Reforma sindical

Fragilidade da negociação coletiva não é culpa apenas da lei

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4 de novembro de 2004, 18h00

O que não é novo, mas é ainda notável no quadro da jurisdição, autorizando-a a transpor a metodologia processual comum em direção aos conflitos coletivos do trabalho, é a competência normativa dos Tribunais do Trabalho. Um dos seus pontos focais é o estar predicada do atributo da eqüidade, de que decorre, em princípio, o livre trânsito do juiz para construir a solução do caso. Mas qual será o raio de ação dessa normatividade tão peculiar? Que condições a podem limitar?

O poder normativo não é incondicionado. O editar normas é função que deve atender a critérios realistas e de razoabilidade. Uma ínsita pretensão de eficácia da sentença normativa depende de que esta se ajuste à realidade das partes que a postulam.

Eis tudo, em síntese: a norma não é pura compulsão nem surge do nada, ela advém da vida social; isto vale para a lei como para a sentença coletiva. Também esta deve guardar a mais próxima relação com os pressupostos fáticos a que visa regulamentar, pena de transfundir-se em ato de mera onipotência, incapaz de cumprir uma função socialmente vinculante e estabilizadora.

O principal desses fatores condicionantes é o econômico. Os seus elementos complexos não escondem, atualmente, uma evidência que se abre aos olhos de todos: a primazia do capital financeiro numa tal medida que impossibilita, no horizonte visível, a reorganização dos setores produtivos da economia onde se criam empregos e renda. Em conseqüência, o nível de ocupação cai consideravelmente e com ele, o poder de negociação dos trabalhadores.

Daí se segue que manter o emprego já é em si uma conquista, verdade que transluz na vida pessoal e familiar de cada trabalhador, arrastando consigo, ao tempo em que a reduz, a significação histórica das lutas sociais por melhores salários e condições de trabalho.

Por conta disso, passamos a ter uma perspectiva apenas parcial do problema. O visualizar-se o emprego, exclusivamente, retira o trabalho humano e os valores dele resultantes do topo das mediações sociais a que pertencem historicamente, em razão do seu significado insubstituível na praxis do homem e da sociedade.

Na prática, as condições de trabalho não se moverão para a frente pela ação restrita do poder normativo, que sendo embora distinguível no plano jurisdicional, como se afirmou, está preso aos limites do conflito pontualmente localizado. Não é uma estrutura soberanamente real e transformadora, até porque opera, desde a instauração do dissídio, com normas e critérios que, compreensivelmente, limitam as possibilidades de uma intervenção dotada de maior extensão de efeitos.

As tensões e os conflitos coletivos são questões que jamais se esgotam. Questões permanentemente abertas, renovam-se de forma incessante, por isso que a sua solução é uma tarefa para sempre inacabada. O caminho pelo qual se vêem vencidas a cada passo é o da negociação. Caminho tortuoso e difícil, sem dúvida, fora do qual, entretanto, só existe a sentença, que é técnica puramente normativa e objetivada, decorrente da necessidade de resolver uma dada situação conflitiva.

A Constituição deu um grande peso às formações sociais com o evidente intuito de que promovam a maior expansão possível dos direitos fundamentais. No contexto, estão as entidades sindicais de trabalhadores e de empregadores. Se elas ocupassem com verdadeiro empenho o amplo espaço da negociação coletiva na empresa e no âmbito das categorias econômica e profissional, não se limitando a fazê-lo no momento apenas do dissídio, como geralmente fazem com reduzido êxito, mas todo o tempo, em consonância com a dinâmica dos fatos econômico-sociais, por certo que aumentariam enormemente o seu coeficiente de legitimidade, que deve mesmo elevar-se ao grau mais alto, uma vez que detêm uma significativa e larga titularidade jurídica em razão de sua manifesta importância no campo da autonomia coletiva.

Posição privilegiada da qual, entretanto, não se aperceberam as entidades sindicais brasileiras de todos os matizes, nos dezesseis anos da promulgação da Constituição. Só a falta de percepção pode explicar esse tateante exercício de extensos poderes, donde resulta que a negociação coletiva, lamentavelmente, não é posta em prática como deveria e não é compreendida como um princípio dominante. Dominante porque a Constituição se acercou diretamente dela, e honestamente, pois a instituiu no momento mesmo em que desentulhou da vida sindical o modelo fascista gerado no regime corporativo da Carta de 1937, perante o qual só se podia falar retoricamente de negociação.

Ora, se a globalização financeira nos interpela tão duramente com a sua face perversa, então é que nos cabe fortalecer as instituições vinculadas ao princípio mesmo da existência social. Uma dessas instituições é precisamente a negociação coletiva, que é uma ação política, um bem social derivado das liberdades democráticas, cujo exercício deve ser contínuo em ordem a expandir os direitos já assegurados na Constituição e nas leis. É um agir e não apenas um fazer, que exprime tão só uma atividade executada num determinado instante, como bem distingue Celso Lafer, ao tratar, na obra de H. Arendt, da dignidade da política.

O tema ganha relevância à vista da anunciada reforma sindical. Penso que o poder normativo não é causa eficiente da fragilidade da negociação coletiva. Como lhe consentem os seus muitos limites, ele ainda cumpre um mínimo de função ordenadora em situações de completa ausência de negociação entre empregadores e trabalhadores, como aconteceu recentemente entre bancários e banqueiros.

Para mim, o problema da negociação deve ser visto juntamente com a questão da unicidade sindical, que não é um resíduo autoritário, porque resultou de um processo democrático à época da Constituinte, com ampla participação dos sindicatos, que a escolheram. Mas o tempo testou-lhe a eficácia e parece certo, pelo debate que já se instaurou a respeito, que em breve surgirá em seu lugar um outro modelo, capaz de expressar de modo mais autêntico a representação dos trabalhadores e das empresas, até porque ambos têm hoje conhecimento e atitude exigentes no aspecto de suas posições políticas. Nesse contexto, a negociação coletiva, atualmente próxima da inoperância, pode ganhar centralidade e tornar-se enfim um princípio realmente ativo como quer a Constituição da República.

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