Droga pesada

Modelo econômico transforma o trabalhador em dependente químico

Autores

  • Luiz Salvador

    é presidente da ALAL diretor do Departamento de Saúde do Trabalhador da JUTRA assessor jurídico de entidades de trabalhadores membro integrante do corpo técnico do Diap do corpo de jurados do Tribunal Internacional de Liberdade Sindical (México) da Comissão Nacional de Relações internacionais do Conselho Federal da OAB e da comissão de juristas responsável pela elaboração de propostas de aprimoramento e modernização da legislação trabalhista instituídas pelas Portarias-MJ 840 1.787 2.522/08 e 3105/09.

  • Margarida Barreto

    é médica do Trabalho do Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Plásticos de São Paulo com especialização em Psicologia Social PUC-SP Prof. Universitária e autora de diversos artigos jurídicos sobre a saúde do trabalhador bem autora do livro: Violência saúde trabalho - Uma jornada de humilhações publicado pela EDUC - EDITORA DA PUC-SP.

27 de março de 2004, 10h17

Os números mais recentes sobre acidentes e doenças do trabalho da ultima década no Brasil desvendam uma realidade assustadora, apesar das subnotificações que ainda prevalecem como subproduto das políticas de gestão.

Segundo dados da Previdência extraídos da Comunicação de Acidentes do Trabalho – CAT – podemos afirmar sem exageros que a década de noventa assinala um massacre no mundo do trabalho: foram 4.148.861 acidentes típicos(1), 197.059 casos de doenças do trabalho e 39.250 óbitos. Todos com o mesmo nexo-causal: o trabalho.

Números da pesquisa da DATAPREV(2) referente aos últimos 3 anos desse século confirma a continuidade do massacre: 908.326 acidentes típicos, 58.978 doenças do trabalho e 8.745 mortes. Há uma guerra imposta, não declarada, silenciosa em que previamente sabe-se quem serão os vencedores. Se não fossem os números reveladores, seria um morticínio sutil, passando quase que por despercebido – verdadeira tragédia nacional – prejudicial a toda a sociedade.

Para compreendermos o que venha a ser essa guerra oculta, não declarada e causadora de tantas tragédias já catalogadas, basta examinarmos os efeitos que ela mesma produz, fazendo-se necessário refletirmos a política econômica de tonalidade neoliberal e seu traço destrutivo: concorrência e competitividade desenfreada entre trabalhadores; desemprego massivo; aumento da miséria urbana; exclusão social.

E, numa conclusão lógica, logo podemos observar que a essência da expansão desse projeto econômico neoliberal se concentra na migração dos riscos dos países do norte para os países do sul, com os efeitos decorrentes já conhecidos: quebra de direitos sociais; desregulamentações; reformas no contrato de trabalho com predomínio do emprego temporário; presença crescente dos estagiários permanentes; incremento do trabalho terceirizado, gerando subemprego, subcontratações, utilização da mão de obra conhecida free-lance e outras modalidades legislativas tidas como modernas que patenteiam e reforçam a precarização do trabalho.

No intramuros, as políticas de recursos humanos buscam obstinadamente satisfazer a voracidade por lucros cada vez maiores. E discorrem dia-após-dia sobre a necessária motivação, entusiasmo e liderança, na perseguição incansável da maior lucratividade e produtividade. E como estratégia de estímulo da produção, o sistema vale-se da chamada “ferramenta afetiva”.

A intencionalidade é criar um clima de contentamento geral e aceitação sem questionamento do modelo imposto, independentemente das condições de trabalho propiciadas ao conjunto de trabalhadores, onde predomina a flexibilização e a precarização em nome da empregabilidade.

E, para a reprodução do capital, o que importa são as metas, o controle da produtividade, o ritmo de trabalho, obrigando o trabalhador a dispor cada vez mais de menos tempo para atingir as metas então estabelecidas de produção; e, conjugada com a execução de múltiplas tarefas a um só tempo, essa metodologia adotada permite atingir as mesmas metas, permitindo-se que se possa utilizar cada vez mais, menos trabalhadores contratados.

Assim esses trabalhadores que ainda permanecem contratados são submetidos a jornadas de trabalho prolongadas, dilatadas, mas não transparentes, posto que escamoteadas pela adoção, como exemplo, do banco de horas autorizado pela legislação de cunho flexibilizador e que tem o efeito perverso de aumentar ao máximo o tempo de disposição do empregado em favor da produção, sem a contrapartida salarial correspondente, permitindo-se ao empregador pagar salários cada vez menores e de custos da produção cada vez mais reduzidos.

O processo de terceirização permite a existência de empresas flexibilizadas e horizontalizadas nas formas de gerir e de produzir, atuando em redes com regras claras e fixas, quer para admitir ou demitir.

A adoção desse sistema de terceirização, quarterização permite, em nome da adoção de novas tecnologias, o processo de demissão do empregado da unidade produtiva central, que, como num passe de mágica, se desoneram dos custos de produção direta, contornando a aplicação da legislação social vigente, por outra menos protetiva e benéfica aplicável aos empregados terceirizados. E essa mesma legislação tão festejada, porque mais flexibilizada, vai aos poucos quebrando a saúde física e mental dos trabalhadores, diuturnamente ameaçados com o flagelo do desemprego.

Para a empresa, flexibilizar significa terceirizar, quarteirizar, subcontratar, subempregar e transferir riscos que se configuram em novas redes empresariais de precarização. Para os trabalhadores e trabalhadoras, significa maiores exigências e sobrecargas. Ser flexível é adaptar-se às mudanças constantes. É deixar-se expropriar o tempo de lazer e convívio com a família, pois, o tempo é de domínio da empresa. E a instabilidade no emprego faz parte do pacote flexibilizado.


Numa das pontas do sistema, a flexibilização e terceirização virou regra comum nas empresas, os riscos passaram a ser terceirizados e “desapareceram” da responsabilidade da corporação. Com ambientes de trabalho “clean” e aparentemente saneados, os programas de controle dos acidentes chamados de “tolerância zero”, exibem uma realidade que contrasta com o contingente de trabalhadores que adoecem, sendo demitidos e substituídos por outros ainda sadios e de menor custo operacional, criando um exército de trabalhadores doentes, lesionados, desempregados, que sem a emissão da CAT e reconhecimento do nexo causal ou nexo entre a doença e o trabalho executado, não permite que o INSS lhes conceda o benefício acidentário, impedindo que o trabalhador também obtenha possibilidades de sucesso em julgamento perante o Poder Judiciário, cujas decisões buscam sempre o apoio nas conclusões positivas dos laudos dos peritos apontadores ou não do nexo causal.

Em outra ponta, o modelo da organização de trabalho ainda mantém como traço categórico das relações hierárquicas, o abuso de poder – o controle contínuo dos trabalhadores e em muitos casos sabidos, até mesmo de quantas vezes o trabalhador vai ao banheiro.

Como decorrência dessas práticas agressivas, temos o sofrimento ético político, determinado por condições de trabalho e os múltiplos modos de revelação dos adoecimentos. Esses podem ser avaliados como componente particular e singular dos direitos não assegurados aos trabalhadores e trabalhadoras assim como do dever não cumprido dos empregadores, pois o tempo da flexibilidade é o tempo de um novo adoecer e padecer.

Padecer este que está relacionado: ao não reconhecimento do que faz; às ameaças constantes de desemprego; às pressões e opressões continuadas para produzir cada vez mais; aos ambientes insalubres e adoecedores, tudo isso associado ao permanente medo da perda o emprego – do flagelo do desemprego – e não encontrar novo emprego. Medo de não saber, de não ser reconhecido, de ser excluído por incompetência. Medo do futuro, da sobrevivência da família. Medo que engendra: vergonha, tolerância, sujeitamento, isolamento. Medo que é manipulado e transformado em instrumento da produtividade, sendo nesse próprio ambiente desequilibrado que surgem novas doenças, até mesmo as de ordem psicosomáticas.

Doenças que sequer são creditadas ao mundo do trabalho e que lá tem sua origem. São as depressões, síndromes do pânico, distúrbios do comportamento, estresse laboral, fadiga crônica, burnout, impotência, diminuição da libido, isolamento social, aumento do uso de drogas, sendo o mais usual o álcool. As conseqüências ultrapassam o indivíduo, pois invade e desarticula as relações sociais e afetivas na família; quebra laços de camaradagem. Origina sentimento de inutilidade que leva a muitos a ter idéias suicidas ou mesmo ao suicídio, especialmente entre aqueles que perderam o emprego. Desta forma, é desolador ouvirmos os trabalhadores demitidos e doentes falar do seu sofrimento. Uma via crucis interminável e injustificável. Devem provar a doença e o nexo com o trabalho. São humilhados e ridicularizados em diferentes espaços. Incompreendidos na família, pois não conseguem ser readmitidos no mercado formal.

Aos poucos a doença vai sendo reconfigurada, acentuando o sentimento de inutilidade e impotência, permitindo o agravamento da tristeza pelo que perdeu. Fato comum entre trabalhadores que receberam a “voz da demissão” de forma sumária e impiedosa em finais de tarde e ou mesmo em períodos de festas natalinas e ou de finais de ano. Desesperados, saem sem rumo. Afogam-se na bebida para esquecer a traição a tantos anos de dedicação exclusiva. Desaparecem de casa e todos são consumidos pelo desespero e impotência. O reaparecimento, apesar de comemorado pelos familiares, é também não compreendido dentro dos parâmetros vigentes da normalidade. Levado ao especialista, é medicalizado. Após um ano desempregado, escondido dos vizinhos em sua própria casa, envergonhado dos filhos e da família que agora o sustenta, vive em sofrimento, angústia, desespero e baixo-estima. Quer desaparecer e para buscar alívio contra a dor moral, torna-se um dependente químico dos antidepressivos.

Neste pequeno relato, cada vez mais comum, temos o desdobramento social do ocorrido no interior da empresa: desvalorizações, pressão, exposição a múltiplos riscos visíveis e invisíveis, adoecimento, demissão. Com o passar do tempo, a não inserção ao mercado formal. Percebe-se enfraquecida sua potencia de ação pelo uso de medicamentos antidepressivos. É necessário compreendermos a trama que o envolve este trabalhador e de centenas de outros casos análogos, com os conhecidos processos de demissões para o descarte do trabalhador adoecido no trabalho.

Não obstante a adoção dessas práticas, a legislação social vigente no país é protetiva do trabalho humano, mas seguidamente descumprida. O trabalhador tem que ser tratado não como peça descartável, mas como parceiro da produção econômica, tendo o direito de ser bem tratado, com equilíbrio e isonomia. Pois da mesma forma que é obrigado a ter um tratamento respeitoso para com seu empregador, este também é obrigado a respeitar o trabalhador, não ferindo sua dignidade, constitucionalmente assegurada.


É obrigação imposta por lei a que o empregador assegure ao trabalhador um ambiente saudável e equilibrado e saneado de todos os riscos ocupacionais, quer os visíveis, quer os invisíveis, havendo necessidade de se investir na questão da saúde e segurança no trabalho, para que se garanta ao obreiro as ideais condições de trabalho adequadas. É essa prática também acaba por constituir ao empregador um bom negócio, já que trabalhador doente não produz, ficando afastado, de licença médica, o que acaba também por trazer ônus à própria sociedade.

É fato consabido que nenhum trabalhador é admitido se estiver doente. Todos, no processo admissional, são rastreados minuciosamente. Adentram aqueles com saúde perfeita. Adoecem-se em conseqüência do trabalho, adquirem um passaporte não desejado e são rejeitados como se fossem descartáveis. Essa é a fotografia do modelo econômico que viola a dignidade do trabalhador, transformando-o em inútil, deprimido e dependente químico, conseqüência da desmesura de poder que viola direitos e impõem sentimentos tristes e preocupantes.

Na extremidade do mesmo fio neoliberal, como “carro-chefe” das vendas de medicamentos, encontram-se os antidepressivos que contribuem para o enriquecimento dos laboratórios multinacionais ligando o desempregado de forma cruel, desumana e perversa ao mercado formal, agora enquanto consumidor.

A Carta Política Cidadã como o Novo Código Civil Brasileiro impõe às empresas, antes do lucro, sua responsabilidade social para com toda a sociedade, não se admitindo práticas como as denunciadas, mesmo que travestidas de uma dimensão esquecida no intramuros e nem numa estratégia extramuros, buscando-se mascarar a verdade presente nas relações capital-trabalho, com políticas de sonegação de informações e de omissão de responsabilidade empresarial quanto aos números assustadores de tantas mortes, doenças e acidentes, divulgados e reconhecidos pela própria previdência, vitimando milhares de trabalhadores, ceifados abusivamente enquanto força de trabalho produtiva, de relacionar-se socialmente com os outros homens, propiciado por sua condição material e econômica, fruto do trabalho digno a que todo cidadão tem assegurado, visando sua melhor qualidade de vida.

As condições de trabalho e a forma como estão organizadas as relações hierárquicas de trabalho, podem configurar-se como pressão, opressão e coação que impõe limites à ação humana. E nesse sentido, é necessário que o Estado não se afaste de regular as relações capital-trabalho, sendo também imperativo que as empresas se submetam ao principio basilar do direito a dignidade humana e que o Estado democrático cumpra seu papel de garantir a todos, independente de raça, idade, sexo ou classe social, o direito a vida e condições dignas no ambiente de trabalho, com políticas fiscalizatórias e punitivas dos respectivos incumprimentos da legislação protetiva do trabalho humano. Fechar os olhos é ser cúmplice deste cenário de genocídio. É esquecer que toda “pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições eqüitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”, como recomenda o artigo 23 da Declaração da OIT relativa aos princípios e direitos fundamentais no trabalho.

Notas de Rodapé

(1) Acidente que ocorre nas dependências da empresa.

(2) Órgão do governo que processa informações a partir dos dados de benefícios.

Autores

  • é advogado trabalhista e presidente da Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (Abrat).

  • é médica do Trabalho do Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Plásticos de São Paulo, com especialização em Psicologia Social PUC-SP, Prof. Universitária e autora de diversos artigos jurídicos sobre a saúde do trabalhador, bem autora do livro: Violência, saúde, trabalho - Uma jornada de humilhações, publicado pela EDUC - EDITORA DA PUC-SP.

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