encontrávamos. A infância, a adolescência e a maturidade são parâmetros muito úteis para a melhor compreensão do desenvolvimento da arbitragem no Brasil.

A arbitragem, como já se disse ao cansaço, permaneceu dormente por décadas em nosso país. Muito embora prevista em lei, tínhamos as disposições a ela relativas como uma espécie de letra morta. As dificuldades impostas por um modelo superado, jogaram-na num estado de catalepsia profunda, sem que se tivesse qualquer esperança quanto à sua real utilidade.

No entanto, a promulgação e vigência, a partir de novembro de 1996, da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, fizeram como que num passe de mágica, a exemplo do que ocorreu no conto infantil, que a sociedade acordasse para a importância desse mecanismo extrajudicial de solução de controvérsias e nele encontrasse um meio eficiente de busca da estabilidade social.

Com o advento da nova Lei produziu-se um fenômeno de renascimento do instituto no Brasil, desenhada que foi de acordo com as mais modernas teorias e fundamentos desenvolvidos em países que dela se servem há muito tempo. A nova Lei colocou o Brasil na dianteira da modernidade, dotando-o de uma legislação afinada com as conquistas obtidas pela arbitragem ao longo dos anos em que esta, no Brasil, estava dormente.

O despertar para esse renascimento, no entanto, impôs a todos nós dificuldades e obstáculos; a vontade de fazer e realizar limitadas pelo estágio da infância. Assim foram os primeiros anos, pontuados de dúvidas e incertezas, de aprendizado e compreensão. Nada que fugisse às manifestações típicas do vigor infantil.

Mas é justamente na infância que se criam os alicerces de uma vida sólida. Aos poucos, engatinhamos pelo mundo da arbitragem, buscando nele encontrar a nossa identidade e criar a nossa própria história.

Com os olhos de hoje e a experiência acumulada podemos dizer que fizemos muito nessa fase. Estamos longe de atingir a maturidade, mas é certo que, nesse tema, não há atalhos. Somente a massa crítica de casos e a prática constante da arbitragem nos darão acesso à maturidade. Certo é que acordou ela mais tarde de seu sono, o que faz com que cada minuto seja precioso na construção de sua história.

Hoje já atingimos a adolescência e com ela enfrentamos a rebeldia natural dos adolescentes. Nossa tarefa, neste momento, é de canalizar tanta energia para um resultado pretendido, evitando-se que se perca nas atitudes impensadas e no desperdício. Mas a adolescência é também uma etapa de descobertas e de afirmação, onde se manifesta, em cada geração, a criatividade e, porque não dizer, a sabedoria dos mais jovens, livres de preconceitos e de vínculos com o passado.

Outra não tem sido a trajetória da arbitragem no Brasil. A olhos vistos, o instituto populariza-se quanto ao uso e consolida-se como alternativa viável. Mas como chegamos até aqui?

O caminho foi árduo, mas compensador. Combatemos o bom combate e vencemos batalhas, e certamente se seguirmos com disciplina o roteiro traçado, venceremos a guerra.

Em primeiro lugar, não se pode ignorar o importante papel desempenhado pelo marco legal. A Lei de Arbitragem, precisa em sua fundamentação teórica e flexível quanto à aplicação permitiu que pudéssemos contar com o instrumento valioso. Da Comissão Relatora do Anteprojeto, integrada esta por Selma Lemes, Carlos Alberto Carmona e Pedro Batista Martins, todos eles profissionais de reconhecida competência e de enorme cultura jurídica, ao Projeto do então Senador Marco Maciel, que, desde o início, o apadrinhou no Senado, nunca nos afastamos das premissas fundamentais e logramos chegar ao texto de lei que hoje conhecemos.

O legislador ousou e muito. Muito mais do que se pudesse imaginar, especialmente em relação a um instituto que havia estado mergulhado na mais profunda catalepsia. É sempre muito fácil olhar a lei com os olhos de oito anos depois e criticá-la, dizendo que, aqui ou acolá, as soluções deveriam ter sido outras. Mas essa lente é de todo imprestável. Importante é que examinemos o texto à luz do que então existia, ou não existia melhor dizendo, e entendamos os passos gigantescos que demos àquele momento.

Temos uma das leis mais modernas do mundo; rica em conceitos e instrumentos que asseguram a flexibilidade em sua aplicação. Uma lei que prestigia a autonomia da vontade das partes e que lançou fundações sólidas para o desenvolvimento do instituto.

É claro que poderá ela ser sempre atualizada, mas não será conveniente que o façamos nesta fase. Já que estamos nos digladiando com a rebeldia das adolescência, melhor será que esperemos poder contar com maior experiência para então pensarmos em revisá-la. Na verdade, muito pouco mereceria reparos e a falta desses em nada nos prejudicou ou impediu que progredíssemos.

Não podemos esquecer nunca que a estabilidade do marco legal é essencial para o desenvolvimento do instituto. Estamos construindo nossa história arbitral e, nessa fase, qualquer alteração poderá nos levar à insegurança e à desconfiança.

A história arbitral brasileira, em sua fase recente, pôde contar com um importante aliado — o Poder Judiciário. Este tem-se mostrado cooperativo e amistoso com a arbitragem. Não podemos esquecer a importância do julgamento da questão de constitucionalidade da própria Lei. Se bem que tivéssemos encarado esse evento como um acidente de percurso, certo é que a questão permitiu que a Suprema Corte se manifestasse sobre a constitucionalidade da Lei, é certo, mas que estendesse a decisão à própria constitucionalidade da arbitragem.

Ao longo dos anos, as decisões de tribunais estaduais, federais e as próprias decisões monocráticas demonstram um entendimento preciso do instituto e da Lei pelos membros do Judiciário, prestigiando-se a arbitragem. O Poder Judiciário brasileiro, no campo da arbitragem, foi confrontado com questões maiúsculas e não menos o foram as suas decisões. Se comparamos com nossa região, constataremos que o Brasil conta com uma jurisprudência arbitral invejável para tão pouco tempo de prática. Decisões há, é claro, que fogem à regra, mas, antes de mais nada, servem elas para confirmá-la.

Apesar do pouco tempo de prática, a arbitragem atraiu a atenção de juristas, advogados e especialistas. Nesse oito anos, criou-se no Brasil uma vasta literatura local sobre arbitragem. Livros, artigos, teses e trabalhos de conclusão de curso versam sobre aspectos da arbitragem e dispomos, hoje, de três prestigiosas revistas especializadas que difundem o conhecimento da arbitragem.

Mas nada disso valeria se não tivéssemos podido contar com a confiança dos usuários, sem os quais a arbitragem não existiria. Criada para solucionar as controvérsias em suas relações, ela se alimenta da confiança que os usuários nela depositam. Foi para eles que ela foi criada e, nesses oito anos, revitalizada. Sem essa confiança, a arbitragem seria como um texto teatral sem os atores.

Trabalho louvável, há de se reconhecer, é o que vem sendo desenvolvido pelas instituições arbitrais. Alvo de insegurança quanto a suas regras e operacionalidade, no estágio infantil, as instituições arbitrais nacionais se fortaleceram e se impuseram como o meio adequado para solução de controvérsias na adolescência.

Finalmente, os profissionais das mais diversas especialidades — advogados, engenheiros, contadores, administradores — que têm contribuído decisivamente para o sucesso da arbitragem, seja no aconselhamento às partes, seja na atuação como árbitros. Esses profissionais são parte muito importante na construção da história da arbitragem e, sem eles, muito pouco teríamos podido construir.

Não só os brasileiros compraram a arbitragem como meio de solução de controvérsias, mas tivemos e temos tido, ao longo dos anos, o apoio de expoentes da arbitragem no mundo. São tantos os que poderíamos mencionar, mas correríamos o risco de esquecer alguém. No entanto, um deles merece destaque especial. Destaque esse que se deve ao fato de ter sido o amigo de primeira hora da arbitragem brasileira, que conseguiu com sua sabedoria, lucidez e perspicácia olhar através da fase da infância e antever um futuro promissor e brilhante.

Destaque por não se ter limitado a contemplar, mas por haver arregaçado as mangas e se juntado aos brasileiros como se um deles fosse – e o era de coração – e por nos ter brindado com suas lições inesquecíveis e sua sabedoria incomensurável. Refiro-me ao saudoso Professor Philippe Fouchard, um francês amigo do Brasil e da arbitragem brasileira e que jamais mediu esforços para trazer a sua valiosa contribuição ao nosso trabalho. A ele seremos sempre reconhecidos.

Mas nosso trabalho não para por aí. Se conseguimos realizar muito nesses oito anos de vigência da Lei, muito resta a fazer. Precisamos sempre e a cada dia mostrar as vantagens da arbitragem e fazer com que os que por ela venham a optar, façam-no por convicção e não por conveniência para resolver as questões decorrentes da demora experimentada no Judiciário.

A arbitragem não pode ser escolhida como meio de solução de controvérsias em lugar do recurso ao Judiciário. Não se trata da substituição de uma via por outra — isso seria um enorme equívoco — mas da eleição da via mais adequada para a solução de uma controvérsia. Até porque a arbitragem não concorre com o Judiciário; seu campo é limitado. Até porque o Judiciário e a arbitragem não concorrem entre si, complementam-se e a cooperação do Judiciário com a arbitragem, fazem dela um instrumento seguro e somente com um Judiciário cooperativo e amistoso seremos capazes de nos qualificar como sede de arbitragens internacionais.

Por tudo isso, o balanço desses oito anos é muito positivo. Caminhamos a passos largos para a maturidade arbitral. Hoje, nos posicionamos em relação a nossos problemas, mas devemos estar atentos, de olhos bem abertos, para o que acontece em centros mais desenvolvidos. A observação do que lá acontece há de ser um fator importante nos oito anos que hão de se seguir até que possamos discutir essas questões de igual para igual, e aí sim, teremos atingido a maturidade plena. Esse caminho é inexorável.

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