Pecado da ineficiência

Sistema prisional brasileiro não passa de uma ficção, afirma Ambra.

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8 de novembro de 2004, 19h34

“O Sistema Prisional Brasileiro prima pela ineficiência, não passa de uma ficção: finge-se que o marginal está preso, quando é certo que não está, está entre aspas, a passear pelas ruas”. A afirmação foi feita pelo desembargador Luiz Antonio Ambra, durante seu discurso de posse no Tribunal de Justiça de São Paulo.

O discurso do desembargador caminhou no sentido de que a punição e até mesmo a reabilitação de criminosos não depende apenas de decisão judicial. “Na ânsia de esvaziar prisões a qualquer preço, de um modo bem brasileiro, óbices aparentemente instransponíveis foram superados. No semi-aberto, como é óbvio, por mais que se pretenda afrouxá-lo só pode sair à rua quem vá trabalhar, para deixar o cárcere precisa possuir emprego. E emprego é coisa que não existe nos dias atuais, mesmo para pessoas honestas. Podendo escolher, o empregador certamente não optará por um encarcerado, que até por definição nem recuperado está”, disse.

Juiz criminal por 30 anos, Ambra atuou nos últimos tempos no Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, de onde sai sem muita saudade, não de sua profissão ou local de trabalho, mas do sistema punitivo do país. “Desafortunadamente, deixo o Crime em definitivo, com a firme intenção de a ele não mais retornar. Presa de profundo sentimento de impotência, de arraigado pessimismo diante de tudo o que pude constatar ao longo de todo esse período”.

Segundo ele, “o Estado Encarcerador, por mais que se pretenda encobrir a realidade, nos dias atuais não recupera ninguém. Escuda-se em cortina de fumaça para dar a impressão de que o faz”.

Ambra pediu desculpas pelo assunto um tanto ‘pesado’ num discurso de posse, mas disse que era apenas um ‘desabafo’. “Parece despropositado esta espécie de desabafo, numa cerimônia de posse. Julguei oportuno externá-lo, entretanto, apenas para explicar que, por essas e por outras, cansei, no Crime atualmente me sinto impotente, a trabalhar para nada”, afirmou.

O desembargador lembrou aos presentes a realidade do sistema prisional brasileiro. “Que não existem vagas nas prisões, é público e notório, agora a fila é para o fechado: duzentos ou trezentos encarcerados em distritos policiais imundos, onde cabem vinte ou trinta. Alguns já condenados, ainda na prisão provisória que se torna definitiva, já que em penitenciárias não há lugar, cumpre aguardar a tal vaga. Parte forçada a dormir de pé, já que fazê-lo em locais algo melhores é privilégio de poucos, esticar-se ao pé do vaso sanitário é apenas para a bandidagem de hierarquia mais elevada, moído de pancadas aquele que desobedecer”.

Leia a íntegra do discurso do desembargador

Exmo. sr. presidente do egrégio Tribunal de Justiça, desembargador Luiz Elias Tâmbara, em cuja pessoa saúdo todas as autoridades aqui presentes. Sr. Corregedor Geral José Mário Cardinale, eminente Vice-Presidente, senhoras e senhores.

As honrosas palavras de meu dileto amigo desembargador Sinésio de Souza são fruto antes da amizade que nos une há vinte e seis anos, desde que em 1978 passei a auxiliá-lo na 4ª Vara da Fazenda Municipal, de que à época titular. Agora já no Órgão Especial, teve a gentileza desse gesto, deu-se ao trabalho de abdicar de seus afazeres e aqui comparecer, mais uma dívida de gratidão que segue para balanço.

Senhores:

Não me comprazendo a pompa e circunstância comuns em solenidades plenárias, quis que o ato de hoje fosse o mais simples possível. Optei pela circunspeção, os tempos atuais são difíceis, festas e comemorações vão se tornando coisa do passado. Alguma celebração, é certo, não deixará de haver, igualmente discreta junto aos familiares, esse sempre foi meu desejo.

Singela a posse, nem por isso deixa de retratar momento de especial alegria e significado, traduz o sentimento do dever cumprido, cumprido em relação ao que agora fica para trás; e implica na assunção de novo desafio na etapa – agora a etapa final da carreira – que se inicia.

Quatorze anos de judicatura penal para quem não cogitava de a ela se dedicar, após mais de uma década de contato exclusivo com o Direito Público, deixaram a sua marca. Esforcei-me o quanto pude para bem julgar. Mas, desafortunadamente, deixo o Crime em definitivo, com a firme intenção de a ele não mais retornar. Presa de profundo sentimento de impotência, de arraigado pessimismo diante de tudo o que pude constatar ao longo de todo esse período.

Banalizou-se a violência, integrou-se ao cotidiano, passou a fazer parte do dia a dia. Num país de miseráveis, dominado por um Sistema Financeiro perverso que parasitariamente lhe vai sugando as forças, que opta por custear o Poder Público para não ter que financiar o particular, onde Estado e Mercado terminam agindo em perfeita simbiose sob os auspícios tecnocratas do Banco Central, o resultado é o que aí está: o empobrecimento geral a sacrificar uma geração inteira, a concentração de renda em poder de uns poucos privilegiados.

Reflexo direto disso, a criminalidade desmesuradamente se alastrou, fator preponderante à marginalização criminosa é sem dúvida a falta de oportunidades, fruto de anos de recessão; segundo a Imprensa, cerca de dois milhões de desempregados existem hoje em São Paulo, quem vai para a rua dificilmente obtem nova colocação.

Onipresente o Estado quando se trata de abocanhar sua fatia em tudo que tenha valor econômico, de sua voracidade não escapando sequer a cabeça de um alfinete, uma aposta na Loteria Esportiva, conta de luz ou a compra de uma simples caixa de fósforos, digno parceiro do Sistema Financeiro Nacional em matéria de ganância, fica com tudo e nada de mais significativo dá em troca.

Sai Governo, entra Governo, ensino de boa qualidade só para os ricos, que podem pagar. Saúde, nem se diga. Despreparada, desnutrida, inculta desde a origem, a massa desfavorecida cede muita vez ao impulso do menor esforço: já que não há emprego mesmo, melhor é roubar, se apoderar do alheio. Até porque o Sistema Prisional Brasileiro prima pela ineficiência, não passa de uma ficção: finge-se que o marginal está preso, quando é certo que não está, está entre aspas, a passear pelas ruas. Que se está recuperando sob a ação da laborterapia, mesmo quando encarcerado qual verdadeiro animal, numa cela imunda onde mal pode respirar, trabalho só em sonhos. Que ficou melhor — e por isso foi para a rua, progredido –, quando na realidade está muito pior.

Quiçá como justificativa à incapacidade de resolver problemas dessa ordem, como que a por isso pedir escusas, parcela significativa da Sociedade deixou de lado a realidade e o bom senso. Passou a endeusar o criminoso, com base em postulados filosóficos mal ajambrados tê-lo como uma vítima das circunstâncias, um produto do meio social pernicioso que o gerou. O que representa meia verdade, não há dúvida de que o desespero leva ao mau caminho; mas nunca será demais relembrar que milhões e milhões de desvalidos — a esmagadora maioria, sem dúvida — levam vida pobre mas digna, tem certamente a intuição de que a maior esperteza reside na própria honestidade, no cumprimento de seus deveres e obrigações.

O Estado Encarcerador, por mais que se pretenda encobrir a realidade, nos dias atuais não recupera ninguém. Escuda-se em cortina de fumaça para dar a impressão de que o faz. Propalou-se, à guisa apenas de exemplo, tempos atrás o término da fila de espera para vaga em regime semi-aberto. Só que a realidade não era essa. Como Colônias Agrícolas não existem, tirante uma ou duas, sucedeu foi que o semi-aberto passou a ser cumprido em regime externo, fora da prisão; qual se estivesse no aberto voltando o preso ao cárcere apenas para dormir, após supostamente de dia estar a trabalhar.

Por absoluta falta de meios, a partir daí, o semi-aberto passou a operar qual regime aberto, o aberto por sua vez evoluiu para a mais ampla e desbragada liberdade; e foi assim que a fila acabou. No aberto a situação é ainda pior, o preso oficialmente cumpre pena em casa, no famigerado “albergue domiciliar”. Sem a menor fiscalização, fácil é inferir, na prática livre para fazer o que bem entender. Ficção? Sem dúvida, igual à da liberdade vigiada no livramento condicional. Vigiado por quem, se não há policiais suficientes nem nas ruas, nunca foi tão fácil delinqüir?

Chegou-se agora à perfeição. No passado o índice de fugas no semi-aberto era elevadíssimo, o preso saía e simplesmente não voltava. Agora não mais, as estatísticas sem dúvidas melhoraram. Mas não porque a massa carcerária tenha melhorado, sim porque com o afrouxamento ocorrido nem mais compensa fugir.

Que não existem vagas nas prisões, é público e notório, agora a fila é para o fechado: duzentos ou trezentos encarcerados em distritos policiais imundos, onde cabem vinte ou trinta. Alguns já condenados, ainda na prisão provisória que se torna definitiva, já que em penitenciárias não há lugar, cumpre aguardar a tal vaga. Parte forçada a dormir de pé, já que fazê-lo em locais algo melhores é privilégio de poucos, esticar-se ao pé do vaso sanitário é apenas para a bandidagem de hierarquia mais elevada, moído de pancadas aquele que desobedecer.

Na ânsia de esvaziar prisões a qualquer preço, de um modo bem brasileiro, óbices aparentemente instransponíveis foram superados. No semi-aberto, como é óbvio, por mais que se pretenda afrouxa-lo só pode sair à rua quem vá trabalhar, para deixar o cárcere precisa possuir emprego. E emprego é coisa que não existe nos dias atuais, mesmo para pessoas honestas. Podendo escolher, o empregador certamente não optará por um encarcerado, que até por definição nem recuperado está.

A solução? Obra-prima de inventividade ficcional, libera-se o preso para que ele próprio saia em busca de trabalho, estratagema dos mais engenhosos, convenha-se. Para tanto bastando assinar um termo de compromisso pelo qual promete tentar obter ocupação lícita em trinta dias, prorrogáveis ad aeternum. Invariavelmente não obtem, e quando é pego a perambular tem a melhor das desculpas: está procurando, deambula pelas ruas atrás de emprego, na realidade livre para furtar, roubar ou seqüestrar. Primeiro se drogando, para ganhar coragem, livrar-se de qualquer inibição, otimizar as suas previsões. Kafka não faria melhor, não idealizaria procedimento tão sinuoso.

Parece despropositado esta espécie de desabafo, numa cerimônia de posse. Julguei oportuno externá-lo, entretanto, apenas para explicar que, por essas e por outras, cansei, no Crime atualmente me sinto impotente, a trabalhar para nada. Tudo tem o seu tempo, é hora de mudar. Nunca me enquadrei entre aqueles a quem apetece absolver a qualquer preço, ainda quando corra o risco de, bem por isso, ser taxado de politicamente incorreto por alguns iluminados.

Entendendo embora os fatores que os levaram a delinqüir, não vejo motivo para promover a entronização de bandidos, apenas porque menos favorecidos. Bem ao contrário, justamente porque violentos e sem freios, quero crer demandarem tratamento enérgico, o mais rigoroso possível; se não seguem a lei por bem, haverão que faze-lo por mal. Isso e apenas isso, tornando da estratosfera, recolocando os pés no chão.

Deixo o Direito Penal com o propósito de a ele não retornar, peço escusas por me alongar nesse tema. Mas hoje começo vida nova, livro-me de um peso que de há tempos me angustiava. Volto, com satisfação, ao Direito Privado, que devo reaprender, mas buscarei fazê-lo. Mais trabalhosa a tarefa, nem por isso menos gratificante. Abandono a mesmice, passo a respirar de novo.

Peço aos Céus força e discernimento na etapa que se inicia, ora me desculpo por fugir aos lugares comuns e não abordar temas mais amenos. Mas não poderia deixar sem registro a grata oportunidade de transição que ora se me oferece. Aqui me despeço do passado, da estrutura exemplar do Tribunal de Alçada Criminal, onde trabalhei à exaustão, mais até do que na Fazenda Pública. Só quem não o conhece podendo imaginar que ali não se trabalhe, ou trabalhe pouco.

Agradeço o comparecimento de todos os presentes, amigos e parentes, meus filhos, minha esposa. Invoco as luzes de meus ancestrais para que me auxiliem na nova jornada. Aos queridos companheiros Alceu Penteado Navarro, Eduardo Braga e Souza Nery aqui presentes, com quem tive o prazer de conviver na 5ª e 7ª Câmaras do Tribunal de Alçada, o meu abraço, votos de sucesso.

Considero-me privilegiado pela oportunidade de, após trinta anos de magistratura, ascender a esta Augusta Corte. E assumo o compromisso de bem cumprir os atos de meu ofício, com justiça e retidão. Era o que tinha a dizer, a todos meus protestos de estima e consideração. Muito obrigado pela presença e que Deus nos ajude.

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