Retrato do caos

Conheça o cenário caótico vivido pelo Judiciário paulista

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19 de novembro de 2004, 19h21

Oito anos se passaram e a Justiça paulista ainda não conseguiu mandar a júri popular quatro médicos acusados de prática de eutanásia na comarca de Taubaté. Este é apenas um dos casos que expõe a doença infantil do Judiciário: a demora em tomar decisões.

Os médicos Pedro Henrique Torrecillas, Rui Noronha Sacramento, Antônio Aurélio de Carvalho Monteiro e Mariano Fiori Júnior foram denunciados pelo Ministério Público em abril de 1996 por quatro homicídios, quando trabalhavam no Hospital Santa Isabel de Clínicas. Segundo a denúncia, com o intuito de instalar um programa de transplante de rins naquela cidade, os médicos passaram a fazer extrações de órgãos nos pacientes.

Depois de pronunciados pelo juiz da comarca para irem a júri popular, os réus recorreram ao Tribunal de Justiça paulista. A apelação foi negada, em março deste ano, por maioria de votos, pelos desembargadores da 6ª Câmara Criminal.

Insatisfeita com a decisão, a defesa recorreu de novo (embargos infringentes) e aguarda julgamento desde abril. O processo já acumula 50 volumes.

Exemplos parecidos não faltam, como o caso do jornalista Pimenta Neves, que matou sua ex-namorada, Sandra Gomide, por motivo torpe e sem dar-lhe chance de defesa. Ele confessou o crime para o qual há testemunhas e tem-se também a arma do crime. Contudo, ele está solto até hoje, aguardando o julgamento.

Desde 1989, os moradores de uma ocupação desordenada nas margens da represa Billings aguardam uma posição da Justiça. O processo corre na 4ª Vara da Fazenda Pública e até hoje não há sentença de primeira instância.

Entre 1989 e 1990 moradores ocuparam uma área nas imediações da represa, em zona de proteção de mananciais. O loteamento é conhecido como “Cantinho do Céu”, na zona Sul da capital paulista. Segundo levantamento, hoje já são mais de 50 mil pessoas morando no local.

A briga judicial não se resolve porque de um lado o estado diz que no caso de uso e ocupação de solo a competência para disciplinar e fiscalizar é do Município. De outro, a prefeitura alega que a situação no local é de proteção ambiental, matéria de competência estadual. E assim o tempo vai passando sem que a Justiça se manifeste.

Mais de 12 anos depois do massacre do Carandiru que resultou na morte de 111 presos, apenas um dos 84 réus acusados foi a julgamento. O coronel Ubiratan Guimarães, que hoje é deputado estadual, recebeu em junho de 2001 a maior condenação da história brasileira (632 anos de prisão pela morte de 102 dos mortos e cinco tentativas de homicídio). Por ser réu primário, recorre da sentença em liberdade.

O massacre ocorreu em 2 de outubro de 1992, após a Polícia Militar invadir o Pavilhão 9 da penitenciária, na zona norte da cidade, com o objetivo de conter uma rebelião. O episódio teve repercussão internacional. A Casa de Detenção do Carandiru foi desativada em setembro de 2002. Em dezembro daquele ano, três pavilhões foram implodidos, inclusive o 9.

Entraves para a economia

Que a Justiça é morosa e ineficiente todo mundo sabe. Mesmo um estrangeiro, em rápida passagem por aqui, nota esse cenário caótico. O relator da ONU sobre independência de magistrados e advogados, o argentino Leandro Despouy, disse recentemente que o Brasil é um país no qual seus habitantes, sobretudo os mais pobres, não têm acesso ao Poder Judiciário e vivem à mercê de desrespeitos aos direitos humanos.

O problema é que o Judiciário brasileiro não tem estrutura compatível para responder com agilidade, eficiência, presteza e efetividade à demanda forense. A recente greve do Judiciário estadual paulista, que durou 91 dias, foi a prova cabal de que as qualidades reclamadas da Justiça exigem recursos humanos, materiais e planejamento — instrumentais que custam muito dinheiro. A greve, também, deixou várias feridas não cicatrizadas.

Segundo relatório da Comissão de reforma do Judiciário, em São Paulo, da maneira como está organizada, a Justiça provoca, anualmente, um prejuízo de R$ 30 bilhões às empresas. O último Exame Fórum — organizado pela revista Exame em agosto — concluiu que o Judiciário é um dos principais entraves ao crescimento do país. O Fórum teve a presença do economista do Banco Mundial Simeon Djankov que apresentou dados levantados pela sua equipe.

No diagnóstico traçado pelo especialista do Banco Mundial, o Brasil possui uma das legislações trabalhistas mais rígidas entre os 145 países pesquisados. A Justiça brasileira é uma das mais lentas do mundo. Uma simples disputa comercial leva, em média, 566 dias para ser resolvida. Na América Latina, só Bolívia, Guatemala e Uruguai têm uma Justiça mais lenta. Ainda segundo o estudo, na Holanda a mesma disputa é resolvida em apenas 48 dias.

Estudo feito pelos economistas Pérsio Arida, Edmar Bacha e André Lara Resende concluiu que uma das razões dos juros serem tão elevados no Brasil é a falta de estabilidade jurídica. Outro trabalho, de autoria do economista Armando Castelar Pinheiro, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), garante que a demora de 10 anos nas decisões judiciais tem influenciado na alta dos spreads bancários por conta das muitas possibilidades jurídicas que o tomador de empréstimo encontra para não pagá-lo no tempo previsto.


É ilusão e até mesmo equívoco considerar que a lentidão do Judiciário para dirimir divergências é um mal que diz respeito unicamente a administração pública. A falta de celeridade da Justiça é responsável pela desorganização da economia ao alimentar a dúvida entre os investidores e de disseminar a sensação de impunidade.

Raio-X no TJ paulista

O maior tribunal estadual do país é um paradigma desse quadro de morosidade. O Tribunal de Justiça de São Paulo vive hoje sua mais profunda crise de gestão: os serviços processuais estão estrangulados e a estrutura administrativa em bancarrota. Falta profissionalização na administração e produtividade jurisdicional. Não há plano de cargos e salários nem cursos e treinamentos para os funcionários. Com tantas carências, quem recorre aos serviços judiciários se depara com um paquiderme, lento, burocrático, ineficiente, que vive de costas para a sociedade.

Os números são assustadores: 1.596 juízes e 131 desembargadores, 49.262 funcionários, sendo 39.753 ativos e 9.509 aposentados. Cerca de 94,5% da verba do Tribunal de Justiça é destinada ao pagamento de salários de funcionários e magistrados. Este ano, o TJ-SP consumiu cerca de 2,7 bilhões do orçamento do estado. Há mais de 11 mil cargos vagos de funcionários e outros 165 de juízes. O Judiciário paulista oferece hoje 131 residências oficiais para magistrados e os juízes do interior têm o dobro de processos para julgar de seus colegas da capital. Por ano, são registradas cerca de 2,8 milhões de sentenças em primeira instância e o TJ julga cerca de 110 mil recursos.

Toda essa conta foi feita pelo próprio tribunal, em relatório publicado pela Imprensa Oficial. E tem mais: um processo em andamento no Tribunal de Justiça paulista custa ao bolso do contribuinte, em média, R$ 214,00, em primeira instância, e R$ 1.126,00 até o trânsito em julgado. E, atualmente, estão em andamento, só na primeira instância, nada menos do 11,7 milhões de processos. Desse total, 2,7 milhões correm na capital enquanto os outros 8,9 milhões tramitam no interior. Esses números representam um crescimento de 12,49% em relação ao ano anterior e, segundo o próprio Tribunal, “é o maior número de feitos em andamento na história do Judiciário paulista”.

Outro dado alarmante é que a procura pelo Judiciário foi várias vezes superior ao crescimento da população. No ano passado, para um aumento de 12,49% do número de processos em andamento, a população cresceu apenas 1,14% (na capital o aumento populacional foi de 0,73% enquanto no interior chegou a 1,64%). A conseqüência é que no final do ano a quantidade de processos em andamento para cada grupo de 10 habitantes atingiu 3,03 — um aumento de 10,99% em relação ao ano anterior. Ou, em outras palavras, a população do estado de São Paulo está hoje perto de 39 milhões de habitantes e o Judiciário paulista está abarrotado de 11,7 milhões de processos.

Anualmente, cerca de 5 milhões de novos processos são distribuídos na primeira instância. No ano passado, foram 5.845.111, com um crescimento de 12,96% em relação ao ano anterior. Esse número foi afetado pela demanda reprimida por força da greve dos servidores, ocorrida em 2001, que durou 81 dias e praticamente paralisou os serviços forenses durante quase três meses.

O número de audiências feitas no ano passado, em primeira instância chegou a 1,532 milhões. As comarcas do interior responderam por 75% desse total. Este ano, o número de audiências foi prejudicado pela nova greve dos servidores, situação que deve se complicar nos próximos anos.

O Judiciário paulista responde anualmente por cerca de 2,8 milhões de sentenças registradas. Um dado relevante é que a relação entre a quantidade de sentenças registradas no ano e o volume de novos processos distribuídos, caiu de 0,54 em 2002 para 0,49 no ano passado, o que revela redução do nível de produtividade na primeira instância. Em 2001, esse índice tinha sido de 0,51.

No entanto, o dado que melhor reflete a agilidade do Judiciário paulista é o número de processos encerrados. Pelos dados do Tribunal de Justiça esse é o principal gargalo do Judiciário paulista. No ano passado, esse índice teve um decréscimo de 9,96% em relação ao ano anterior. Enquanto em 2002, a primeira instância conseguiu concluir o julgamento de 5.022.890 processos, no ano passado só conseguiu atingir 4.522.332 de julgamentos.

O mesmo aconteceu com o índice de produtividade da primeira instância, medido pela correlação entre a quantidade dos processos distribuídos e a de processos em andamento. O Judiciário só conseguiu renovar cerca de 50% do estoque de processos em andamento na capital e 42% nas comarcas do interior.

Cada um dos cerca de 1.515 juízes de primeira instância têm em mãos cerca de 3,8 mil processos, conseguiram concluir 2,9 mil, fazer 1.012 audiências e registrar perto de 2 mil sentenças.


Vale ressaltar que com aproximadamente 22% da população brasileira, o estado respondeu no ano passado por cerca de 49% do movimento judiciário nacional na Justiça Comum, bem inferior a de 1999, quando São Paulo respondeu por 52%.

O grande problema do Judiciário paulista reside no número de feitos julgados. Em termos de processos que deram entrada na Justiça Comum (11.949.825 no território nacional contra 5.845.111 no estado de São Paulo) a diferença é de apenas 50%, mas quando os dados são sobre feitos julgados a diferença é exorbitante (8.193.194 no território nacional contra 2.883.873 na Justiça paulista).

Os dados financeiros são os que mais chamam a atenção no relatório, que inclui apenas as contas do TJ e da primeira instância estadual, excluindo a Justiça Militar e os três Tribunais de Alçada de São Paulo, que ainda são totalmente independentes. O manejo dos R$ 2,7 bilhões que o tribunal gasta por ano ajuda a explicar a situação da Justiça estadual, considerada uma das mais lentas do Brasil.

Nada menos do que 94,5% do orçamento da Justiça — de R$ 2,11 bilhões — são gastos com pessoal. Esse montante é gasto com 49.686 funcionários, dos quais 8.383 são inativos. Desse total, 1.699 são magistrados, que dividem R$ 453,934 milhões, o que dá uma média mensal de R$ 22.265,00 gastos por juiz.

Esse comprometimento das verbas do TJ-SP é um dos responsáveis pelos 11.109 cargos vagos na Justiça paulista e pelas 475 varas já criadas, mas ainda não instaladas em todo o estado.

E isso reflete diretamente no aumento da demora processual: hoje há 11.747.103 processos em tramitação na primeira instância do Judiciário de São Paulo, número 12,49% superior ao de 2002. Na segunda instância, a situação é ainda pior: há hoje 208.652 processos aguardando a distribuição, que leva mais de quatro anos. Em 1999, havia apenas 56.857 processos parados. E a situação tende a piorar. A relação de processos que entram na Corte aumenta em relação aos casos em que os magistrados sentenciam. No ano passado, houve um déficit — diferença entre o número de processos que ingressaram no tribunal e o número de processos que foram julgados — de 57%.

Para conseguir investir e tentar equilibrar essa situação, o TJ-SP busca alternativas de renda. A mais imediata é o incremento do Fundo Especial de Despesas do tribunal, que neste ano deverá ter uma receita 119% superior a do ano passado. A grande vantagem do fundo é que ele não é previsto no orçamento do estado, já que é financiado com recursos próprios do tribunal, com a locação de espaços em fóruns, convênios e cópias de processos.

O maior responsável por este salto, entretanto, será o governador do estado, que no fim do ano passado sancionou a Lei nº 11.331, que direciona 3,3% de todo o valor obtido com serviços cartoriais e notariais à Justiça. Outra opção de financiamento da Justiça é o autogerenciamento das custas processuais, que normalmente são de 1% do valor de cada processo e o estado se compromete apenas com a folha de pagamento.

TJ-SP em números

Magistrados — 1.727

Funcionários Ativos — 39.751

Habitantes por magistrado — 22.414

Unidades Judiciárias Instaladas — 1.838

Feitos em andamento — 11.747.103

Feitos distribuídos — 5.845.111

Sentenças registradas — 2.883.873

Recursos Julgados no Tribunal de Justiça — 110.296

Prédios ocupados — 722

Receitas do Fundo Especial de Despesas/2003 — R$ 135 milhões

Receitas do Fundo Especial de Despesas/2004 — R$ 211 milhões

Valor das licitações realizadas — R$ 65,5 milhões

Valor dos Contratos em Vigor — R$ 130 milhões

Investimento em Informática — R$ 42,8 milhões

Custeio total — R$ 2.660,3 bilhões

Custo por processo em andamento — R$ 226,45

Dotação orçamentária de 2004 — R$ 2.708,6 bilhões

Orçamento do TJ paulista nos últimos cinco anos

2000 — R$ 1.991.102.850

2001 — R$ 2.053.692.310

2002 — R$ 2.298.983.187

2003 — R$ 2.669.426.227

2004 — R$ 2.708.577.048

Caminho das pedras

O advogado Paulo Esteves diz que o problema é simples de ser resolvido. “Basta que o Judiciário obedeça a lei”, afirma. Segundo ele, quando a chefia do Judiciário paulista afirma que há represamento de processos está apenas maquiando o descumprimento de prazo para distribuição de processos. “Entre os princípios constitucionais está o da eficiência e o Judiciário faz vistas grossas a esse princípio”, completa.

Para Esteves, eficiência representa a relação entre o esforço da administração pública para cumprir seu papel e o resultado obtido. Segundo ele, o produto final do Judiciário é a sentença, que para ser feita no volume de hoje exigido necessita de planejamento e organização.

Como acentuou o ex-ministro da Justiça Saulo Ramos, os defeitos do Judiciário são principalmente: demora nas decisões, dificuldades de punir os juízes corruptos ou displicentes, custo elevado das demandas, sobretudo em grau de recurso para os tribunais superiores, nepotismo em alguns estados, e, principalmente, uma legislação processual obsoleta e falta de modernização da infra-estrutura dos juízos e tribunais.

Para ele, desejam vestir camisa-de-força em quem sofre de anemia, em vez de dar-lhe alimentação adequada. E aponta que a solução para os males do Judiciário é a modernização dos instrumentos de trabalho, em material e potencial humano, maior rigor no recrutamento por concursos, mediante remuneração adequada que atraia gente capaz, leis processuais ágeis e descomplicadas e reforma da lei orgânica.

O desembargador Elias Tâmbara, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, concorda com a última parte do diagnóstico de Saulo Ramos. Para ele, a legislação processual arcaica é a responsável pela lentidão na conclusão dos feitos. “Uma reforma processual acompanhada de investimentos na modernização do Judiciário vão diminuir os principais problemas da Justiça”, aponta do presidente do TJ paulista.

O procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo César Rebello Pinho, vê com preocupação a lentidão na distribuição de processos, que geralmente chega a cinco anos. De acordo com ele, essa situação não interessa à sociedade, mas aos criminosos. “A solução mais urgente é uma reforma processual, capaz de agilizar os feitos represados, dando celeridade aos julgamentos e demonstrando à sociedade que a Justiça é justa e está ao lado dela”, conclui o chefe do Ministério Público paulista.

Algo precisa ser feito. E não é apenas a reforma do Judiciário do Congresso. O preço do imobilismo pode ser a barbárie. O pai da jornalista Sandra Gomide, a moça assassinada pelo também jornalista Pimenta Neves, tem dito para quem quiser ouvir. Se o criminoso não for condenado, ele, o pai, pretende aplicar a pena capital ao assassino de sua filha pessoalmente. Se outras pessoas passarem a professar a mesma crença de João Gomide, será inevitável a dúvida: para que serve uma justiça que não funciona?

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