Falta de equilíbrio

Marta Suplicy priorizou população carente e ignorou classe média

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10 de novembro de 2004, 10h32

Toda vez que se pensa em melhorar a distribuição de renda no Brasil, a primeira idéia que ocorre aos governantes é sacrificar a classe média. E, aqui, quando se fala em classe média, é classe média mesmo, não é mero eufemismo para encobrir a noção de classe alta que, diante da pobreza geral, soa antipática. Trata-se de tirar de quem tem, mas tem pouco.

Para evitar o choque da abordagem explícita das diferenças econômicas, em nosso país ninguém mais pertence ao segmento dos muito ricos nem à categoria dos muito pobres. Estes últimos são chamados de excluídos, carentes ou desfavorecidos, enquanto os milionários simplesmente desapareceram do vocabulário político. Sobrou a designação “classe média”, politicamente correta, pois sua existência não ofende os pobres nem perturba os ricos.

Trata-se da faixa populacional mais visada pelos impostos, taxas, medidas econômicas confiscatórias e arrocho salarial. Esse nível intermediário é composto de empregados em geral, profissionais liberais, autônomos, intelectuais, pequenos empresários, professores, funcionários públicos, jornalistas. Não passam necessidades, mas têm orçamento apertado. Qualquer novo encargo pode desequilibrá-lo.

Os políticos de visão abrangente, que governam para todos, não desprezam os interesses dos remediados, nem procuram fazer justiça social tirando daqueles que, a duras penas, conseguiram melhorar sua qualidade de vida. Os pobres são em maior quantidade, infelizmente, e investir na diminuição da pobreza é prioridade, mas o peso dos medianos não pode, de forma alguma, ser ignorado.

Quanto maior a classe média de um país, maior o seu desenvolvimento. É ela que forma a opinião pública, consolida ou destrói reputações, fomenta a economia e fornece quadros importantes para as instituições. As últimas eleições municipais evidenciaram isso.

Em São Paulo, por exemplo, Marta Suplicy priorizou a população carente, no que fez bem, mas ignorou os problemas da classe média e foi esse seu maior erro. Imediatamente após assumir o cargo, aumentou o IPTU e instituiu taxas para tudo, onerando excessivamente o contribuinte. Criou corredores de ônibus em vários locais, o que favoreceu o transporte público, mas complicou terrivelmente o trânsito para os automóveis particulares.

Como se não bastasse, instalou radares de detecção de velocidade que multam uma quantidade absurda de veículos por dia, não porque os paulistanos são transgressores por natureza, mas em razão dos limites de velocidade impraticáveis e irreais que foram fixados. Consta que as empresas terceirizadas que instalaram os radares e as máquinas fotográficas para flagrar infratores recebem porcentagem pelas multas aplicadas, situação que criou uma lucrativa “indústria” e aterrorizou os proprietários de veículos. Além disso, o resultado da arrecadação não foi percebido na melhoria do trânsito.

Em resumo, a qualidade de vida dos habitantes da cidade não evoluiu. Houve melhoramentos cosméticos, mas a poluição ambiental, que é problema da maior gravidade por afetar diretamente a saúde pública, não foi objeto de preocupação. A reforma do Mercado Municipal e a revalorização da região central foram relevantes investimentos estéticos, mas a fonte colocada no lago do Ibirapuera, local altamente poluído, atemorizou pelo risco de espalhar coliformes fecais no ar. Apesar da beleza do chafariz, a limpeza da água, com o saneamento do lago, teria sido muito mais importante.

Marta tem razão quando afirma existir preconceito contra a mulher. Não é nada fácil ser mulher na política, assim como em qualquer outro cargo de poder. Estamos atravessando um estágio de desenvolvimento social no qual não é vedado à mulher pleitear uma posição de comando e, por vezes, eleger-se com o voto popular. No entanto, manter-se no cargo é ainda mais difícil do que chegar a ele. Mesmo quando o preconceito não se manifesta no momento da eleição, pode surgir fulminante durante a gestão administrativa.

No entanto, não foi o preconceito que derrotou Marta nas últimas eleições, tampouco se podendo atribuir seus índices de rejeição à separação conjugal e ao novo casamento. A vida pessoal das celebridades interessa ao povo, mas, não ocorrendo nenhum escândalo, é mera curiosidade e não interfere na opção política dos cidadãos.

A tentativa canhestra de atribuir a culpa pela derrota eleitoral ao comportamento do senador Eduardo Suplicy apenas desvia o foco das questões político-administrativas que, de fato, fizeram a diferença. Isso tudo sem falar nos equívocos evidentes na condução da campanha, marcada por uma agressividade desnecessária.

A administração federal do PT tem boa parcela de responsabilidade no resultado das eleições municipais. Ao mesmo tempo em que reduziu o poder aquisitivo da classe média, adotou medidas que jamais defendeu quando era oposição, favorecendo os bancos e o capital internacional. Sacrificou o funcionalismo público, que sempre prometeu valorizar, e comprou uma briga com o Poder Judiciário totalmente sem sentido. O Ministério Público chegou a ser comparado com a polícia de Hitler apenas por cumprir sua missão constitucional de repressão ao crime.

Os setores da população que têm formação suficiente para acompanhar e entender o noticiário — a classe média — não engoliram as incoerências e mandaram um recado ao PT: é preciso respeitar as instituições e preservar os recursos financeiros de quem trabalha honestamente e já contribui, no limite de suas possibilidades, para a manutenção do Estado e de seus governantes.

* Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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