Segurança social

Direito adquirido é instrumento estabilizador das relações humanas

Autor

  • João Ibaixe Júnior

    é advogado criminalista e sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. É também mestre em Filosofia do Direito. Foi coordenador da assessoria jurídica da Febem e Delegado de Polícia.

11 de novembro de 2004, 15h30

Sabe-se que o Direito é dinâmico, face à sua natureza social que, diante da sucessão dos fatos extremamente intensa, principalmente nos dias atuais, o obriga a se modificar constantemente, quer em sua forma, quer em sua interpretação, a fim de, com segurança, efetividade e eficácia, poder normatizá-los, visando a paz e o bem-estar da sociedade.

Em virtude disto, as normas jurídicas têm um período de vigência determinado pelo começo e fim de sua obrigatoriedade, decorrendo daí que elas nascem, vivem e morrem. Seu nascimento diz respeito à precisão da sociedade em ver uma determinada situação regulamentada e, via de conseqüência, resguardada pelo ordenamento jurídico. Sua vida relaciona-se à eficácia da norma em ser sempre utilizada para direcionar, dirigir, orientar, disciplinar a situação para qual ela surgiu, não sendo isto possível todas as vezes, de onde decorrem as regras interpretativas e de aplicação das normas jurídicas.

Finalmente, chega-se à sua morte, como decorrência dos passos, hoje velozes, do caminhar do homem. Palavra grave para se dizer a respeito da norma jurídica, mas, sim, também ela perece com o decurso inelutável do tempo. Envelhece, perde seu vigor, sua força, sua eficácia, sua razão de vida. Deixa de gerar efeitos desejáveis e, assim, tem de ser substituída. É a própria sociedade quem controla esta substituição ao demandar a criação de outra norma que venha a regular a mesma situação de outra maneira, ou, com a simples revogação daquela norma anterior.

Com a revogação da norma anterior e a existência de nova norma, dúvidas surgem com relação aos efeitos de ambas em face de situações existentes, as quais podem estar consumadas totalmente ou não.

Com certeza, aquelas situações já consumadas, onde todos os atos ocorreram e se extinguiram na vigência da norma anterior, sendo seus efeitos totalmente produzidos, não são jamais alcançadas pela nova norma, não sendo alterados ou destruídos os resultados delas decorrentes.

A própria natureza humana impõe que o passado seja inviolável. Com efeito, o homem que não pode se julgar seguro com relação à sua vida passada seria o mais infeliz dos seres. O passado pode deixar amargos dissabores, mas encerra, por definitivo, todas as incertezas. Somente o futuro é gerador de hesitação e dúvida e estas são suavizadas, amenizadas pela doce esperança, a fiel companheira da fraqueza do homem.

Como poderia o sistema de leis e normas, fruto do tecido social, modificar esta condição inerente à humanidade? Não, não será a lei a fazer reviverem-se as dores, destruindo-se a suave e firme esperança.

Defronta-se, contudo, com certas situações cujos efeitos não se realizaram. Iniciaram-se elas na vigência da norma anterior, mas suas conseqüências serão produzidas já sob a égide da norma atual. Encontra-se a solução num princípio denominado irretroatividade das leis. Mas não é sobre ele que se irá tratar aqui.

Para este estudo singelo, interessa apenas a análise de um ponto de enfoque deste tortuoso problema, dele decorrente. Fala-se do chamado direito adquirido.

Deve-se dizer inicialmente que o direito adquirido é um princípio jurídico cujo escopo é o resguardo da tranqüilidade e da paz sociais, em face de novas normas jurídicas. É uma proteção à condição humana e ao bem-estar da sociedade.

Lembrando valiosas lições doutrinárias pode-se ter visão conceitual do instituto. A primeira delas advém da construção de Francesco Gabba (“Teoria della Retroattività delle Leggi”, Roma, 1891,vol.1, p.191), segundo o qual “é adquirido todo direito que: a) seja conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato se viu realizado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova a respeito do mesmo; e que b) nos termos da lei sob o império da qual se verificou o fato de onde se origina, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu”.

Conceito inicial, destaca o aspecto patrimonial e a aquisição, sem preocupações com o momento do exercício. Porém, por suas características, é pedra fundamental para construção do instituto.

Na doutrina nacional pode-se citar Celso Bastos, para quem direito adquirido, em que pese a dificuldade desafiante de sua conceituação, “consiste na faculdade de continuar a extraírem-se efeitos de um ato contrário aos previstos pela lei atualmente em vigor, ou, se preferirmos, continuar-se a gozar dos efeitos de uma lei pretérita mesmo depois de ter ela sido revogada. Portanto, o direito adquirido envolve sempre um dimensão prospectiva, vale dizer, voltada para o futuro. Se se trata de ato já praticado no passado, tendo aí produzido todos os seus efeitos, é ato na verdade consumado, que não coloca nenhum problema de direito adquirido”. (“Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, 1989, vol.2, p.193).

No âmbito do Direito Previdenciário, alguns doutrinadores trataram do tema, dentre eles Feijó Coimbra, o qual ressaltou a importância do elementos formativos para a integração de uma situação jurídica imutável, deixando claro, assim, que, para a existência do direito adquirido, seu titular deve reunir todas as condições necessárias para seu exercício. (“Mil perguntas e respostas de Direito Previdenciário”, ed.Trabalhistas, 1985, p.90).

Pode-se tentar um singelo conceito de direito adquirido, com suporte nas preciosas lições do mestre Wladimir Novaes Martinez, com o simples objetivo de situar o leitor, sem responsabilidade pelos excessos ou deficiências ao citado especialista, a saber:

Faculdade personalíssima, integrada ao patrimônio material ou moral do titular, ocorrente quando este reúne todas as condições ou elementos para configuração ou exercício de um direito, ou ainda, caracterização de uma situação jurídica, ficando a seu critério, dentro das condições adequadas, a realização ou concretização desse direito ou situação.

Em magistral síntese, diz Wladimir Novaes Martinez: “é o direito que se pode exercer” (“Direito Adquirido na Previdência Social”, LTr, 2000, p.71).

Direito adquirido e expectativa de direito

Com alguma freqüência, o direito adquirido é confundido com a expectativa de direito. Do primeiro já se tratou, destacando-se a formação ou reunião de todos os elementos que caracterizam o exercício do direito.

Ao se falar em expectativa de direito, deve-se ter em mente a existência de um titular de um eventual direito, porém, sem que este esteja plenamente configurado ou sem a ocorrência de todas as condições para seu possível exercício. Vislumbra-se um direito, mas este ainda não foi alcançado até a superveniência da nova lei; ele não se concretizou, não se efetivou, não reuniu todos os elementos necessários para sua formação. Permaneceu tão somente no campo da esperança da realização por parte de seu titular.

Utilizando-se do conceito aristotélico de potência e ato, pode-se dizer que a expectativa de direito é uma potência, é um direito em potencial, mas não se realiza, não se forma, não recebe vida, não se transforma em ato, não se podendo dele fazer uso ou meio de ação.

Com o direito adquirido ocorre justamente o oposto. De potência latente, ele se transforma em ato, vive, é sensível. Dele o titular pode usufruir, porém, lhe é facultado a escolha do momento e da oportunidade mais adequada.

Enquanto a expectativa de direito é uma esperança, o direito adquirido é uma realidade viva, a ser apresentada quando seu titular assim o desejar.

Direito adquirido e Previdência Privada

A presença do direito adquirido no âmbito do Direito Previdenciário é incontestável e inatacável. Decorre inicialmente, como regra geral e garantia fundamental, do artigo 5º, inc. XXXVI, da Carta Magna, o qual manda a lei respeitar o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido. Elevado está, desta maneira, em princípio constitucional inalterável, posto que presente no elenco dos direitos individuais, consubstanciando-se assim em cláusula pétrea.

O previdenciarista Wladimir Novaes Martinez, mais uma vez, nos socorre, ao elucidar, sobre o direito adquirido, que “o exame histórico da legislação previdenciária revela ter sido razoavelmente respeitado. Em inúmeras oportunidades o legislador ordinário o consagrou, cumprindo a Carta Magna e a Lei de Introdução ao Código Civil” (“Princípios de Direito Previdenciário, LTr, São Paulo, 2001, p.259).

Ao passar-se para a previdência complementar, o enfoque não é diferente, estando o instituto vivo e presente, não apenas como recurso técnico interpretativo, mas também como fonte de direito positivo, cujo exemplo encontra-se no art.17 da Lei Complementar nº 109 de 29.05.01, que determina ser assegurado ao participante, que cumpriu os requisitos para obtenção dos benefícios previstos, a aplicação das normas vigentes à data da formação de tais requisitos.

Wladimir Novaes Martinez, na seara do Direito Previdenciário Complementar, o elege como princípio aplicável à interpretação deste conjunto de normas, observando que “tem de ser observado, quando alinhavado e aperfeiçoado, para preservação da ordem e tranqüilidade jurídica… Seu alcance abrange não só o benefício, em tese, como seu valor” (Primeiras Lições de Previdência Complementar”, LTr, São Paulo, 1996, p.61).

Diante de todo exposto conclui-se que o direito adquirido é conquista da humanidade e representa notável instrumento estabilizador das relações humanas, estando presente em todos os segmentos do Direito, dentre eles o Previdenciário, tanto na esfera Social quanto na Complementar.

É a preservação de uma situação já concretizada anteriormente, cuja nova lei obrigatoriamente tem de respeitar, a fim de se preservar principalmente a segurança social, por todos sempre almejada.

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  • é advogado criminalista e sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. É também mestre em Filosofia do Direito. Foi coordenador da assessoria jurídica da Febem e Delegado de Polícia.

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