Bomba de chocolate

Sindicato quer anular venda de ativos da Garoto pela Nestlé

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4 de novembro de 2004, 18h33

O Sindicato dos Trabalhadores em Alimentação e afins do estado do Espírito Santo (Sindialimentação – E.S.) quer que a Nestlé suspenda a venda dos ativos da Garoto de forma desmembrada. Quer também que ela reconduza a empresa de Vila Velha ao estado anterior da aquisição. A ação ajuizada pelo advogado Luís Fernando Nogueira Moreira, nesta quarta-feira (3/11), tem o valor de R$ 120 milhões.

Nela, Moreira discute a compra do controle acionário da Garoto pela Nestlé, considerada pelo Cade como infração à ordem econômica. A transação foi considerada ilegal pela autarquia por resultar em concentração horizontal, com lesão à livre concorrência.

Mas, segundo o advogado, ao mesmo passo que vetou a compra do capital total da Garoto, o Cade autorizou que a Nestlé adquirisse a propriedade intelectual – “registros, pedidos de fórmulas e direitos inerentes às marcas exploradas” pela empresa. De acordo com Moreira, o item “C” do relatório do Cade “a alienação poderá não incluir todos os ativos correspondentes à capacidade produtiva alienada à época da aquisição, embora tenha de envolver os ativos de propriedade intelectual”.

Ele afirma que com a decisão, a autarquia “abriu as portas para um comprador adquirir a propriedade intelectual e abandonar as instalações industrias passando a produzir onde bem entender”, em prejuízo da geração de 4 mil empregos diretos e 12 mil empregos indiretos pela empresa de Vila Velha.

“A possibilidade do parque industrial ser ‘sucateado’, embora contrarie a própria noção de proteção à concorrência, é absolutamente concreta, considerando que o maior ativo de uma empresa do gênero é justamente a propriedade intelectual. São as marcas, as fórmulas, os registros, os direitos imateriais que representam os bens de maior valor do negócio”, diz Moreira.

O advogado também alega que o julgamento do Cade foi viciado por não contar com a participação dos trabalhadores na composição dos Conselheiros que, deveriam, participar da votação. “Conclui-se”, diz Moreira, “que o ato que se afasta da motivação e finalidade, como também não é fundamentado, não atende ao conceito de moralidade administrativa”.

Leia o pedido de tutela antecipada

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESPÍRITO SANTO

SINDIALIMENTAÇÃO-E.S.- SINDICATO DOS TRABALHADORES EM ALIMENTAÇÃO E AFINS DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, entidade de classe inscrita no CGC sob o n° 01.284.593/0001-28, domiciliada na Estrada Jerônimo Monteiro, 1.732, Glória, Vila Velha-E.S., vem, por seu advogado que esta subscreve, com endereço para intimações na mesma localidade, mover a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA (COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA) em face do 1) CADE – CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA, autarquia federal com sede no Setor Comercial Norte – SCN –Quadra 2 – Projeção C, Brasília-D.F., e 2) NESTLÉ BRASIL LTDA, Av. das Nações Unidas, 12.495, São Paulo – SP, CEP 04.578-902, pelos fatos e fundamentos abaixo expostos:

DA COMPETÊNCIA DESTA VARA

Dispõe a Lei 7.347/85:

“Art. 2º As ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa.

Parágrafo único. A propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto. (Redação dada pela Mpv nº 2.180-35, de 24.8.2001)”

Como adiante será demonstrado, o objeto da presente ação é discutir o ato de concentração ocasionado pela Nestlé Brasil Ltda., ao adquirir o controle acionário da Chocolates Garoto S/A. Situação que foi considerada pelo CADE como infração à ordem econômica.

No entanto, o CADE proferiu decisão completamente sem fundamento, e, data venia, incapaz de restaurar a situação ao estado anterior, colaborando, assim, para prejuízo à ordem econômica e social. O que será abordado adiante.

O dano que aqui se discute é o que é causado aos trabalhadores e à comunidade dos quais participam, no Município de Vila Velha, neste Estado, sendo competente, portanto, a Seção Judiciária do Estado do Espírito Santo, através da Vara instalada em Vitória ao qual competir mediante a regular distribuição.

DO AUTOR E DA RÉ CHOCOLATES GAROTO S/A, EMPRESA CUJO CONTROLE ACIONÁRIO FOI ADQUIRIDO PELA NESTLÉ DO BRASIL.

O autor é associação sindical representante legal dos trabalhadores da empresa Chocolates Garoto S/A, indústria situada no Município de Vila Velha, no Estado do Espírito Santo. Tal empresa gera 4 mil empregos diretos e 12 mil empregos indiretos.

A Chocolates Garoto é a maior empresa do ramo de alimentação do Estado do Espírito Santo e a terceira maior fabricante de chocolates do Hemisfério Sul. É o maior empregador e contribuinte do Município de Vila Velha e um dos maiores empregadores e contribuintes do Estado do Espírito Santo.


Seu complexo engloba duas unidades industriais que somam 68 mil metros quadrados construídos, em uma área disponível de 200 mil metros quadrados, em bairro vizinho ao Centro do Município de Vila Velha. A capacidade de produção é de 140 mil toneladas anuais de chocolates.

A atividade econômica gerada pela Chocolates Garoto S/A é essencial para os seus trabalhadores, seja em virtude dos empregos diretos e indiretos, como também em virtude dos diversos projetos sociais que desenvolve e pela geração de renda para a Municipalidade e para o Estado.

DA AQUISIÇÃO DA CHOCOLATES GAROTO PELA NESTLÉ E DA SUBMISSÃO AO CADE.

O capital social da Chocolates Garoto foi totalmente adquirido pela Nestlé, ocasionando ato de concentração horizontal, com presunção legal relativa de lesividade à livre concorrência, nos termos do § 3° do art. 54 da Lei 8884/94 (1), e por isto mesmo foi submetido ao CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Após longo processo administrativo, sob o n° 08012.001697/2002-89, o CADE decidiu por não aprovar o ato de concentração, e determinou a sua desconstituição. A Nestlé pediu reconsideração da decisão, mas não obteve êxito. A decisão foi amplamente divulgada na imprensa.

Em virtude disto, surgiu a responsabilidade da Nestlé Brasil Ltda desfazer o ato de concentração considerado lesivo e infração à ordem econômica, preservando os seus ativos até a alienação.

DO MODO COMO O CADE DETERMINOU SEJA DESCONSTITUÍDA A OPERAÇÃO QUE RESULTOU NA CONCENTRAÇÃO.

O CADE, ao decidir pela desconstituição do negócio, determinou o seguinte:

“A) a Nestlé deverá alienar os ativos da Garoto ou ativos equivalentes àqueles adquiridos quando da realização do Ato – de modo a envolver um negócio inteiro, independente e sustentável – a um terceiro interessado, aprovado pelo Plenário, que não possua participação de mercado superior a 20% no mercado relevante e que apresente-se como competidor capaz de sustentar a marca;

B) a Nestlé deverá alienar todos os elementos de propriedade intelectual, vale dizer, registros, pedidos fórmulas e direitos inerentes às marcas de chocolates antes pertencentes à Garoto;

C) a alienação poderá, a critério do comprador, não incluir todos os ativos correspondentes à capacidade produtiva da empresa alienada à época da aquisição, mas deverá, necessariamente, envolver os ativos relacionados no item B. Caso o comprador opte por esta alternativa, a Nestlé deverá alienar tais instrumentos (equipamentos e maquinarias) a outro interessado;

D) a alienação deverá ter preços e alternativas de condições de pagamento lastreados em avaliação realizada por empresa idônea do ramo, que também deverá atestar, por meio de laudo pericial, que o conjunto de ativos tangíveis e intangíveis avaliado é suficiente para ser caracterizado como um negócio completo. Esta empresa, responsável pela avaliação, deverá ser apresentada ao CADE, pela Nestlé, em 20 (vinte) dias, a contar da publicação da decisão;

E) toda a operação de alienação será acompanhada por outra empresa de auditoria de reconhecida reputação – inclusive habilitada a identificar eventuais compradores e monitorar a transferência de tecnologia e de informações comerciais e industriais –, apresentada pela Nestlé ao Plenário do CADE, previamente, no prazo de 20 (vinte) dias a contar da publicação da decisão;

F) a transferência de tecnologia e de informações comerciais e industriais abrange inclusive a transferência dos profissionais que a implementaram no vendedor, em especial, e preferencialmente, no vendedor original, a Garoto;

G) o futuro adquirente dos ativos da Garoto ficará sub-rogado em todos os direitos definidos no “Contrato de Subscrição” anteriormente assinado entre Nestlé e Garoto, no que for aplicável, bem como em seus anexos e instrumentos complementares, desde que compatíveis com as obrigações, faculdades e limites estabelecidos na presente decisão;

H) no prazo de 40 (quarenta) dias, contados a partir da assinatura do termo de responsabilidade pela empresa responsável pela avaliação citada no item D, em conformidade com a Resolução CADE n.º 13/98, deverá ser encaminhado ao Plenário o laudo pericial de avaliação de preço com a discriminação dos respectivos ativos e alternativas de condições de pagamento, com a certificação de que o conjunto de ativos forma um negócio completo. No prazo de 90 (noventa) dias, a contar da publicação da ata da sessão ordinária que aprovou o laudo, a Nestlé deverá alienar os ativos previstos, sob pena de multa diária, conforme disposto no art. 25 da Lei 8.884/94, no valor de R$30.000,00 (trinta mil reais), e intervenção judicial para execução de decisão nos termos do disposto nos artigos 60 a 78 da Lei 8.884/94;

I) fica assegurado aos compradores o direito de apresentarem ao CADE quaisquer reclamações contra as dificuldades por eles enfrentadas na negociação com os vendedores;


J) a Nestlé deverá zelar pela manutenção de todos os ativos a serem alienados, enquanto não for concretizada a operação, sob pena de multa idêntica à da alínea H.”

DOS ASPECTOS DA DECISÃO QUE INTERESSAM À PRESENTE AÇÃO.

A decisão do CADE merece análise nos seguintes aspectos:

Item “A”:

– a alienação dos ativos da Garoto deve ser feita de modo a envolver um negócio inteiro, independente e sustentável;

– a alienação deve ser feita a quem não possua participação superior a 20% do mercado relevante, bem como se apresente como competidor capaz de sustentar a marca.

Item “B”:

– a alienação deve envolver todos os elementos da propriedade intelectual.

Item “C”:

– autoriza que, a critério do comprador, a alienação poderá não incluir todos os ativos correspondentes à capacidade produtiva alienada à época da aquisição, embora tenha de envolver os ativos de propriedade intelectual. Caso em que caberia à Nestlé alienar os instrumentos (equipamentos e maquinários) a outros interessados.

Como se percebe, o CADE autorizou, na prática, que um comprador adquira a propriedade intelectual, ou seja, registros, pedidos de fórmulas e direitos inerentes às marcas exploradas pela Chocolates Garoto e recuse-se a adquirir equipamentos e maquinários, bem como outros ativos correspondentes à capacidade produtiva.

Nota-se que, no aspecto, a decisão um momento se refere a ativos da capacidade produtiva, e depois se refere a equipamentos e maquinarias. No entanto, é sabido que os ativos da capacidade produtiva não se restringem a equipamentos e maquinarias.

Capacidade é um conceito econômico que significa a quantidade máxima de produtos e serviços que podem ser produzidos em uma unidade produtiva, em um dado intervalo de tempo. Logo, os ativos materiais envolvidos na capacidade produtiva incluem também as instalações, edificações, veículos, móveis, etc…, quer dizer, aquilo que é a parte do capital no processo produtivo.

Isto fica claro quando compreendemos que as empresas, ao produzirem determinado produto, terão de adquirir as matérias primas necessárias e utilizar-se-ão do trabalho e do capital, com o intuito de agregar o valor à produção. Ou seja, dar ao produto um valor superior ao das matérias primas adquiridas. O objetivo da empresa é alcançar o valor agregado, que é a diferença entre o valor da matéria prima adquirida e o valor da produção. Sendo assim, os ativos materiais da capacidade produtiva não se resumem a equipamentos e maquinarias.

O CADE abriu as portas para um comprador adquirir a propriedade intelectual e abandonar as instalações industriais, passando a produzir onde bem entender. A Nestlé estaria obrigada a vender os ativos materiais a terceiros. Em outras palavras: o comprador pode gerar o “sucateamento” do parque industrial instalado no Município de Vila Velha, e explorar a marca, as fórmulas e dos direitos onde bem entender, já que não possuirá nenhum compromisso com a integralidade física do negócio.

Ou melhor, poderá adquirir um negócio diverso do que se encontrava quando da aquisição por parte da Nestlé! Afinal, o parque industrial da Chocolates Garoto de nada vale sem a propriedade imaterial, enquanto que a recíproca não é verdeira.

Fica claro, assim, que ao se referir no item “A” a um “negócio inteiro, independente e sustentável”, o CADE somente se preocupou com o fato do competidor ser “capaz de sustentar a marca”. Não houve nenhuma preocupação, por parte do CADE, de que o comprador respeite a integralidade do negócio em seu status quo ante, pelo seu aspecto físico, ou seja, a manutenção da integralidade do parque industrial situado em Vila Velha, que é essencial à sobrevivência dos trabalhadores representados pelo autor e de toda a comunidade dos quais fazem parte.

A possibilidade do parque industrial ser “sucateado”, embora contrarie a própria noção de proteção à concorrência, é absolutamente concreta, considerando que o maior ativo de uma empresa do gênero é justamente a propriedade intelectual. São as marcas, as fórmulas, os registros, os direitos imateriais que representam os bens de maior valor do negócio.

Quer dizer: pode um comprador muito bem adquirir a marca, a propriedade industrial e desprezar outros ativos que sejam responsáveis pela integralidade física do negócio.

Se estivéssemos diante de uma empresa que possuísse um complexo industrial ultrapassado, em detrimento de propriedade intelectual do mais alto valor, poderia assistir razão ao CADE, já que a preservação da marca poderia consistir justamente na permissão, ou mesmo no incentivo, para que a venda dos ativos fosse feita de forma não associada.

Todavia, estamos diante de uma situação completamente singular. Temos um complexo industrial moderníssimo, onde foram feitos investimentos vultosos nos últimos anos. Apenas para se ter uma idéia da dimensão dos investimentos, nos últimos cinco anos aplicaram-se R$ 75 milhões na modernização e ampliação do parque industrial em Vila Velha. Desse total, R$ 25 milhões foram destinados à construção do maior e mais avançado centro de armazenagem vertical da América Latina, o Centro de Distribuição do Espírito Santo (CDES).


O CDES conta com uma estrutura de operação automatizada, totalmente fechada, e com dimensões de 120 metros de comprimento, 31,25 metros de largura e 23,85 metros de altura (o equivalente a um prédio de oito andares). O CDES pode armazenar 12.100 paletes (bases de madeira que dão suporte às caixas de papelão sobrepostas) em condições ideais de umidade e temperatura.

O CDES proporcionou economia e agilidade indispensáveis para as grandes demandas sazonais, como Páscoa e Natal, e sua automação também permite a expedição dentro do sistema FIFO (First in, First out), garantindo uma maior integridade dos produtos até o consumidor final.

Nos últimos anos, a Garoto tem investido no aumento da produção de chocolates, principalmente na linha de bombons, e desenvolvimento de novos produtos. Uma linha de fabricação de coberturas hidrogenadas foi adquirida e 12 produtos inéditos foram lançados. A operação Planta Piloto, com a compra de equipamentos exclusivos para o teste de novos produtos, trouxe economia e confiabilidade ao processo de produção, reduzindo as paradas nas linhas de produção para a realização de testes.

O autor não pode admitir, assim, que não haja proteção à integralidade física do negócio. A escassez de indústrias no Estado do Espírito Santo em detrimento da concentração física de indústrias na Região de São Paulo é uma realidade bastante perceptível.

Outro aspecto merece ser considerado: se não houver garantia da manutenção do parque industrial situado em Vila Velha não haverá respeito ao interesse social da propriedade.

Pode parecer, em um primeiro momento, que se uma empresa adquirir somente a propriedade intelectual e desmantelar o parque industrial de Vila Velha ela não estaria causando nenhum prejuízo social, desde que estivesse produzindo em outro lugar, onde estaria, também, gerando empregos e renda. Quer dizer: seria apenas uma transferência de renda de uma região para outra.

Acontece que os empregados da Chocolates Garoto, nos 75 (setenta e cinco) anos de existência da fábrica situada em Vila Velha asseguraram conquistas sociais que, dificilmente, seriam implantadas pelo adquirente em favor de seus empregados em qualquer outro local deste País.

Ou seja, o adquirente pode muito bem ignorar a função social da propriedade, todos os investimentos feitos e a viabilidade da unidade industrial capixaba para buscar o acréscimo de seus lucros através da mão-de-obra barata e pulverização do negócio. Quando o negócio é pulverizado, o empresário deixa de ter compromissos com a comunidade local.

Daí a importância social que a Chocolates Garoto alcançou nos 75 (setenta e cinco) anos que se desenvolveu em Vila Velha. Esta relação estreita com a comunidade local transformou a empresa em mais do que uma simples fábrica, mas uma verdadeira instituição social da cidade, onde inclusive tornou-se um ponto turístico.

DOS VÍCIOS EXISTENTES NA DECISÃO DO CADE.

1. Da função social da propriedade e da participação dos trabalhadores nos Colegiados que decidam seus interesses.

Direito e garantia fundamental constitucional previsto no art. 5°, inciso XXIII da Constituição Federal, é de que a propriedade atenderá a sua função social. Logo, a solução do caso da compra da Garoto pela Nestlé deve atender a tal princípio.

O art. 170 da Constituição Federal, que disciplina que a ordem econômica observará tanto a propriedade privada como a função social da propriedade, como a livre concorrência:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

…”

Nota-se, entretanto, que o próprio julgamento do CADE foi viciado, vez que a composição dos Conselheiros que participaram da votação foi feita com base em lei inconstitucional, que não observou o art. 10 da Constituição Federal que determina:

“Art. 10. É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação.”

A Lei 8884/94 é viciada de inconstitucionalidade em seu art. 4°, ao formar um colegiado em órgão público que decida interesses profissionais de trabalhadores e empregadores, sem assegurar a participação dos seus representantes na composição.

Sendo assim, só por este motivo, a decisão do CADE deve ser anulada, para que outra seja proferida em seu lugar, com representação dos trabalhadores e empregadores no Colegiado.

2. Extrapolação da regra de competência em violação ao princípio da legalidade e proporcionalidade.


Não bastasse isto, a decisão proferida pelo órgão administrativo não obedeceu aos princípios inseridos no art. 37 da Constituição Federal, que dispõe o seguinte em seu caput:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência…”

A lei 8884/94, ao atribuir competência ao Plenário do CADE, procurou respeitar os princípios constitucionais supracitados, o que, entretanto. não foi observado pela autarquia no caso em tela.

Percebe-se que a decisão do CADE, ao permitir que o comprador não venha a adquirir parcela do patrimônio da Chocolates Garoto, extrapolou os poderes previsto no art. 7° da referida norma. Segundo a lei 8884/94:

“Art. 7º Compete ao Plenário do Cade:

II – decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei;

V – ordenar providências que conduzam à cessação de infração à ordem econômica, dentro do prazo que determinar;

XII – apreciar os atos ou condutas, sob qualquer forma manifestados, sujeitos à aprovação nos termos do art. 54, fixando compromisso de desempenho, quando for o caso;

…”

A norma deixa claro que, verificada a infração à ordem econômica, cabe ao CADE aplicar as penalidades previstas na lei, assim como ordenar providências que conduzam à cessação da infração. Isto significa que está o CADE autorizado a determinar o desfazimento do negócio. Todavia, o que se verifica nos autos é que a competência foi extrapolada, já que a autarquia concedeu ao livre arbítrio do comprador uma prerrogativa desnecessária à cessação da infração.

Ora, nos termos do art. 20 da lei em debate, verificamos o seguinte:

“Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

II – dominar mercado relevante de bens ou serviços;

§ 2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa.

…”

Como se pode perceber, a infração à ordem econômica se caracteriza pela dominação de parcela substancial do mercado relevante. A contrário senso, para fazer cessar a infração, basta que o CADE determine que a operação seja desfeita. Em nada se justificando que, além de tal determinação, seja concedida a regalia ao comprador de optar por não adquirir determinados ativos materiais da empresa.

Caso contrário, o CADE estaria facilitando a ocorrência de infrações à ordem econômica prevista no art. 21 da norma debatida:

“Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica;

XV – destruir, inutilizar ou açambarcar matérias-primas, produtos intermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar a operação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuí-los ou transportá-los;

XX – interromper ou reduzir em grande escala a produção, sem justa causa comprovada;

XXI – cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada;”

Além disso, devemos ter em conta que a Constituição Federal disciplina, em seu art. 173 que:

§ 4º A lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Como se nota, a repressão ao abuso do poder econômico visa impedir a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros. De modo que, se uma decisão do CADE não pode impedir tais abusos e, ao mesmo tempo, possibilitar que o novo comprador do negócio os cometa.

Garantir que o comprador adquira o negócio como um todo, como o fizera a Nestlé, é a forma eficaz de impedir que haja infração à ordem econômica consistente na inutilização dos maquinários da Chocolates Garoto, na interrupção da produção ou cessação das atividades da fábrica. Que poderiam, muito bem, ser instrumentos estratégicos do comprador para dominar o mercado.

Ressalte-se que, como dissemos acima, em momento algum a lei autorizou o CADE, ao determinar o desfazimento do negócio, facultar ao comprador adquirir apenas a propriedade intelectual. Muito pelo contrário, a conduta do CADE foi limitada pela lei, em seu art. 46 da seguinte forma:


“Art. 46. A decisão do Cade, que em qualquer hipótese será fundamentada, quando for pela existência de infração da ordem econômica, conterá:

I – especificação dos fatos que constituam a infração apurada e a indicação das providências a serem tomadas pelos responsáveis para fazê-la cessar;

II – prazo dentro do qual devam ser iniciadas e concluídas as providências referidas no inciso anterior;

III – multa estipulada;

IV – multa diária em caso de continuidade da infração.

Parágrafo único. A decisão do Cade será publicada dentro de cinco dias no Diário Oficial da União.”

Como se vê, a prerrogativa do CADE é tão somente fixar as providências necessárias à cessação da infração à ordem econômica. No caso, é injustificável que, dentre as providências, conste a autorização para que um comprador adquira somente a melhor parte da empresa, ao contrário do que fez a Nestlé.

O artigo 54 da Lei do CADE dispõe o seguinte, em seu § 9°:

“§ 9º Se os atos especificados neste artigo não forem realizados sob condição suspensiva ou deles já tiverem decorrido efeitos perante terceiros, inclusive de natureza fiscal, o Plenário do Cade, se concluir pela sua não aprovação, determinará as providências cabíveis no sentido de que sejam desconstituídos, total ou parcialmente, seja através de distrato, cisão de sociedade, venda de ativos, cessação parcial de atividades ou qualquer outro ato ou providência que elimine os efeitos nocivos à ordem econômica, independentemente da responsabilidade civil por perdas e danos eventualmente causados a terceiros.”

Nota-se, mais uma vez, que a autorização legal conferida ao CADE é para a desconstituição do negócio, que pode se dar por distrato, cisão da sociedade, venda de ativos, cessação parcial de atividades ou providência que elimine os efeitos nocivos da ordem econômica. Em momento algum está escrito, ou se justifica, que seja autorizado ao comprador escolher para si a melhor parte do negócio e relegar para a venda a terceiros da parte física do mesmo.

Dúvidas não restam que a decisão do CADE, no aspecto comentado, não atendeu ao princípio da função social da propriedade, já que possibilitou o seu desmembramento em prejuízo a toda uma comunidade que depende da Chocolates Garoto para sua sobrevivência.

Há que se levar em conta que a intervenção do Estado no domínio econômico é algo excepcional. Segundo o art. 173 da Constituição Federal, o Estado somente pode intervir para a segurança nacional ou em defenda o interesse coletivo. Quer dizer, a intervenção é indireta e subsidiária, e portanto, a intervenção do CADE (§4º da referida norma) deve ser feita nos estritos limites da necessidade e proporcionalidade, como toda regra de exceção.

3. Da ausência de motivação da decisão. Do desrespeito ao princípio da finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

No particular, a decisão do CADE violou ainda a Lei 9.784/99, em seu artigo 2°, em diversos incisos:

“Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

II – atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei;

VI – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;

VII – indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;

IX – adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;

XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.”

Nenhum dos incisos acima destacados foi prestigiado pela decisão no aspecto aqui combatido. Não houve atendimento ao interesse geral, diante da não preocupação do CADE com os interesses da coletividade. Foi imposta medida superior às necessárias ao atendimento do interesse público. Não houve fundamentação dos pressupostos que justificam a decisão do CADE de permitir a opção ao comprador. Não houve adoção de forma suficiente a proporcionar segurança e certeza aos administrados, em especial aos trabalhadores. E verifica-se que a norma, no particular, não foi interpretada da melhor forma a garantir o interesse público e a função social da propriedade.


Um dos vícios mais graves que se nota no aspecto da decisão, é que não foi motivada. Não está esclarecido, em momento algum, o motivo pelo qual o comprador deve poder optar por não adquirir a parte pior do negócio, qual seja, a parte material do mesmo. Imprescindível que houvesse a motivação, nos termos do supracitado artigo da lei 9.784/99, bem como do seguinte artigo da mesma norma:

“CAPÍTULO XII

DA MOTIVAÇÃO

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;

§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.

…”

O item C da decisão do CADE é absolutamente nulo, por não ter sido motivado. Vale lembrar que tal item possui o seguinte teor:

“C) a alienação poderá, a critério do comprador, não incluir todos os ativos correspondentes à capacidade produtiva da empresa alienada à época da aquisição, mas deverá, necessariamente, envolver os ativos relacionados no item B. Caso o comprador opte por esta alternativa, a Nestlé deverá alienar tais instrumentos (equipamentos e maquinarias) a outro interessado;”

Ora, data vênia, pode-se ler toda a decisão do CADE, e não há, em momento algum, a motivação do item C. Não há a menor justificativa para o fato de que o comprador não seja obrigado a adquirir todos os ativos correspondentes à capacidade produtiva da empresa Chocolates Garoto.

Precioso, no aspecto, o comentário lançado na Revista Síntese pelo Desembargador Tubinambá Miguel Castro do Nascimento, a respeito da motivação e moralidade administrativa:

“MANOEL DE OLIVEIRA FRANCO SOBRINHO vincula a moral administrativa à motivação, finalidade e regularidade do ato administrativo, sendo que o ato que “infringe a motivação”, “escapa da finalidade” e “não se apóia na exação” está fora da moral jurídica. Como se sabe, a motivação do ato administrativo é a sua causa, motivação esta já constante da lei ou, não constante, base do próprio ato realizado. CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (Opus cit., pág. 179) diz que o motivo é “a situação do mundo empírico que deve ser tomada em lei ou expresso no ato com o real motivo da elaboração do ato, tendo havido uma espécie de simulação, visto que o verdadeiro motivo é outro, estaríamos diante da ofensa à moralidade administrativa.

A finalidade do ato é seu pressuposto finalístico. Todo o ato administrativo, como previsto, busca alcançar uma finalidade de interesse da administração. Quando, porém, há descoincidência da finalidade porque alheia à administração pública, o ato é inválido e se afigura a ofensa à moralidade administrativa. Formalmente, o ato seria lícito; substancialmente, porém, tem o vício relativo à finalidade, face ao desvio de poder. Assim, diz FRANCO SOBRINHO (Opus cit., pág. 13), a “moralidade administrativa jamais aceita o desvio, o excesso ou o abuso de poder”. Tal ocorrendo se desenha a violação ao princípio da moralidade administrativa.

CELSO RIBEIRO BASTOS (Opus cit., 3º Vol., Tomo III, pág. 38) enfatiza que “na França, mais recentemente, a importância da noção de moralidade administrativa tem decaído pela preferência que se dá à expressão ‘desvio de poder’. É preciso consignar-se que a redução da moralidade administrativa ao desvio de poder na França tem uma conseqüência prática muito grande: torna possível o exame da questão ao controle judicial. Houve aí um alargar-se da noção de direito para colher um campo que antes ficava adstrito à moral”. Nesta compreensão até agora examinada, a moralidade administrativa significa a conformação do ato a seus motivos e finalidades, consoante interesse da administração pública.

DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO (Opus cit., pág. 70) tem, acerca da moralidade administrativa, uma compreensão semelhante, enfatizando o desvio de finalidade: “O administrador age imoralmente quando administra mal, isso é, quando usa de seus poderes administrativos para atingir resultados divorciados do interesse público a que deveria atender. Por isso, além do desvio de finalidade, deve-se considerar como imoralidade administrativa a ausência de finalidade e a ineficiência grosseira da ação do administrador público”. JOSÉ CRETELLA JR. (Opus cit., Vol. IV, pág. 2.146) revela o mesmo desvio de poder como ofensa à moralidade administrativa.”

Conclui-se que o ato que se afasta da motivação e finalidade, como também não é fundamentado, não atende ao conceito de moralidade administrativa. Tal princípio exige a publicidade não apenas do ato, mas da própria motivação.


É sabido que a anulação do ato administrativo é a sanção aplicada contra o ato irregular, baixado em desconformidade com a proporcionalidade ou razoabilidade, que devem estar obrigatoriamente presentes na atuação pública, com o intuito de afastar os excessos injustificáveis.

Importante destacar que, da leitura da decisão do CADE, compreendemos que não é cabível deixar ao arbítrio do comprador a escolha dos bens a serem adquiridos. Vejamos:

– Da realização do acordo de preservação da reversibilidade da operação (APRO).

A decisão do CADE procura enaltecer a elaboração do acordo que permitisse a reversibilidade da operação. Inclusive, chega a citar que “não houve qualquer alteração nas instalações físicas da planta da Garoto ou na sua estrutura logística e de distribuição”.

Ora, se o CADE, em sua decisão, valorou tanto a preservação da reversibilidade da operação, inclusive pelo aspecto físico do negócio, como pode, ao mandar reverter a operação, autorizar que um terceiro venha a adquirir o negócio com características diversas do que foi adquirido pela Nestlé?

Só vem a demonstrar a inexistência de motivação para o item C da decisão. Afinal, de que adiantaria preservar a reversibilidade do negócio, se o próprio CADE impõe exigência que impediria o negócio de ser revertido, na medida em que o desnatura?

– Do reconhecimento, por parte do CADE, da elevada e essencial importância do patrimônio intelectual no negócio.

A decisão do CADE enfatizou “o gosto do consumidor brasileiro, e sua fidelidade à marca”. Definiu, também, como barreira ao negócio, “os segredos industriais que encerram fórmulas para se obter sabores, texturas e outras características dos chocolates adaptadas aos gostos dos consumidores.”

Segundo o CADE “Esta barreira se manifesta quando as entrantes lançam seus produtos e têm dificuldades para conquistar parcelas do mercado em razão da fidelidade do consumidor às características intrínsecas do chocolate, incluindo o seu formato, sabor, ingredientes, modos de composição de diferentes ingredientes num só produto, etc…”

Quanto à marca, disse ainda que: “A fixação da marca constitui uma barreira significativa à entrada no mercado do chocolate.” “A importância da marca pode ser aquilatada igualmente pela elevada soma de recursos aplicados em marketing e campanhas promocionais.”

Falou também da “necessidade de se deter um portfólio diversificado e conhecimento de produtos e marcas, condição para se garantir a presença nos pontos de venda.”

Verifica-se, assim, que a decisão do CADE, a todo o tempo, valorou a propriedade intelectual da Chocolates Garoto. Não há dúvidas de que a “alma do negócio” não é propriamente o complexo físico industrial.

Logo, não se pode compreender qual o motivo pelo qual o CADE autoriza um comprador a adquirir a propriedade imaterial em detrimento da material, sem que, com isto, esteja criando uma facilidade artificial que somente irá favorecer o comprador em detrimento de seus concorrentes. Justamente aquilo que a lei das concorrências quis evitar.

Ou seja, enquanto que a Nestlé e suas concorrentes possuem responsabilidade pela exploração física do negócio, responsabilidades trabalhistas e sociais conquistas por seus trabalhadores e pelas comunidades onde as suas fábricas estão instaladas, o adquirente poderá, mediante a aquisição parcial do negócio, alcançar vantagens que suas concorrentes não possuem.

Bastará que, de propriedade do patrimônio intelectual, se aproveite da “guerra fiscal” entre os Estados da Federação para instalar sua produção em locais escolhidos por fatores meramente econômicos, tais como: menores encargos tributários, doações de terrenos, baixo custo da mão-de-obra, etc…

É uma realidade deste País que qualquer investidor detentor da propriedade imaterial é cobiçado pelos Estados e Municípios, que oferecem todos os tipos de vantagens ficais e imóveis para que tais empresas se instalem. A guerra fiscal existe e é uma realidade neste País. Some-se a isto a multidão de desempregados, o que proporciona a mão-de-obra abundante e de baixo custo.

Ora, se algum comprador deseja a Chocolates Garoto, e se a venda é determinada para que não haja concentração econômica, então é completamente contraditória a decisão do CADE. Contraditória porque, ao mesmo tempo em que reconhece o peso da propriedade intelectual na concorrência do negócio, cria condições para que o comprador, ao invés de adquirir ganhos mediante a eficiência no livre mercado, em condições de igualdade com os demais, venha usufruir ganhos artificiais, somente possíveis com a aquisição fracionada da empresa.

DA RESPONSABILIDADE DA NESTLÉ BRASIL LTDA.

Até o momento, enfocamos a decisão do CADE. Todavia, não podemos deixar de ressaltar que o ato considerado infração à ordem econômica foi praticado pela Nestlé Brasil Ltda. Sendo assim, caberá a tal empresa tomar as providências para que a situação seja revertida ao estado anterior. Essa é uma obrigação da empresa que realizou o ato de concentração, e não do CADE.


Todavia, verificamos que o CADE determinou uma providência equivocada e desmotivada à empresa. Providência esta que, a bem da verdade, embora não retire da Nestlé Brasil Ltda. suas responsabilidades, levará a prejuízos ocasionados pelo ato de concentração.

A lei 8884/94 diz claramente, em seu art. 29, que o ajuizamento de ação se dará de forma distinta do processo administrativo:

“Art. 29. Os prejudicados, por si ou pelos legitimados do art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação.”

Como se pode verificar, a lei é clara em dizer que os legitimados poderão ingressar em juízo para “obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica bem como para o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do processo administrativo”.

Ora, nota-se que a responsabilidade pelo ato de concentração foi da Nestlé, mas o CADE, ao determinar uma providência sem fundamento, data venia, está colaborando para a perpetuação dos efeitos nocivos do ato de concentração considerado ilegal. De modo que, consistindo a decisão do CADE um título executivo, deverá tal autarquia figurar no pólo passivo para fazer cessar a atitude que tem o condão de gerar prejuízos decorrentes do ato de concentração.

Neste aspecto, é importante que fique ressaltado que, se a lei possibilita ao legitimado pleitear ao Juízo a cessação de infração econômica e indenização por perdas e danos, com muito mais razão o legitimado pode requerer ao magistrado providência que impeçam os prejuízos de ocorrerem. No caso, o prejuízo ocorrerá se a Nestlé não retornar a situação ao estado anterior. E a decisão do CADE, no aspecto impugnado, tornou-se verdadeiro empecilho para que a ordem jurídica seja restaurada.

DO CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS DO CADE E DA LEGITIMIDADE DO AUTOR.

Aqui, pedimos vênia para transcrever entendimento, perfeito, do Dr. Yuri Carneiro Coelho em sua obra “Da disciplina jurídico-constitucional da iniciativa privada”, publicada no site “jus navegandi”, onde a questão foi abordada com propriedade:

” Sem dúvida o CADE tem competência para impor punições àqueles que, de qualquer forma, praticarem atos lesivos à ordem econômica, na forma do que dispõe sua legislação específica.

Porém, não pode o Judiciário se abster de examinar quaisquer pedidos, pelos órgãos devidamente legitimados para tal, conforme o art. 29 da lei do CADE, quando se argüir ofensa à ordem econômica.

Traduz claramente este artigo que quaisquer prejudicados, por si ou pelos legitimados pelo art. 82 da lei 8078/90, poderão ingressar em juízo para defenderem seus direitos ou interesses que julgarem ofendidos.

A Constituição, em seu art. 5º , inciso XXXV, dispõe que, “a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito.” conseqüentemente, toda e qualquer lesão, ou ameaça de lesão à Ordem Econômica poderá ser apreciada pelo poder judiciário, independente de ter sido questionada em qualquer área administrativa. Em última ratio, o juiz decide, pois, possui todos os poderes constitucionais necessários a isto.”

“Portanto, não resta dúvida de que, no confronto CADE x JUDICIÁRIO, em que pese o CADE poder, por intermédio dos poderes que lhe foram conferidos, até executar suas decisões, poderá o judiciário desconstituir qualquer decisão proveniente do mesmo, ou ratificar, com base no art.5º, inciso XXXV da Carta Magna Brasileira.

Ademais, cumpre acrescentar que, o judiciário deverá sempre observar a constitucionalidade dos atos promovidos pelo poder executivo, no tocante ao âmbito de intenção no domínio econômico, como sendo próprio de sua esfera ou não. É desta forma que ao judiciário caberá analisar quaisquer formas de intervenção do Estado no domínio econômico, já que o Estado deve sempre dirigir-se, no tocante à atuação estatal, pelo princípio da subsidiariedade, restringindo sua atuação ao necessário ao desenvolvimento de funções relacionadas ao serviço público, ou, aos ditames do art. 173 da Constituição, devendo, se assim for necessário, decretar a inconstitucionalidade destas interferências.

“A conclusão do nobre advogado merece também destaque, por se encaixar como uma luva ao caso em tela:

“Diante de todo o exposto ao longo deste trabalho, podemos sintetizar alguns conceitos básicos, quais sejam:

1- Ordem Econômica Constitucional brasileira pode ser designada como parcela da ordem jurídica, do mundo do dever ser, tido como um complexo de normas reguladoras do fato econômico,de suas relações e efeitos, norteados pelos princípios da valorização do trabalho humano e o da livre iniciativa, da soberania nacional, princípio da propriedade privada, seguido da função social da propriedade, da livre concorrência, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais, da busca do pleno emprego e do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e a administração no país.


2- A atuação estatal na órbita econômica deve se dar na forma do art. 173 , caput da Constituição, pautado pelo princípio da subsidiariedade, só podendo, a intervenção do Estado no e/ou sobre o domínio econômico ocorrer sobre três prismas, quais sejam, o da intervenção por absorção ou participação, a intervenção por direção e a intervenção por indução, não se constituindo a privatização nem a concessão em formas de intervenção do Estado no domínio econômico.”

Sendo assim, não se justifica a intervenção do Estado no domínio econômico, segundo os princípios constitucionais, para determinar ao comprador da Chocolates Garoto que possa optar por adquirir a melhor parte da empresa, e relegar a parte menos valorizada à venda, o que ocasionará prejuízos sociais gravíssimos.

Sendo o autor a associação sindical legalmente responsabilizada pela defesa dos interesses dos operários, prejudicados pelo ato de concentração, possui interesse e legitimidade para a demanda, em defesa dos interesses da categoria. Preceitua o parágrafo 1o do artigo 1o da Lei 8.884/94 “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei” o que nos conduz a conclusão da legitimidade do autor para a causa.

DA NECESSIDADE DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA

A ausência da fundamentação, por si só, é suficiente a demonstrar a fumaça do bom direito. O perigo na demora reside no fato de que, se for executada a decisão do CADE, seja por iniciativa do mesmo ou por parte da Nestlé, será irreversível, ou de dificílima reparação.

A decisão do CADE determinou o prazo de apenas 20 (vinte) dias para a Nestlé iniciar as providências visando a alienação da Chocolates Garoto, o que deverá ser feito no prazo de 90 (noventa) dias da aprovação da avaliação pericial determinada pela decisão executiva.

A rigor, tais prazos já se exauriram. A Nestlé, entretanto, pleiteou reconsideração da decisão do CADE, o que foi denegado, sendo que o andamento processual demonstra que a decisão está em vias de publicação. Logo, não é possível aguardar a tramitação do presente processo judicial, sob pena de perecimento do direito.

DO PEDIDO

Por tudo que foi exposto, requer a V. Exa. o seguinte:

A) Seja recebida a presente ação civil pública (art. 1º, inciso VI, da Lei 7.347/85) e conceda V.Exa. liminarmente antecipação da tutela jurisdicional, para suspender a exigibilidade do item “C” da decisão proferida pelo CADE. Vedando a Nestlé de alienar os ativos da Chocolates Garoto de forma desmembrada, a pedido de algum possível comprador.

Requer seja determinada a publicação de edital, às expensas dos réus, tornando pública a presente decisão em relação a interessados na aquisição da Chocolates Garoto S/A e terceiros interessados. Sucessivamente a este pedido, acaso V. Exa. não entenda pela admissão da ação civil pública, o que se diz apenas para argumentar, seja recebida a presente como ação ordinária, deferindo-se, em todo caso, a medida de antecipação de tutela ora pleiteada.

B) Após, a citação dos réus para que contestem se quiserem a ação, sob pena de revelia. Requerendo que a Nestlé Brasil Ltda. seja citada pelo correio, como admite o CPC. Requer seja intimado também o Ministério Público Federal a intervir na lide como fiscal da lei.

C) No mérito, seja julgada procedente a ação, para confirmar em todos os seus termos a tutela antecipada pleiteada, e declarar a nulidade do item “C” da decisão do CADE, por todos os motivos expressos nesta ação. Condenando, em caráter definitivo, a Nestlé na obrigação de não-fazer, ficando vedado que, ao reverter o negócio, proceda à venda dos ativos da Chocolates Garoto S/A de forma desmembrada, como imotivadamente autorizado pela decisão impugnada. Determinando-se que o desfazimento do ato de concentração, ao ser feito pela Nestlé Brasil S/A, reconduza a situação ao estado anterior, preservando, assim, a integralidade do negócio como o era quando da aquisição. Impondo-se, também em caráter definitivo, a multa pleiteada em sede de tutela antecipada. Declarando-se a inconstitucionalidade incidental do art. 4º da lei 8884/94. Requer seja proibido o CADE de proferir outra decisão sem a devida motivação, vedando-se, ainda, decidir sem que participem do colegiado representantes dos empregados e empregadores, já que seus interesses estão em jogo. Acaso, no curso deste processo, por qualquer motivo, a venda seja realizada na forma do guerreado permissivo do item “C” da decisão executiva, requer seja anulada a operação, determinando a reversão ao estado anterior, condenando-se os réus no pagamento de perdas e danos, a serem arbitrados em liquidação, e revertidos a fundo destinado a cobrir os prejuízos causados aos trabalhadores.

D) A condenação dos réus no pagamento das custas, despesas processuais e honorários de advogado. A distribuição de tais gravames há de ser feita proporcionalmente à responsabilidade dos réus pela demanda. A Nestlé ocasionou o ato de concentração declarado inválido, e o CADE decidiu imotivadamente, dentre os outros vícios acima apontados no aspecto impugnado da decisão administrativa.

E) A concessão da isenção de custas, despesas processuais e honorários de advogado ao autor, com fulcro no art. 18 da lei 7.347/85. Bem como, independente de tal isenção garantida por lei, a gratuidade de justiça ao autor, vez que não possui condições de suportar com os custos de tal demanda, dado ao elevado valor da causa. Sendo que já é pacífico nas instâncias superiores que as pessoas jurídicas também podem ser beneficiárias da gratuidade de justiça, provada tal necessidade.

Requer seja admitida a produção de todos os meios de prova que o direito permite. Em especial, requer desde já que seja determinado ao CADE que traga aos autos cópia de todas as decisões proferidas no processo que analisou o ato de concentração causado pela Nestlé ao adquirir a Chocolates Garoto.

Dá à causa o valor de R$ 120.000.000,00 (cento e vinte milhões de reais), que, segundo estimação bastante modesta, é o valor dos ativos materiais da capacidade produtiva da Chocolates Garoto, segundo o seu último balanço, ou seja, aquilo que o CADE autorizou a Nestlé a vender, de forma disassociada, da propriedade imaterial.

Pede Deferimento

Vitória, 3 de novembro de 2004.

LUÍS FERNANDO NOGUEIRA MOREIRA

OAB-E.S. 6.942

(1) “§ 3o Incluem-se nos atos de que trata o caput aqueles que visem a qualquer forma de concentração econômica, seja através de fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário, que implique participação de empresa ou grupo de empresas resultante em vinte por cento de um mercado relevante, ou em que qualquer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais). (Redação dada pela Lei nº 10.149, de 21.12.2000)”

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