Barreira no Judiciário

Adoção da súmula vinculante não é compatível com a cidadania

Autor

23 de março de 2004, 16h04

O direito não é estático, é fruto da evolução da sociedade, devendo espelhar seus avanços e não seus retrocessos. Por isso, muitas súmulas e enunciados são reformulados com base nas novas realidades exigidas pelos cotidianos presentes na sedimentação das conclusões atualizadas das sentenças dos juízes de 1º grau, em contato direto e permanente com os jurisdicionados. A súmula vinculante pode tornar a solução mais rápida, mas engessa a evolução do direito em prejuízo da sociedade.

Estamos inteiramente de acordo com o posicionamento firme e contrário à adoção da súmula vinculante do Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, e do Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.

A Reforma do Judiciário (Proposta de Emenda à Constituição – PEC – 29/2000) que se encontra no Senado já em fase adiantada, trata, dentre os diversos assuntos, da adoção pelo Brasil da súmula vinculante.

É incontestável e sabido que o processo judicial deve ser realizado com eficácia e velocidade, desenvolvendo-se e encerrando-se no menor prazo possível para que a paz jurídica seja restabelecida rapidamente e o cidadão tenha o seu direito reconhecido e assegurado num menor tempo possível, evitando, assim, prejuízos.

Ao advogar a adoção da súmula vinculante, sustentam os seus defensores que a implantação de tal instituto traria maior agilidade e rapidez na efetivação da tutela jurisdicional, pois evitaria manobras protelatórias e morosidade processual. Os opositores à adoção desse mecanismo, por outro lado, sustentam que o princípio da celeridade processual deve, como qualquer outro preceito, ser analisado em conjunto com os outros princípios, haja vista a necessidade de proporcionar uma correta prestação jurisdicional de mérito, não se apegando ao formalismo para negar o direito. A adoção deste princípio tem em vista impossibilitar aplicação de mecanismos jurídicos prejudiciais à busca da verdade real e contrários aos preceitos norteadores da veracidade e da utilidade, sob pena da prestação jurisdicional trilhar o defeituoso caminho da ética de resultados em detrimento da ética de princípios. A celeridade processual é por demais importante e deve sempre ser perseguida, sem prejuízo aos demais princípios jurídicos.

No entanto, a conclusão que se tem é que se houver maior celeridade isso não decorrerá da entrega do direito, como função estatal da garantia da prestação jurisdicional, mas da inibição do próprio direito constitucional de ação e aqui o exemplo só poderá ser o da entrega negativa do direito e não da positiva, desejada e necessária.

Na prática, visa a adoção da súmula vinculante evitar a utilização dos recursos previstos em lei, impondo-se na prática a redução da litigiosidade, não significando que a sociedade esteja mais cumpridora dos deveres sociais.

Pelo contrário, em nosso entendimento o que se dará será por certo o aprisionamento da enorme litigiosidade reprimida, atendendo, sim, à intenção de adotar-se entendimento prévio sobre determinada questão jurídica para atender a certos interesses momentâneos do poder político dominante, por intermédio da cúpula do judiciário que não é um órgão de representação popular, pois não é eleito e com as garantias da vitaliciedade.

O problema da lentidão da justiça não é um fenômeno brasileiro apenas, é globalizado. É decorrente do exercício pleno do direito de cidadania cada vez mais de reconhecida dimensão e amplitude, acompanhando o crescimento e o desenvolvimento da própria civilização.

No caso brasileiro, o crescimento do número de ações judiciais que se avolumam geometricamente nos tribunais não só tem relação direta com o exercício do direito de cidadania assegurado pela Constituição Federal (art.1º, inciso II), mas também decorre da nossa cultura em só confiar no Poder Judiciário como nosso único e exclusivo árbitro, sendo que quando se institui outras formas de solução do conflito – como, por exemplo, as Comissões de Negociação Prévia – o vício de origem contagia todo o bom propósito. Ou seja, a Lei 9.958/2000, ao invés de assegurar proteção ao crédito alimentar trabalhista, permite que os maus empregadores (que não cumprem a legislação protetiva do trabalho humano) liquidem seus passivos trabalhistas por valores vis, irrisórios, perante essas comissões, que têm o privilégio legal de emprestar efeito liberatório geral (art. 625-E), mesmo das parcelas que sequer foram discutidas perante a comissão.

Disso resulta outro nefasto e inconveniente efeito perverso; configura proteção legal acobertadora do enriquecimento ilícito à custa do não pagamento integral dos créditos trabalhistas alimentares tutelados, além de incentivar a prática de concorrência desleal entre o mal empregador que não cumpre com suas obrigações sociais e trabalhistas e o empregador pontual, que a cumpre rigorosamente e em dia.


As opiniões a respeito da adoção da súmula vinculante são as mais antagônicas possíveis. De um lado, alguns magistrados, levados pelo acúmulo de trabalho (recebendo cada vez mais e mais processos para julgar), advogam a adoção da súmula vinculante.

De outro, a sustentação de que o Estado tem o dever de atender inteiramente aos jurisdicionados na garantia do seu exercício pleno do direito à cidadania, o direito à completa prestação jurisdicional, sem que o direito seja “engessado”, limitando a criatividade do magistrado das instâncias inferiores.

Esta posição decorre da justificativa plausível de que o juiz por estar mais próximo do povo, da comunidade onde vive e por ser detentor de exemplar sensibilidade social, melhor condições tem de entregar a equilibrada, necessária e “justa justiça”, tão desejada por todos, sem invasão da interveniência dos demais poderes no Judiciário, dentro da visão de separação de poderes traçados por Montesquieu: “o Parlamento legisla, o rei governa e os juízes julgam de acordo com a vontade da lei”.

Dentro dessa mesma macro-visão, salutar relembrar a sábia lição equilibrada de Carlos Maximiliano, ao examinar o magnânime papel que a sociedade atribui ao juiz, que deve ser livre para julgar, sem amarras, preso apenas às suas convicções e às provas dos autos, não podendo, portanto, ficar asfixiado, engessado e subordinado ao texto frio da lei, sem vida e nem mesmo a um entendimento sumular:

“Não pode um povo imobilizar-se dentro de uma fórmula hierática por ele próprio promulgada; ela indicará de modo geral o caminho, a senda, a diretriz; valerá como um guia, jamais como um laço que prenda, um grilhão que encadeie. Dilata-se a regra severa, com imprimir elasticidade relativa por meio de interpretação. Os juízes, oriundos do povo, devem ficar ao lado dele, e ter inteligência e coração atentos aos seus interesses e necessidades. A atividade dos pretórios não é meramente intelectual e abstrata; deve ter um cunho prático e humano; revelar a existência de bons sentimentos, tato, conhecimento exato das realidades duras da vida.” (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1996, 16ª edição, p. 60)”.

No mesmo sentido, também, relevante são as conclusões do renomado doutrinador pátrio e juiz do Trabalho, Jorge Luiz Souto Maior, Titular da 3ª Vara de Jundiaí/SP, trazendo luzes a esta discussão tão relevante:

“As súmulas vinculantes, na minha concepção, não têm nenhum mérito. A segurança jurídica não é motivo para vedar a oxigenação do direito. O direito depende dela para sobreviver. Soluções rápidas, a custa desse oxigênio, não são um avanço e sim o começo do fim do Estado de Direito, o primeiro passo para a implantação de regimes ditatoriais. A história está aí para bem demonstrar isto. Os regimes de Stalin, Mussoluni e Hitler se apoiaram em tal “segurança” e na supremacia dos “interesses nacionais”. Nem mesmo a regra do precedente do sistema anglo-saxão segue a mesma lógica do sistema das súmulas vinculantes. A técnica dos precedentes (stare decisis) tem sentido no sistema da commom law” porque como o próprio nome diz o direito é o direito feito pelos tribunais. É a regra legal estabelecida pelo juiz. É óbvio que os juízes estão subordinados a esta regra, da mesma forma que os juízes da civil law estão subordinados à lei feita pelo Legislativo. Mas os dois podem interpretar a lei e aplicá-la aos casos concretos com liberdade e independência e mesmo criticar a posição majoritária. Grandes avanços no direito norte-americano se deram a partir de votos vencidos, transcritos nos grandes arestos da Suprema Corte americana. As decisões judiciais contraditórias são o pulmão de uma sociedade verdadeiramente democrática. Conviver com a democracia não é fácil, não é simples, mas é preciso fazê-lo” (Autor citado, Professor Universitário, Livre-Docente em Direito do Trabalho pela USP e autor do artigo intitulado: “SÚMULAS COM EFEITO VINCULANTE”, publicado pela Editora Decisório Trabalhista, Fasc. 3, pág. 52 – Maio/1997).

Na mesma linha de entendimento, Ivan Alemão, que é juiz titular da 4ª Vara do Trabalho de Niterói e autor dos livros publicados pela LTR, dentre os quais, “Garantia do Crédito Salarial”, “Direito das Relações do Trabalho” e “Execução do Devedor, Satisfação do Trabalhador”) é da opinião seguinte:

“As súmulas vinculantes são uma espécie de lei que pode ter efeito retroativo, acaba com a divisão de poderes e põe a perder tudo aquilo que a própria burguesia conquistou desde a Revolução Francesa. O legislador, por mais ignorante que seja, é eleito, diferente do Poder Judiciário. Há um discurso de celeridade que carrega escondido o gosto do poder” (autor citado, artigo intitulado: “Súmulas Vinculantes: leis com efeitos retroativos”, publicado no da AMATRA 1), ano II, n. 7, dez/96, p.10).


Dois outros notáveis juízes do trabalho, Luiz Alberto de Vargas (doutorando em Barcelona) e Ricardo Carvalho Fraga na monografia que juntos elaboraram examinam a questão de como essa discussão do acúmulo de processos nos tribunais tem sido resolvida:

“Se discute muito o paradigma da Suprema Corte americana, que se exime de julgar todos os casos, mas que escolhe escrupulosamente que caso elegerá para serem modelares para toda a jurisprudência estadounidense. Na Europa, também, cada vez se discute mais obre o esgotamento da capacidade operativa dos tribunais constitucionais para darem conta de todas as questões de constitucionalidade. A experiência recente da Itália parece indicar que, cada vez mais, a solução é tornar o juiz de instâncias inferiores mais responsável pela decisão, remetendo-se a ele a decisão dentro de determinados parâmetros e reservando-se a decisão pelo tribunal constitucional para casos especiais” (autores citados no livro intitulado “Direito do Trabalho Necessário”, Coordenadora Maria Madalena Telesca, Porto Alegre, Editora Livraria do Advogado, 2002, capítulo “Fatos e Jurisprudência – reflexões iniciais”, pg. 56).

A questão da adoção ou não da súmula vinculante, portanto, não é de fácil solução, não podendo ser resolvida com uma visão simplista de apenas acabar com o grande número de processos que se acumulam cada vez mais nos tribunais superiores, necessitando de um exame mais preciso e criterioso. Um exame de todos os elementos envolvidos nessa questão. E isso só é possível através da utilização do método “eslético”, ou seja, o estudo de toda a inteireza do objeto discutido e não a do exame apenas de uma parte.

A questão não se resolve, portanto, adotando-se a súmula vinculante para atender aos interesses de julgadores em contrariedade aos interesses e direitos dos jurisdicionados. No exame dessa questão, não se pode, sequer, deixar de lado o exame dos efeitos maléficos gerados pela política neoliberal globalizadora que impõe que o Direito do Trabalho se amolde às novas exigências do mercado produtivo, flexibilizando e precarizando os direitos trabalhistas e sociais, já que o modelo econômico mundial globalizado imposto pelas transnacionais inverte as diretrizes traçadas pelo constituinte de 1988. Ao invés da prevalência do social em detrimento do mero interesse particular do lucro, passa-se a dar prevalência aos interesses econômicos do capital alienígeno, ao assumir a postura privacionista então adotada no sentido de que a sociedade do futuro seria a sociedade do 1/5, não havendo, em conseqüência, perspectivas de integração para os 4/5 excluídos, como relatam Hans-Peter Martin e Haral Schumann, os dados da reunião então realizada no Hotel Fairmont, em 1995, na cidade de San Francisco, entre chefes de Estado, economistas e empresários, onde definiram os novos rumos da economia mundial, como se extrai da monografia intitulada: “MODERNIDADE E DIREITO DO TRABALHO” (autor citado Jorge Souto Maior, com publicação pela Ed. Plenum – Juris Plenum, on line, Ed. 75, vol. 2, jan/fev/2004).

Dentro, pois, dessa inversão de prioridade, em contradição com os primados constitucionais, há que se examinar, sem dúvida, ainda e previamente, antes da aprovação da Reforma do Judiciário, a questão da reforma do Estado na sua globalidade e em especial a reforma fiscal, que se ainda não foi aprovada, se deve ao total desinteresse do Executivo Federal, que não quer correr o risco de perder arrecadação, já que com a sistemática atual consegue arrecadar cada vez mais em detrimento da política exigida pelo “exportar ou morrer” do FHC. Tanto isso é verdadeiro, que vem a público o Deputado Aécio Neves, Presidente da Câmara Federal dos Deputados, informar à imprensa que a reforma fiscal só mesmo para o ano 2003. Somente com a aprovação da nova política fiscal é que se poderá dimensionar qual o tamanho do papel do Estado e por óbvio, qual o tamanho que se quer da Justiça, mormente a do Trabalho, que tem declinado até mesmo do seu constitucional direito de exercer o “poder normativo”, sob o ponto de vista neoliberal de que o conflito entre o capital e o trabalho deva ser resolvido na mesa de negociação pelas partes interessadas, dando-se inclusive sustentação jurídica, pela jurisprudência, da prevalência do negociado sobre o legislado.

Percebendo a inteireza de toda essa complexidade, a Ministra do STJ, Eliana Calmon, na entrevista que prestou à Revista Consultor Jurídico a respeito do seu entendimento sobre a Reforma do Poder Judiciário, esclareceu que acha importante a aprovação, mas não no momento, pois que a acha precipitada:

“O Brasil atravessa uma mudança radical. Nós precisávamos primeiro fazer uma reforma política para depois da reforma política nós fazermos a nossa reforma fiscal. Porque o que dá respaldo à estrutura organizacional de um país é exatamente o dinheiro que arrecada. A partir daí, com essa reforma política, com a reforma administrativa, que já começou, e com uma reforma fiscal-tributária, nós teríamos exatamente o tamanho do país ideal, aí nós partiríamos para reformar o Judiciário dentro desse contexto já estruturado. Como está, nós temos dificuldade até de mexer na Reforma do Judiciário”, in http://conjur.uol.com.br/textos/7085/.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!