Judiciário lento

‘Sorte de quem não precisa ir à Justiça’, diz Vidigal.

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5 de novembro de 2004, 12h15

O presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Edson Vidigal, disse ter “pena de quem vai depender, no Brasil, de ter os seus direitos reconhecidos por uma decisão judicial”. Ele justifica: “demora pra caramba”. Para Vidigal “essa Justiça que está sendo feita é uma Justiça muito injusta”.

Ele criticou também a lentidão do Judiciário no país. Para o ministro, há uma “infinidade de recursos” que acabam por prolongar os processos, associados dos operadores de Direito. As declarações foram feitas em entrevista ao jornal O Povo e reproduzidas pelo site Espaço Vital.

“Os advogados, os membros do Ministério Público e os magistrados já estão praticamente viciados nesse trabalho, na cultura do recurso. Acaba sendo bom para todo mundo, do ponto de vista do comodismo”, considerou.

Quando perguntado sobre uma possível solução para a morosidade, ele disse ser necessário criar uma consciência da indignação no país, mesmo nas pessoas que ainda não têm demanda judicial. “É sorte de quem não precisou ir à Justiça”. Ele ponderou sobre os prejuízos causados àqueles que precisam ter seus direitos reconhecidos rapidamente e foi contundente: “é preciso que a gente fique batendo nisso”.

“Eu sei que tem magistrado aí que anda aborrecido comigo, porque eu falo essas coisas”, ressaltou o presidente do STJ. Mas não deixa de alertar e avisa que tem que ser insistente. “É preciso que a gente continue batendo nessa coisa da morosidade, porque isso há de ser uma bandeira comum de todo o povo brasileiro”. Ele sugere que se pressione os congressistas e os estudiosos de Direito Processual.

Vidigal fez também duras críticas a questões como o segredo de Justiça e o direito à informação da sociedade. Para ele, com exceção do respeito à privacidade e ao interesse público, não há porque as demais denúncias, inclusive envolvendo membros do Judiciário, ficarem no ”mais profundo segredo”.

Leia a entrevista do ministro Edson Vidigal

O POVO – Qual a avaliação do senhor sobre o chamado segredo de Justiça?

Edson Vidigal – A informação é um direito da sociedade, num estado de direito democrático. A sociedade tem o direito de saber o que estão a fazer ou o que não estão a fazer os agentes públicos, dentro do princípio da transparência. A administração pública se rege pelo princípio da moralidade, da eficiência e da transparência. Quem sustenta a administração pública é o povo em geral, que paga os impostos. A privacidade é um direito constitucional, individual, de cada pessoa. Esse direito tem de ser respeitado. Temos de conciliar o direito da informação como o direito público. E o direito à privacidade como um direito de cada pessoa, em relação aos seus espaços de reserva, sobre o que faça ou que deixe de fazer na sua vida pessoal.

OP – Como conciliar esses dois princípios, à luz do que diz o artigo 37 da Constituição Federal, que fala sobre a publicidade dos agentes públicos? É correto, por exemplo, um membro do Judiciário alegar segredo de Justiça para não falar à imprensa sobre os autos de um processo?

Vidigal – A Constituição estabelece que os julgamentos serão públicos e fundamentados. Na reforma constitucional do Judiciário, já aprovada no Senado, em primeiro turno, é proibida inclusive sessão administrativa fechada. Todas as sessões têm de ser abertas. Eu penso que o princípio da transparência, que está escrito lá como o princípio da publicidade, se impõe sobre todas as ações dos agentes públicos.

OP – Quais os obstáculos, então, para a sociedade ter acesso a informações do Judiciário que a ela são garantidas pela Constituição?

Vidigal – São dois. Justos, aliás, e definidos pela própria Constituição. São os casos de segredo de Justiça, nas hipóteses em que há de se preservar a privacidade das pessoas, nas questões de famílias. Por exemplo, envolvendo menores de idade, quando os nomes são substituídos pelas iniciais. Ou quando se tratam de maiores de idade, em virtude de a questão envolver o direito à intimidade e à privacidade. A outra hipótese prevista pela Constituição é a do interesse público. Interesse público é quando, numa investigação instalada, se deve preservar o sigilo em torno dessa investigação, para que ela então possa ser concluída. Para que as provas que, em razão da divulgação, não possam ser desviadas ou sumirem. Aí decreta-se o segredo de Justiça.

OP – Mas de maneira geral, não é isso o que acontece, principalmente quando o alvo da investigação é um membro do Judiciário…

Vidigal – Nada disso tem que acontecer. Se o Zé Ninguém ou o Zé das Quantas é levado a uma delegacia de polícia, o retrato dele já está na primeira página do jornal no dia seguinte, ou com a imagem na tevê. Por que então logo os magistrados ou os membros do Ministério Público, diante de alguma acusação, tenham que ter essas ações escondidas, e levadas para o recôndito do mais profundo segredo? Há um princípio maior na Constituição que fala sobre a igualdade. Em cima desse princípio montou-se a Revolução Francesa (1789), que espraiou idéias democratizantes para os demais processos civilizatórios, chegando até nós, no Brasil. Antigamente todos eram iguais perante a lei de Deus. Hoje todos são iguais perante a lei. Se todos são iguais perante a lei, não podemos tratar desigualmente nem os iguais nem os desiguais. A lei é para todos, e a transparência é boa. Essa é a minha opinião pessoal. Não falo como presidente do STJ, porque a maioria do STJ, infelizmente, tem outro entendimento. Eu como presidente tenho que aceitar e cumprir o entendimento da maioria. Ressalto que estou falando pessoalmente.


OP – O senhor entende, portanto, que a Justiça não deveriam decretar segredo de Justiça em processo em que seus membros são acusados?

Vidigal – É muito melhor que a sociedade saiba sobre que tipo de acusação está sendo imposta sobre determinado agente do poder público. Se esse agente do poder público é conhecido, a própria sociedade já acata aquela acusação, ou não, se ela for absurda. E deve ser de interesse, logicamente, do poder público que aquela acusação seja o quanto antes apurada, para que ele possa continuar exercendo, livremente, e com a sua autoridade moral, os seus deveres.

OP – Um dos argumentos usados pela Justiça é que se parte daquele processo vem a público, o juiz que o está conduzindo pode se sentir constrangido ou pressionado pela repercussão.

Vidigal – Enquanto eu estiver relatando, sendo juiz de um caso, eu não posso emitir juízo de valor sobre aquele caso. Eu não posso antecipar o julgamento, enquanto eu não concluir a instrução daquele processo. Então essa coisa de que juiz só fala nos autos, ele só fala nos autos sobre o caso dos autos. Depois, quando ele tem a sua conclusão lavrada nos autos, tem de fazê-la e verbalizá-la da forma mais transparente e clara, para que todos possam entendê-la. É direito da sociedade saber bem sobre o que decidem e resolvem os agentes públicos. Aí também incluídos os juízes.

OP – O senhor já exerceu atividades jornalísticas, e sabe que o trabalho do repórter é sempre pressionado por prazos. Como o senhor se sente, na qualidade de ex-repórter e atual presidente do STJ, diante da imagem da Justiça associada à lentidão e morosidade?

Vidigal – Eu fui repórter aqui em Fortaleza, no Correio do Ceará, na rua senador Pompeu, sobre a direção do jornalista Eduardo Campos. E nós aprendemos no jornalismo que se trabalha com prazos. O bom repórter tem de apurar a notícia, saber se aquilo é verdadeiro ou não, e saber escrever, de forma clara, para que todo mundo possa entender. O repórter tem prazo para entregar aquilo porque o jornal precisa rodar, o programa de televisão precisa ser editado para ir ao ar. Então ele trabalha com prazo. Há um custo operacional disso tudo. No Judiciário é a mesma coisa. O juiz tem de saber aferir, tem de ter bom senso para apurar, tem de saber escrever claro, para que todo mundo entenda a sua decisão. E ele trabalha com prazos. Essa é a similitude entre a ação do repórter e a ação do magistrado.

OP – Se existe essa semelhança, por que então a Justiça é morosa?

Vidigal – Essa morosidade é produto de um conluio. Primeiro por causa das leis processuais, que ensejam uma infinidade de recursos, que levam à morosidade. Por outro lado, quando eu falo em conluio, também é da parte de quem opera o Direito. Os advogados, os membros do Ministério Público e os magistrados já estão praticamente viciados nesse trabalho, na cultura do recurso. Acaba sendo bom para todo mundo do ponto de vista do comodismo.

OP – O que pode ser feito diante dessa constatação?

Vidigal – É preciso que nós criemos no Brasil uma consciência da indignação. Que todos nós fiquemos indignados. Mesmo as pessoas que ainda não têm demanda na Justiça. É sorte de quem não precisou ir à Justiça. Sabe por que eu tenho pena? Porque demora para caramba. E não é justo. Não é justo para as pessoas que estão precisando dos seus direitos reconhecidos o mais rapidamente possível. Então é preciso que a gente fique batendo nisso.

OP – Isso preocupa o senhor?

Vidigal – Eu sei que tem magistrado aí que anda aborrecido comigo, porque eu falo essas coisas. Não é um ou dois não. É muita gente. Tem uma onda aí. Eu mergulho e ela passa.

OP – Há algo a ser feito?

Vidigal – É preciso que a gente insista, continue batendo nessa coisa da morosidade, porque isso há de ser uma bandeira comum de todo o povo brasileiro, para que pressionando os congressistas, os estudiosos do Direito Processual, nós possamos encontrar maneiras de fazer com que se resolva no Judiciário estatal essas questões, sob pena que essas questões tenham de ser resolvidas de forma particular, como já foi antigamente.

OP – Como assim?

Vidigal – Quando nós avançamos para o estado democrático, é porque nós não quisemos que as questões não fossem resolvidas pelos bandos criminosos organizados, os lampiões da vida, que a mando de quem quer que fosse, fazia Justiça com as próprias mãos. Quem tem de fazer Justiça é o Estado, em nome da sociedade. Essa Justiça que está sendo feita é uma Justiça muito injusta. O velho Rui Barbosa (jurista brasileiro, 1849-1923) já dizia que a Justiça morosa, a perder de vista, a Justiça que tarda, não é Justiça. Ela contribui para a injustiça.

OP – Supondo-se que a Justiça brasileira esteja saindo dessa fase que o senhor ilustra, e esteja em processo de transição, o que pode estar surgindo a partir daí?


Vidigal – Há uma nova geração chegando. Ela vem com uma nova mentalidade, vem mais aguerrida e interessada em defender a cidadania e preocupada com os direitos constitucionais individuais e coletivos. Isso eu vejo com muito entusiasmo. Você hoje vai a um congresso de juízes federais e depois vai a um congresso do Ministério Público Federal, você tem a impressão que está vendo as mesmas pessoas. Mas na verdade é uma mesma geração. Uma faixa etária entusiasmada e bem mais gente, porque é menos monárquica. É um pessoal mais com o pé no chão e mais identificada com a realidade do Brasil e as carências brasileiras.

OP – Qual a avaliação que o senhor faz sobre financiamento público de campanhas eleitorais?

Vidigal – Eu tenho uma opinião pessoal, porque eu estudei essa questão, quando fui deputado. No Brasil não vai funcionar. Você colocar disponibilidade no orçamento para financiar campanha eleitoral, na base de quantos votos teve um partido político em um País desse tamanho, com eleição de dois em dois anos. O orçamento nunca vai ter disponibilidade para bancar esse financiamento, quando sabemos quanto custa uma campanha eleitoral. E quando a campanha eleitoral chega a um determinado nível de custo, você não tem mais como reduzir. Então nós vamos partir para trabalhar mais uma mentira, quando nós vivemos num país em que o orçamento mal consegue bancar os recursos para saúde, educação e saneamento básico. E depois nada vai garantir que se esteja impedindo que aquele financiamento que sai por debaixo do pano seja extinto.

OP – Existiria alguma formato diferente do que acontece hoje?

Vidigal – É melhor pensarmos numa idéia em que nós possamos ter um financiamento privado, pela contribuição individual dos eleitores, depositando diretamente nas contas correntes dos candidatos. Isso tudo de uma forma transparente, sem sigilo bancário, para que ao fim de cada mês cada eleitor possa ir ao banco oficial e pegar o extrato dessa contribuição. Podemos trabalhar um orçamento de campanha acertado entre todos os partidos que vão participar daquela eleição. Se naquele prazo eles não acertaram entra a Justiça eleitoral, decretando aquele orçamento, com os itens de campanha. Se o candidato renunciar ou morrer, essas contribuições não integrariam o espólio do candidato. Elas passariam para a conta do partido político.

OP – Já que estamos falando em orçamentos de campanhas e processos eleitorais, a informatização da eleição no Brasil, uma das vitrines do País lá fora, não é muito onerosa, ao custo de R$ 750 milhões por eleição a cada dois anos?

Vidigal – Aí é um investimento que vale a pena para a democracia. Quando termina a eleição a gente já tem o resultado. Eu tenho orgulho de ter participado desse processo desde o início.

OP – Com está a relação do Judiciário com o governo Lula?

Vidigal – Nunca o Judiciário no Brasil teve uma relação tão positiva com o Executivo como na atual temporada. Nós trabalhamos com independência e estamos exercitando da melhor maneira o princípio da harmonia.

OP – Céu de brigadeiro?

Vidigal – Céu de brigadeiro, sem ingerência de um na atividade do outro. Há colaboração entre os dois poderes, na medida em que, por exemplo, o Judiciário para funcionar precisa de dinheiro, precisa de verbas. Pela primeira vez não se tem contingenciado verba do Poder Judiciário. Eu vou lá e consigo as coisas que estão sendo necessárias para manter o funcionamento da máquina judiciária. Tanto o STJ quanto em relação à Justiça Federal.

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