Controle externo

Conselho Nacional de Justiça é retrato do inconsciente coletivo

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3 de novembro de 2004, 10h31

Assim que for aprovada a reforma do Poder Judiciário ora em fase de votação final no Senado Federal, estará criado o Conselho Nacional de Justiça, composto de quinze membros, entre eles um ministro do Supremo Tribunal Federal, dois ministros de tribunais superiores, um desembargador de Tribunal de Justiça, um juiz estadual, um juiz de Tribunal Regional Federal, um juiz federal, um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, um juiz do trabalho, um membro do Ministério Público da União, outro do Ministério Público estadual, dois advogados e, finalmente, dois cidadãos, um escolhido pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.

Esse Conselho vai se reunir para exercer o controle das atividades administrativas e financeiras dos órgãos do Poder Judiciário, competindo-lhe, inclusive, a fiscalização dos deveres funcionais dos juízes, além de um variado rol de incumbências similares a essas, bem como outras que serão conferidas pelo futuro estatuto da magistratura.

A esmagadora maioria dos juízes brasileiros posiciona-se favoravelmente à criação de um órgão de controle de suas atividades, à exceção, evidentemente, da prestação jurisdicional, pois, acaso incluída essa, estar-se-ia diante da maior heresia que se poderia perpetrar contra o sistema republicano em que se funda o Estado brasileiro.

Esperava-se que a instituição desse órgão viesse em termos, afastada a participação de pessoas estranhas ao Judiciário, como é o caso dos representantes das duas Casas do Congresso Nacional, ou que o rol de suas atribuições não tivesse o elastério que tem para não retrair o que é da essência desse poder, ou que sua composição obedecesse ao critério de hierarquia, para que, por exemplo, um ministro do STF ou de Corte Superior não fosse julgado por um juiz de primeiro grau.

Quanto aos representantes do Congresso, seria o mesmo que se permitir a participação de membros de um outro poder investidos na condição de fiscais dos atos administrativos e funcionais dos parlamentares que desbordassem do estrito cumprimento do mandato popular. Outra questão fundamental é o risco de politização do órgão, o que poderia conduzir a uma tentativa de indução as decisões do Judiciário, fato que, se ocorrer, fará sucumbir de vez a democracia e o Estado de direito.

A concepção desse modelo de conselho leva à sociedade a vã ilusão de que será o grande xarope que sanará os males da morosidade da Justiça. Não vai ocorrer nada disso. A lentidão dos processos judiciais — fiquei rouco de dizer isso quando na presidência do STF — tem como causa precípua um amontoado de normas e procedimentos processuais perdidos na vetustez do tempo, incompatíveis e distantes da velocidade que a tecnologia passou a ditar às ações e relações humanas, além da falta de recursos para melhor equipar os serviços judiciais, a criação de varas e ampliação dos juizados especiais, tanto na área da justiça comum como na federal.

O leigo, que se sente um desafeto da lentidão da Justiça, vislumbra na criação desse órgão o grande e eficaz instrumento capaz de fustigar e desforrar o juiz moroso. Inspirado, em conseqüência, no inconsciente coletivo de que se subsume, admite que o juiz tem privilégios que ele não tem, trabalha menos e ganha mais, tem férias e feriados que ele não tem e possui uma série de vantagens e direitos que ele não tem.

Estúpida avaliação! É preciso vestir a toga e sentir o seu peso para saber o que é a vida de um juiz. O formato desse órgão é, pois, no fundo, o retrato desse inconsciente coletivo — da sociedade, do presidente Lula, que desejou afoitamente abrir os segredos da caixa-preta, e de todos os que querem promover a catarse do Judiciário.

Há irregularidades no Judiciário? Há. Existem juízes preguiçosos, que não gostam de trabalhar? Existem. Há magistrados que, por não gostar da parte ou do advogado, retardam, ou, às vezes, nem julgam a causa? Ou a julgam com parcialidade? É verdade. São deformações da condição humana. Estão por todos os lados. Aparecem até na linha de frente do Gabinete Civil da Presidência da República, com os Waldomiros da vida.

A emenda constitucional 7, de 13 de abril de 1977 (o chamado Pacote de Abril), criou o Conselho Nacional da Magistratura. Sabe o que mais chegava para a sua apreciação no Supremo Tribunal Federal, onde funcionava? Queixas de juízes que atrasavam o julgamento de processos, pitimba de juiz com advogado, a compra de um tapete para ornamentar a sala de audiência e coisas do gênero, além de um grande volume de representações e queixas de pessoas que sofrem daquela doença característica do perdedor da causa, um mal que intumesce os estudos de psicopatologia forense. Para ele o advogado foi comprado; o juiz é ladrão; o tribunal é corrupto; o promotor não presta. Em grande parte é isso que vai sair da caixa-preta.

Mais do que o tapete do juiz vai custar o Conselhão dos 15 superjuízes. Certamente cada um de seus membros quererá bons jetons e um carro oficial. Igual ou melhor ao que usa o ministro do STF. Também vai ter direito a uma dupla de motoristas. Exigirá ter os próprios assessores. Precisará de computadores e muitos telefones e ramais. De um chefe de gabinete e um quadro de servidores. Necessitará de um espaçoso gabinete, bem bonito, equipado com ar condicionado e móveis modernos, com prateleiras e códigos, de bons livros, e de um garçom para servir-lhe cafezinho.

Em seguida os excelentíssimos senhores conselheiros vão querer um prédio com direito à arquitetura de Niemeyer. Com muito vidro fumê e panorâmicas janelas com vista para o Lago. E o quê mais? Brindemos a caixa-preta.

* Artigo publicado no jornal Correio Braziliense

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