Excelentíssimo juiz

Decisão que mandou juiz ser chamado de doutor não é retrógrada

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13 de novembro de 2004, 6h09

Ouvimos dizer que o advogado Quintino Cunha (salvo engano) fez, certa feita, uma defesa no júri que nos ajuda a entender a questão envolvendo o magistrado que exigiu ser tratado por doutor. O cliente de Quintino era um homem simples, trabalhador do campo, no sertão brasileiro, que sempre passava por uma cidadezinha puxando pelo laço sua vaca e dizendo “vamos, vaca véia, vamos, vaca véia”.

Nesta cidade, todo dia, um grupo de meninos o insultava, cercando-o, empurrando-o, empurrando-se sobre ele, desrespeitando-o. E ele sempre dizia, “meninos, pare com isso, meninos, pare com isso”. Todo dia a mesma coisa e a mesma advertência, durante anos a fio. Até que um dia, o trabalhador passava novamente pelo vilarejo, puxando sua vaca velha, sob aquele sol impiedoso de sempre, e sofreu todos os insultos de novo. Ele sacou um punhal e, quando um menino foi empurrado por outro sobre ele, feriu-o mortalmente.

Ninguém queria defendê-lo perante o júri popular, pois todos tinham a causa como perdida. Quem iria defender um velho que assassina uma criança por motivo tão fútil? – perguntavam-se todos. Quintino Cunha aceitou a defesa do vil criminoso. Na sessão de julgamento, dada a palavra à defesa, ele se levantou e disse:

— Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz, Excelentíssimo Senhor Doutor Promotor de Justiça, Digníssimos Jurados, Respeitáveis Senhoras e Senhores aqui presentes.

Sentou-se e começou a escrever em silêncio. Fez isto por uns 15 minutos, quando levantou e cumprimentou a todos novamente, da mesma forma polida, e voltou a se sentar por mais uma vez 15 minutos depois. Quando já havia repetido o procedimento umas cinco vezes, o juiz se impacientou:

— O senhor está atentando contra a dignidade da Justiça, está zombando de todos. Vou representar contra o senhor. Quintino, então, levantou-se e disse:

— Farei a defesa — e repetiu todas as saudações educadas, voltando a se sentar calmamente.

O juiz, então, bem como todos os demais, ficaram alvoroçados. O magistrado, suspendendo o julgamento, chamou a força policial para retirar o advogado do recinto. Quando ela estava chegando, o advogado, mais uma vez, exclamou:

— Farei a defesa – repetiu as saudações e arrematou — se todos aqui, confortavelmente acomodados, na sombra, sendo tratados com respeito e civilidade, já ficaram nervosos e quase fora de si com a repetição das minhas saudações, imaginem (principalmente os senhores e as senhoras, digníssimos jurados) se fôssemos tratados continuamente com desrespeito e humilhação, por anos a fio, enquanto estivéssemos trabalhando para ganhar nosso sustento debaixo de um sol escaldante. O que não seríamos capaz de fazer nesta situação? O réu foi absolvido por unanimidade.

Contamos esta história para dizer que é difícil avaliar o que o Excelentíssimo Senhor Juiz, autor da ação comentada, sofreu para chegar a ponto de ir ao Poder Judiciário pleitear o tratamento de senhor e, ou doutor. Em primeiro lugar, não fica claro, pelas reportagens sobre o caso, se ele queria ser chamado de doutor ou de senhor. Parece que nem de senhor era chamado, embora os outros condôminos o fossem. Tem-se a impressão de que ele só queria tratamento igual ao dos outros moradores. Não conseguiu, exigiu o de juiz. Chacotas também ferem a honra!

A reportagem do jornal O Estado de São Paulo de 9 de novembro, deixa antever que a situação vinha de longe. Que a síndica foi acionada, mas os pedidos verbais não surtiram efeitos.

Não precisamos dizer que um “simples” porteiro pode transformar a vida de um condômino num inferno. A propósito, no âmbito do Ministério Público Federal, instituição que um dos autores tem a honra de integrar como membro e o outro como servidor, já houve um caso de um segurança que infernizou a vida de uma procuradora da República. Como diz o sábio dito popular: “pimenta nos olhos dos outros é refresco”.

Entendemos que a decisão obtida pelo magistrado (que obrigava os empregados do condomínio a dispensar o tratamento de doutor ao condômino/juiz) não é um retrocesso. Antes as pessoas buscarem tutelar sua honra no Judiciário do que fazer como o cliente do advogado Quintino. E também pensamos que o juiz estava certo em pedir que o caso não fosse comentado, pois a exposição disto à imprensa poderia atingir fins contrários aos da tutela jurisdicional – expor o autor a situações constrangedoras, como está, exatamente, ocorrendo. E na Lei Orgânica da Magistratura não há algum dispositivo obrigando que os juízes sejam chamados de Excelência, assim como existe no art. 19 da Lei do Ministério Público (LC nº 75/93)?

Joel Silveira (Revista Istoé, nº 1825, de 29.09.04) certa feita tentou corrigir Getúlio Vargas, que o chamara de doutor, dizendo que não era doutor, pois tinha cursado apenas até o primeiro ano de direito e depois teve de trabalhar. A resposta do presidente da República foi: “Como diziam meus professores, os frades de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, doutor é aquele que é douto em alguma coisa. O senhor é douto em jornalismo.”

Os juízes e os membros do MP, ao nosso ver, não são cidadãos comuns mesmo. Não por nobreza ou qualquer coisa feudal do gênero. Mas havemos de convir que se exige desses profissionais muito mais do que de qualquer outro cidadão, especialmente no cumprimento da lei. Natural que a mais deveres, correspondam mais direitos, inclusive com as honrarias próprias.

Imagine se a situação fosse inversa. Se fosse o juiz que tratasse o porteiro com um qualificativo qualquer hoje entendido como politicamente incorreto? Seriam inúmeras as associações que sairiam em defesa do porteiro, especialmente dizendo: “como pode UM JUIZ dizer uma coisa dessa?”

E fazemos uma pergunta: será que alguém risca o “Doutor” aposto antes do nome, que vem na correspondência, e a devolve ao remetente, para que este a reenvie sem o “Doutor”? Ou será que se sente envaidecido pelo tratamento trivialíssimo no Brasil?

O autor membro do MP já viu colega reclamar por sentar em cadeira de espaldar menor que o do juiz. Já viu colega reclamar por ser chamado de ilustríssimo, enquanto o juiz era tratado por excelentíssimo.

Já viu a classe dos advogados também reclamar os mesmos tratamentos dispensados aos juízes e membros do Ministério Público, até por serem essenciais à função jurisdicional do Estado. Só ainda não vimos “boi voar”, mas há quem garanta que lá pelas bandas do Maranhão ou Pernambuco isso já ocorreu.

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