Volta ao TRF-3

Julgamento no STF indica que Haddad voltará para o TRF-3

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23 de março de 2004, 18h20

O desembargador federal Roberto Luiz Ribeiro Haddad poderá voltar a exercer o cargo no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Pelo menos é o que indica o julgamento iniciado, nesta terça-feira (23/3), na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.

Três dos cinco ministros que decidem o caso já votaram no sentido de trancar a ação penal respondida pelo desembargador. São eles: Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Nelson Jobim.

Haddad foi denunciado pelo Ministério Público por crime de uso de documento falso sobre sua declaração de Imposto de Renda do ano-base de 1995.

A defesa de Haddad alegou que não há interesse jurídico para a instauração de ação penal pela suposta prática do crime autônomo de uso de documento falso, pois a conduta descrita na denúncia encontraria tipificação em norma penal específica, relativa ao crime de sonegação fiscal. Afirma ainda que o STJ teria ignorado o princípio da especialidade, aplicável ao caso, e invocado erroneamente o princípio da consunção

A defesa argumentou que deveria ser declarada extinta a punibilidade por crime contra a ordem tributária, pois o desembargador pagou, antes do recebimento da denúncia, o imposto reclamado no Processo Administrativo que corria na Receita Federal.

Os ministros desqualificaram os argumentos do Ministério Público. O relator do caso, ministro Gilmar Mendes, reconheceu “a extinção de punibilidade quanto ao crime tributário previsto no art. 2º, I, da Lei 8.137”.

O julgamento foi adiado no STF porque o ministro Carlos Velloso pediu vista do processo.

Leia o voto do ministro Gilmar Mendes:

HABEAS CORPUS 83.115-0 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

PACIENTE(S) : ROBERTO LUIZ RIBEIRO HADDAD

IMPETRANTE(S) : ANTONIO NABOR AREIAS BULHÕES E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES) : CORTE ESPECIAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator): Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado em favor de ROBERTO LUIZ RIBEIRO HADDAD, Desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, contra decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que recebeu denúncia do Ministério Público Federal para instaurar a Ação Penal nº 238/SP, o que resultou no afastamento do paciente de suas funções (art. 29 da Lei Complementar nº 35/79).

Os fatos estão assim narrados na inicial deste habeas corpus.

Nos autos de Inquérito que tramitou perante o STJ, em investigação quanto ao suposto enriquecimento ilícito do paciente no exercício de cargo de juiz, teria sido determinado ao Secretário da Receita Federal a realização de fiscalização tendo por objeto as declarações de rendimentos do paciente desde o ano de 1994.

Nesse procedimento, teria sido apurada a existência de rendimentos sujeitos à tributação não revelados na declaração relativa ao ano-calendário de 1994. Em razão disto, foi lavrado auto de infração contra o paciente.

Ao impugnar referido auto de infração, o paciente juntou cópia do recibo de entrega de declaração de rendimentos retificadora, que teria sido apresentada ao Centro de Atendimento ao Consumidor – LUZ (CAC/LUZ), unidade da Receita Federal em São Paulo, em 12 de janeiro de 1999.

E aqui surge o suposto ato ilícito.

Diante da apresentação do recibo relativo à declaração retificadora, a Delegacia da Receita Federal em São Paulo teria verificado que os carimbos utilizados por aquele centro de atendimento da Receita (CAC/LUZ) nos meses de janeiro, fevereiro e março de 1999 eram diferentes daquele aposto no recibo da declaração retificadora. O carimbo constante do recibo apresentado só teria sido usado por aquela unidade da Receita a partir de abril de 1999.

Em razão de tais fatos, o Instituto Nacional de Criminalística foi incumbido de examinar o recibo apresentado pelo denunciado, confrontando-o com os padrões fornecidos pela Receita Federal como sendo os utilizados pela CAC/LUZ no período de janeiro a março de 1999. A conclusão do parecer daquele Instituto, transcrita na inicial, tem o seguinte teor:

“(…) a impressão carimbada no campo ‘CARIMBO DE RECEPÇÃO’ do RECIBO DE ENTREGA DA DECLARAÇÃO DE AJUSTE ANUAL, do IRRF, 1995, ano-calendário 1994, em nome de ‘ROBERTO LUIZ RIBEIRO HADDAD’, número do CPF ‘023142238-53’, examinado, não foi produzida por nenhum dos carimbos que produziu as impressões carimbadas às fls. 210 dos autos, utilizadas como padrão”.

Assim, dizem os impetrantes, a partir de tal conclusão pericial, o Ministério Público teria extraído o fundamento para a acusação de que o paciente teria apresentado à Delegacia da Receita Federal em São Paulo uma declaração de rendimentos retificadora materialmente falsa.

Foi então formulada a denúncia em que se imputou ao paciente a prática do crime de uso de documento falso, nos moldes dos artigos 304 c/c 297 e parágrafo único, ambos do Código Penal, com o efeito de perda de cargo público, como prevê o art. 92, I, do mesmo diploma.


Acompanhando a denúncia, em peça separada, o Ministério Público teria requerido o afastamento do paciente de suas funções judicantes.

Não há, portanto, na ação penal que tramita no STJ, acusação por crime relativo à eventual enriquecimento ilícito e tampouco por crime tributário. O que há é uma acusação autônoma por crime de uso de documento falso.

Tal como sintetiza o parecer do então Subprocurador-Geral da República, Dr. Cláudio Lemos Fonteles (fls. 50 a 58), atualmente na chefia do Ministério Público Federal, “sustentam [os impetrantes] a presença de ilegal coação no julgado unânime, emanado da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (fls. 2135/2157 – apenso 10), porque:

a) a prova pericial de suporte à denúncia a tanto não se presta, se confrontada com o parecer técnico, subscrito pelo Prof. Carlos Alberto Zerbetto, a pedido da defesa (fls. 14/23);

b) falta de justa causa à persecução criminal a teor do artigo 43, III, do CPP (fls. 23/26);

c) pretensão punitiva deduzida por conduta contra a fé pública, quando, na verdade, o evento define-se como infração contra a ordem tributária (fls. 27/40);

d) extinção da punibilidade pelo delito contra a ordem tributária ante o pagamento do tributo (fls. 40/41).”

No que se refere à perícia, os impetrantes, com base em parecer técnico de Carlos Alberto Zerbetto, formulam uma série de objeções. E com base em tais impugnações, apontam a inexistência de base empírica idônea para fundamentar a denúncia, o que resultaria na ausência de justa causa para a ação penal.

Alega-se, ainda, que não haveria interesse jurídico para a instauração de ação penal pela suposta prática do crime autônomo de uso de documento falso, haja vista que a conduta descrita na denúncia encontraria tipificação em norma penal específica, relativa ao crime de sonegação fiscal. Nesse ponto, a par de elementos de doutrina, são invocados precedentes do STJ (HC 1506, Rel. Min. Carlos Thibau; HC’s 4547 e 4340, Rel. Min. Anselmo Santiago; RHC 2145, Rel. Min. Edson Vidigal) e deste Supremo Tribunal (HC 65850, Rel. Min. Francisco Rezek; HC 76.847, Rel. Min. Marco Aurélio).

No caso, afirma-se que o STJ teria ignorado o princípio da especialidade, aplicável ao caso, e invocado erroneamente o princípio da consunção.

Para além de tais argumentos, afirma-se que “haver-se-ia de declarar extinta a punibilidade por crime contra a ordem tributária de que eventualmente se cogitasse contra o paciente a partir da descrição especulativa contida na denúncia do MPF, a teor do art. 34 da lei na 9.249/95, porquanto comprovado, às fls. 2.098/2.101 do anexo, haver ele pago, antes do recebimento da denúncia e, por conseguinte, antes da instauração da ação penal de que se cuida, o tributo reclamado no Processo Administrativo nº 13808.004312/00-95”.

Postulou-se a concessão de liminar para o fim de suspender o curso da ação penal.

No mérito, foi requerida a concessão da ordem para trancamento da ação penal, “quer por falta de justa causa, pois inexistente nos autos prova da materialidade do crime de uso de documento falso que lhe foi irrogado, quer por falta de interesse de agir do Ministério Público para imputar-lhe – no contexto de uma denúncia que formalmente descreve conduta caracterizadora em tese de crime contra a ordem tributária – crime de uso de documento falso, quer, finalmente, pela ocorrência da extinção de sua punibilidade quanto a crime contra a ordem tributária, pelo pagamento do tributo devido (art. 34 da Lei nº 9.249/95)”.

Indeferi o pedido de liminar (fls. 60/61). Todavia, após reiteração do pedido, reconsiderei aquela decisão para suspender o curso da ação penal perante o STJ (fl. 67).

O parecer do Ministério Público Federal é no sentido do indeferimento da ordem.

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Relator): A primeira alegação, em que se discute a idoneidade do suporte probatório utilizado para a formulação da denúncia, não merece ser acolhida.

A denúncia oferecida perante o STJ arrima-se em prova pericial que evidencia, de modo plausível, o cometimento de um ilícito de falsidade.

Os impetrantes apresentam uma série de impugnações ao laudo pericial que poderiam ser consideradas pelo STJ quando do julgamento da ação penal. Considero relevante, mas não passível de um juízo definitivo no âmbito deste habeas corpus, por exemplo, o argumento que impugna os procedimentos que constituem pressuposto para a afirmação de que determinada impressão de um carimbo da Secretaria da Receita Federal é falsa.

De fato, para o cidadão que apresenta um documento junto à Receita Federal mediante recibo, parece afigurar-se imperioso um procedimento que permita, com o maior rigor possível, um controle no uso e na substituição dos carimbos. Mas essa não é uma discussão para ser travada neste habeas corpus.


Não se pode afirmar que a inicial deste habeas corpus evidencia, de modo inequívoco, a impropriedade do fundamento fático da denúncia. A análise dos argumentos formulados, com base em parecer técnico que infirmaria a base empírica da denúncia implicaria discussão aprofundada quanto a matéria probatória, o que se afigura incompatível com o rito do habeas corpus.

O segundo argumento é o da ausência de interesse jurídico para a instauração da ação penal pela suposta prática do crime autônomo de uso de documento falso. Isto porque a conduta descrita na denúncia encontraria tipificação em norma penal específica, relativa ao crime de sonegação fiscal.

No caso, afirma-se que o STJ teria ignorado o princípio da especialidade, aplicável ao caso, e invocado erroneamente o princípio da consunção ou absorção.

Em resumo, os impetrantes consideram que, de fato, a denúncia descreve crime de sonegação fiscal. E nesse ponto invocam a jurisprudência desta Corte, no sentido de que o acusado defende-se dos fatos descritos na denúncia, e não da sua classificação. Tal argumento é construído, a par de todo o contexto fático descrito na peça acusatória, especialmente a partir do seguinte trecho da denúncia:

“7.Apurou-se, portanto, através do presente inquérito, que Roberto Luiz Ribeiro Haddad apresentou à Delegacia da Receita Federal em São Paulo uma Declaração Retificadora da sua Declaração de Rendimentos referentes ao ano-base de 1994, materialmente falsa.

8.Com tal conduta pretendeu o Denunciado iludir a administração tributária, fazendo-a acreditar na existência de uma retificadora que na verdade nunca chegou a existir” (fl. 246 do anexo).

Desse modo, na visão dos impetrantes, o Ministério Público teria destacado do crime contra a ordem tributária, de um modo indevido, um elemento que lhe seria indissociável, qual seja o crime de falso. Isto porque, nas palavras dos impetrantes, “o uso de documento falso, em casos como o descrito na denúncia, caracteriza circunstância elementar de delito contra a ordem tributária, previsto em lei especial (Lei nº 8.137/90, art. 2º, I), e portanto insuscetível de ser destacada para configuração de delito autônomo definido no Código Penal (art. 304), como unissonamente proclamam a doutrina e a jurisprudência”.

A inicial busca então embasamento em precedentes desta Corte.

Citam, ainda, os impetrantes, jurisprudência do STJ sobre o tema. E mais, apontam elementos doutrinários em favor de sua tese, no sentido de que não se aplicaria ao caso o princípio da consunção (ou absorção), mas sim o princípio da especialidade. O passo seguinte da impetração é previsível. Apontam os impetrantes o pagamento do tributo antes do recebimento de denúncia, o que implicaria a extinção da punibilidade.

O parecer do Ministério Público afasta tal argumento nos seguintes termos:

“14.Quanto ao segundo fundamento, desenvolvido à luz do concurso aparente de normas para estabelecer, pelo princípio da especialidade (impetração a fls. 32 e 39), que só há o crime de sonegação fiscal, jamais o de uso de documento falso, não merece frutificar.

15.De plano, também, e para o caso apresentado, não se trata da incidência do princípio da especialidade, data venia.

16.Como pontua Mezger, citado pelo sempre presente Heleno Cláudio Fragoso, a propósito desse princípio, verbis:

“… todas as características típicas do tipo geral (da lex generalis) se acham também contidas no tipo especial (da lex specialis), mas este contém ademais ainda outra ou outras características ulteriores (isto é, as características que fundamentam a especialidade e, com isso, a precedência da lex specialis frente à lex generalis).” (in – Lições de Direito Penal – A Nova parte Geral, 11ª edição, pg. 275, grifos do original)

17.Por isso, incide o critério da especialidade no infanticídio em relação ao homicídio.

18.Na relação delito contra a ordem tributária – sonegação fiscal – e contra a fé pública – uso de documento falso -, nestes tipos, não se reconhecem características gerais comuns.

19.O sonegar está em suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social, ou …; já o usar documento falso, tal se dá no caso, compromete a autenticidade (função de garantia) de documento, ou seu valor probante.

20.Na verdade, a relação possível entre o delito de sonegação fiscal e o falso pode dar-se no plano da consunção porque, pela própria definição do crime de sonegação fiscal, como posta no artigo 1º, caput, da Lei 8137/90, este fica reconhecido nas condutas descritas nos subseqüentes incisos, que se constituem em etapas necessariamente anteriores à sua caracterização. Nestas etapas, o falso insere-se, por isso que se o tem como consumido, visto que “há consunção quando um crime é meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro crime” (in – obra citada, pg. 376).


21.Aqui, não!

22.Aqui, como está no trecho do voto do il. Min. Fernando Gonçalves – vide: item 5, deste parecer – em volição destacada, porque o auto de infração já fora lavrado, e portanto em momento ulterior, o acusado usa documento falso para estabelecer a prova de que oferecera declaração retificadora em 12.01.99 quando, na verdade, a retificação só aconteceu em 09.01.2001.

23.O reconhecimento, em princípio, do crime de uso de documento falso é bastante, de per se. ” (fls. 56 a 58)

Não vislumbro, no caso, uma relação de especialidade entre o tipo previsto no art. 2º, I, da Lei nº 8.137, de 1990, e o crime de falso previsto no art. 304 c/c com o art. 297 do Código Penal.

A especialidade verifica-se, basicamente, quando uma norma (a norma especial) contém, além de todos os elementos da norma geral, um elemento especializador, que a diferencia. A propósito, ensina Toledo:

“Se entre duas ou mais normas legais existe uma relação de especialidade, isto é, de gênero para espécie, a regra é a de que a norma especial afasta a incidência da norma geral. Considera-se especial (lex specialis) a norma que contém todos os elementos da geral (lex generalis) e mais o elemento especializador. Há, pois, em a norma especial um plus, isto é, um detalhe a mais que sutilmente a distingue da norma geral. No exemplo do tráfico internacional de drogas, o legislador acrescentou, na Lei de Tóxicos, a capacidade de certos produtos de entorpecer ou de causar dependência, para distinguir tais espécies de produtos do gênero, isto é, de todos os demais que possam ser objeto de importação clandestina ou proibida. Logo, se a substância contrabandeada tem essa característica particular, o fato realiza o tipo especial do art. 12 da Lei n. 6.368/76, não o geral do art. 334, caput, do Código Penal. Há, exemplificativamente, relação de especialidade entre tipos básicos e tipos privilegiados (furto simples e furto privilegiado, homicídio simples e homicídio privilegiado), entre tipos básicos e tipos especiais autônomos (homicídio e infanticídio) etc.” (Princípios Básicos de Direito Penal, 5a. Ed., São Paulo, Saraiva, 1994, p. 51)

Não é esse, por evidente, o caso dos autos. Não se pode considerar o tipo de falso, previsto no Código Penal, como um tipo geral em relação ao crime de sonegação, previsto no art. 2º, I, da Lei 8.137, e vice-versa. Não há, entre tais tipos, uma relação de gênero e espécie. São tipos distintos, que buscam a tutela de diferentes bens jurídicos. Num deles, a fé pública. Noutro, a eficácia do poder tributário.

Tampouco aplicável o princípio da subsidiariedade. Esse princípio, cabe lembrar, verifica-se nas hipóteses em que diferentes normas protegem o mesmo bem jurídico em diferentes fases (ex. A tentativa em relação ao crime consumado).

Resta então discutir a aplicação, ao caso, do princípio da absorção, ou da consunção. Busca-se, em tal princípio, evitar a dupla punição pelo mesmo fato.

O que há, de fato, no caso em exame, é que o tipo relacionado ao crime tributário abrange um elemento do tipo de falso. Ou ainda, melhor dizendo, o falso constitui etapa para a caracterização do crime de sonegação previsto no art. 2º, I, da Lei 8.137.

Na fixação dos contornos desse princípio valho-me, novamente, da lição de Toledo, verbis:

“O princípio ne bis in idem, freqüentemente invocado em direito penal, impede a dupla punição pelo mesmo fato.

Esse o pensamento orientador do princípio da consunção, muito discutido, de conceituação pouco precisa e, em alguns casos, de utilidade problemática ante a possibilidade de solução satisfatória com a aplicação dos princípios anteriormente examinados.

Todavia, há casos sem dúvida não abrangidos pela especialidade ou subsidiariedade (pós-fato impunível) que encontram solução com aplicação do princípio da consunção, motivo suficiente para sua aceitação doutrinária.

Há, na lei penal, tipos mais abrangentes e tipos mais específicos que, por visarem a proteção de bens jurídicos diferentes, não se situam numa perfeita relação de gênero para espécie (especialidade) nem se colocam numa posição de maior ou menor grau de execução do crime. Um exemplo disso temos na violação do domicílio (CP, art. 150), que lesa a liberdade da pessoa, e no furto (art. 155), lesivo ao patrimônio.

Se, todavia, a violação da residência é o meio empregado para a consumação do furto, a punição deste último crime absorve a punibilidade do primeiro. A norma mais ampla, mais abrangente, do furto, ao incluir como um de seus elementos essenciais a subtração, ou seja, o apossamento da coisa contra a vontade do dono, abrange a hipótese de penetração na residência, contra a vontade do dono, para o apossamento da coisa. Essa norma mais ampla consome, absorve a proteção parcial que a outra menos abrangente objetiva.


Note-se que a violação do domicílio não é etapa ou passagem necessária para o furto, como ocorre com a lesão corporal em relação ao homicídio, pelo que a aplicação do princípio da subsidiariedade tácita seria discutível, embora defensável. Mas, estando esse fato prévio abrangido pela prática do crime mais grave, numa relação de meio para fim, é por este consumido ou absorvido.

O mesmo ocorre com certas modalidades de falsum e estelionato, quando aquele se exaure na fraude, que constitui elemento essencial deste último. Isso acontece, por exemplo, na falsificação de um documento que, usado como fraude para obtenção de lucro patrimonial indevido, se esgota em sua potencialidade lesiva, permanecendo sem qualquer outra finalidade ou possibilidade de uso (ex.: alguém falsifica a assinatura do correntista em um cheque e obtém, no Banco sacado, o pagamento indevido). Como o cheque esgotou-se na consumação do estelionato, não podendo mais ser utilizado para outros fins, o crime-fim de estelionato absorve o falsum.

Assim, porém, não ocorre na falsificação de certos documentos que, utilizados na prática do estelionato, continuam com a potencialidade lesiva para o cometimento de outros delitos da mesma ou de variada espécie. Nesta hipótese verifica-se o concurso formal de crimes (falso e estelionato), como ocorre, por exemplo, com a falsificacão de um instrumento de mandato para a emissão de cheque do pretenso mandante e seu recebimento no Banco sacado. Consumado o estelionato, a procuração, se contiver poderes para outros saques ou para outros fins, não se exaure na fraude daquele delito.” (Princípios Básicos de Direito Penal, 5a. Ed., São Paulo, Saraiva, 1994, p. 51)

Na mesma linha é a doutrina de Zaffaroni e Pierangeli, verbis:

“Em função do princípio da consunção, um tipo descarta outro porque consome ou exaure o seu conteúdo proibitivo, isto é, porque há um fechamento material. É um caso de consunção, o do fato posterior que resulta consumido pelo delito prévio, como na hipótese em que a apropriação indébita (art. 168 do CP) ocorre quando a coisa é obtida mediante um ardil (estelionato, art. 171): em tal caso, a tipicidade do estelionato descarta a da apropriação indébita. Outra hipótese é a do fato co-apenado, ou, fato típico acompanhante, que é o que tem lugar quando um resultado eventual já está abarcado pelo desvalor que da conduta faz outro tipo legal, como é o caso das lesões leves, resultantes da violência exercida em ações cuja tipicidade requer a violência (roubo, estupro etc.). Outra hipótese acontece quando uma tipicidade é acompanhada de um eventual resultado que é insignificante, diante da magnitude do injusto principal: tal é o caso do dano que sofrem as roupas das vítimas num homicídio ou que sofre o vinho que foi envenenado”. (Manual de Direito Penal, 4ª ed., São Paulo, RT, 2002, fl. 735)

Feitos tais registros doutrinários, considero pertinente ao caso o princípio da consunção.

Há precedentes específicos desta Corte sobre o tema. No primeiro deles, em recurso em habeas corpus da relatoria de Francisco Rezek, a discussão teve origem em denúncia por infração aos arts. 299 e 304 do Código Penal e ao art. 1º da Lei 4.729, lei especial antecessora da atual Lei nº 8.137.

A tese central da impetração, conforme anotara Rezek, era a de que o art. 1º da Lei 4.729 excluiria os arts. 299 e 304 do Código Penal, ou seja, quando praticado o delito de sonegação fiscal, mediante conduta descrita naquele dispositivo da lei especial, não se poderia admitir a simultânea incidência dos arts. 299 e 304 do CP. Rezek admitiu a correção dessa tese, nos seguintes termos:

“Quando o contribuinte, para sonegar tributo, falseia o documento e o apresenta ao fisco, incide precisamente na figura do art. 1º da Lei 4.729/65. Dizer que está ele incidindo, ao mesmo tempo, nos arts. 299 e 304 do Código Penal – cometendo falsidade ideológica ao preencher o documento, e fazendo uso do papel falso ao entregá-lo ao fisco -, é ver, numa única conduta, um delito integral, capitulado em dispositivo da lei penal, e, ao mesmo tempo, dois outros delitos que, entretanto, integram o tipo principal. Isso evoca a lição antológica dos mestres de direito penal nas primeiras linhas da disciplina: se alguém, brandindo uma faca, ataca outrem e o mata, há de se ver aí configurado um homicídio e só. Não um homicídio somado ao delito de ameaça – resultante do medo que a arma inspirou à vítima quando brandida -, e ainda ao delito da lesão corporal que causou a morte.” (RHC 65.850, Rel. Min. Francisco Rezek, RTJ 126/171)

Não obstante ter acolhido essa tese, Rezek, acompanhado pelo Tribunal, acabou negando provimento ao recurso, tendo em vista que mesmo ao se restringir a denúncia ao crime previsto na regra especial não haveria, no caso, razões para rejeitá-la.


Há, ainda, um precedente de 1998, da relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que se discutiu especificamente a absorção do crime de falso pelo crime de sonegação fiscal.

Nesse precedente (HC 76.847, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 4.9.98), a ação penal surgiu no contexto de uma auditoria fiscal voltada a apurar movimentação financeira de determinadas pessoas físicas e jurídicas que, ilegitimamente, teriam sido omitidas ao Fisco (o popularmente conhecido “caixa-dois”). Nesse caso, a denúncia pelo crime de falsidade ideológica (art. 299 do CP) teria sido formulada com o objetivo de se afastar a prescrição da pretensão punitiva.

Em seu voto, anotou Marco Aurélio:

“Este Tribunal tem proclamado responder o acusado pelos fatos narrados na denúncia e não pela classificação precária e efêmera dada a esses fatos pelo Ministério Público. Por outro lado, é sabido não estar o magistrado preso ao enquadramento jurídico emprestado aos acontecimentos quer pela acusação, quer pela defesa. Considera-os para, ai, presentes os artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal, havendo surgido a ação com o recebimento da denúncia, vir a prolatar sentença. Pois bem, exsurge da peça inicial narração direcionada à imputação aos acusados do crime de sonegação fiscal perpetrado contra a União, tanto assim que a ação foi proposta pelo Ministério Público Federal. Aludiu-se à atuação da Receita Federal e, mais do que isso, apontou-se que a abertura de contas, falsificando-se dados, objetivou operar o caixa dois da empresa ou aplicações pessoais daqueles que lhe dirigiam. Eis o trecho em que revelado o elemento subjetivo:

…para o fim de abertura de conta corrente na agência bancária do Citibank, com endereço a rua Espírito Santo, nesta cidade, com o objetivo nítido de fazer operar o caixa dois da citada empresa ou de suas aplicações pessoais.

Ora, na espécie não se pode, realmente, cogitar do tipo do artigo 294, IX, do Código Penal. Conforme ressaltado pelo Ministro Assis Toledo em acórdão proferido no Superior Tribunal de Justiça, no Recurso em Habeas Corpus nº 1.207/SP, cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 24 de junho de 1991, ‘quanto à falsidade ideológica, não se trata, no caso, de tipo autônomo. O falso destinado exclusivamente a suprimir ou reduzir tributos não constitui crime autônomo, diferente da sonegação fiscal’. Conforme os fatos narrados na inicial, o procedimento teria visado à fuga ao pagamento de tributos.”

No caso em exame, verifica-se que a acusação de crime de falso está indissociavelmente ligada à descrição de um potencial crime de sonegação fiscal. O falso, no caso, é descrito como ato praticado com o propósito de iludir o fisco, não podendo ser tratado como crime autônomo. Note-se que o documento supostamente falsificado, atribuído ao paciente, é uma declaração de rendas retificadora. Ou seja, documento destinado exclusivamente a informar ao fisco uma situação jurídica passível de um específico tratamento tributário. E aí se esgota o potencial lesivo de tal documento.

É a própria denúncia formulada perante o STJ que contradiz o parecer do Ministério Público, na parte em que este sustenta que no caso em exame o acusado teria praticado um ato em “volição destacada”. A denúncia é clara ao afirmar que “com tal conduta pretendeu o Denunciado iludir a administração tributária, fazendo-a acreditar na existência de uma retificadora que na verdade nunca chegou a existir”.

Ou seja, estamos diante de uma ação cuja relevância penal está irremediavelmente vinculada a um fim específico. Não há qualquer cogitação no sentido de que o falso teria sido praticado para outro fim senão o de iludir o Fisco.

Aliás, qual seria a lesividade, qual seria relevância jurídico-penal desse falso que, na visão do Ministério Público, constitui crime autônomo?

Daí a distinção feita por Toledo. Nas hipóteses em que o documento falso exaure a sua eficácia com a prática do estelionato, ter-se-ia a absorção.

Também não impressiona o argumento temporal, no sentido de que o falso seria posterior ao auto de infração. Esse argumento, conforme já expus, é formulado no parecer do Ministério Público. Ali está dito:

“como está no trecho do voto do il. Min. Fernando Gonçalves – vide: item 5, deste parecer – em volição destacada, porque o auto de infração já fora lavrado, e portanto em momento ulterior, o acusado usa documento falso para estabelecer a prova de que oferecera declaração retificadora em 12.01.99 quando, na verdade, a retificação só aconteceu em 09.01.2001.”

E, a partir desse argumento, imediatamente conclui o Ministério Público que “o reconhecimento, em princípio, do crime de uso de documento falso é bastante, de per se.”

Em primeiro lugar, considero que, em tese, o fato de o crime absorvido ser posterior ao crime principal não possui o significado pretendido pelo MP, no sentido de se afastar a possibilidade de aplicação do princípio da consunção.

O que importa, no campo do concurso de normas e, especificamente, no domínio da consunção, é a existência de um tipo penal mais abrangente que, no caso concreto, absorve um outro delito. Veja a citada doutrina de Zaffaroni e Pierangeli. O primeiro exemplo que mencionam é justamente o “do fato posterior que resulta consumido pelo delito prévio, como na hipótese em que a apropriação indébita (art. 168 do CP) ocorre quando a coisa é obtida mediante um ardil (estelionato, art. 171)”. Em tal caso, anotam, ”a tipicidade do estelionato descarta a da apropriação indébita”.

Mas há um outro aspecto que infirma esse argumento temporal.

A menção ao auto de infração, que seria anterior à prática do falso, não possui a relevância pretendida pelo Ministério Público.

No caso em exame, o delito descrito pela denúncia, e a discussão que foi travada no STJ, referem-se à absorção do crime de falso pelo crime descrito no art. 2º, I, da mesma Lei 8.137, que cuida de crimes tributários formais, onde a lei não exige qualquer resultado. A configuração desse crime ocorreria, em tese, com a própria declaração falsa. Ou seja, o deslocamento no tempo, que constitui pressuposto da argumentação que o Ministério Público utiliza para afastar a consunção, de fato, sequer existe.

Assim, considerando a absorção do crime de falso pelo crime tributário previsto no art. 2º, I, da Lei 8.137, concluo meu voto no sentido de reconhecer que não há justa causa para o prosseguimento da ação penal pela prática do crime autônomo de falsidade, tal como descrito no art. 304 c/c com o art. 297 do Código Penal.

Nesses termos, defiro a ordem para trancar a ação penal e, em face do pagamento do tributo, reconhecer a extinção de punibilidade quanto ao crime tributário previsto no art. 2º, I, da Lei 8.137.

É o meu voto.

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