Consultor Jurídico

Argumentos contra poder investigatório do MP são contraditórios

21 de março de 2004, 8h55

Por Paulo Gustavo Guedes Fontes

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Dois argumentos têm sido utilizados por aqueles que negam ao Ministério Público poder investigatório em matéria criminal. Seus fundamentos diferem e até se opõem.

O primeiro deles afirma que o membro do Ministério Público, no exercício da acusação penal, deve se manter imparcial quanto aos resultados das investigações realizadas pela Polícia, não podendo, com maior razão, desenvolvê-las pessoalmente.

O segundo, ao contrário, parte da premissa oposta de que o membro do Ministério Público, por ser o titular da ação penal, é parcial, podendo ser levado por essa razão a realizar uma investigação tendenciosa.

Em um, o membro do MP é imparcial e deve manter distância do trabalho da Polícia, que poderia agir com parcialidade; no segundo, o membro do MP é parcial e, por isso, as investigações devem ser realizadas pela Polícia, que seria, ela, mais imparcial.

A primeira tese foi rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça, ao adotar, em 13 de dezembro de 1999, a Súmula 234, que afirma: a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.

Nada mais fez a Corte do que aplicar entendimento pacífico na doutrina, de que o Ministério Público é parte no processo penal. É o juiz quem deve ocupar o ponto eqüidistante entre acusação e defesa, entre o acusado e o Ministério Público, cuja função constitucional é acusar. A imparcialidade que se exige do membro do Ministério Público é aquela de cunho pessoal, proibindo que o acusador seja parente do juiz ou das partes, amigo íntimo ou inimigo capital etc ; do ponto de vista funcional, a imparcialidade é incompatível com a função do acusador público.

Nesse sentido, já lecionava Hélio Tornaghi (A relação processual penal, 2ª edição, 1987, p. 271): "(…) não há que se falar em imparcialidade do Ministério Público, porque então não haveria necessidade de um Juiz para decidir a acusação… No procedimento acusatório, deve o promotor atuar como parte, pois se assim não for, debilitada estará a função repressiva do Estado. O seu papel, no processo, não é o de defensor do réu nem o de Juiz, e sim o de órgão do interesse punitivo do Estado". Assim, no processo penal brasileiro, os requisitos da imparcialidade e a necessária distância das investigações são exigidos do juiz e não do membro do Ministério Público.

Para o segundo argumento, que reconhece acertadamente a posição de parte do Ministério Público no processo penal, é o trabalho de investigação que poderia ser prejudicado por essa parcialidade. Diz-se que o membro do Parquet somente buscaria provas que servissem à acusação, deixando de pesquisar elementos que pudessem interessar à defesa.

O problema desse argumento é que seus defensores, sem maior justificativa, creditam à Polícia Judiciária, em detrimento do MP, a possibilidade de realizar uma investigação imparcial. Ora, Polícia e Ministério Público estão igualmente encarregados e interessados na repressão penal, não havendo por que acreditar que um deles seja mais imparcial que o outro.

A Polícia, pela forma prática como intervém no sistema, protagonizando uma luta por vezes de vida ou morte contra a criminalidade e exercendo a força física legal, como diria Weber, teria até menor inclinação para reconhecer e respeitar os direitos dos investigados.

Então, o que garantiria aos membros da Polícia essa imparcialidade ou por que a possuiriam em maior grau que os membros do Ministério Público? Não esqueçamos que a Polícia Judiciária está submetida hierarquicamente ao Executivo, logo a critérios políticos e, lembrando agora Carl Schmitt, a antinomia predominante na política é aquela do amigo/inimigo, muito mais do que legal/ilegal ou justo/injusto.

Deputado oposicionista, alvo preferencial de uma investigação da Polícia, pode deixar de sê-lo tão logo passe a integrar a base governista… Por outro lado, Delegados de Polícia não possuem as garantias de independência e as prerrogativas dos membros do Ministério Público.

Quando o constituinte conferiu ao membro do Parquet independência funcional similar à dos juízes, não foi apenas para que pudesse acusar livre de pressão, mas também para que pudesse não acusar, se razão jurídica não houver para tal. A independência conferida pela Constituição a procuradores e promotores se constitui em garantia não só para o Estado, mas para o cidadão, dúvida não existindo de que lhes habilita a uma maior imparcialidade, quando comparados aos integrantes das polícias judiciárias.

Surpreende que expoentes do mundo jurídico, e até ministros do Supremo, abracem a tese da "polícia imparcial" ou da "polícia mais imparcial que o MP". O noticiário mostra com lamentável fartura inúmeros episódios de desrespeito aos direitos dos cidadãos protagonizados por policiais, como a tortura e morte do auxiliar de cozinha Antônio Gonçalves de Abreu, no Rio e o recente assassinato em São Paulo do dentista Flávio Ferreira Sant’Ana.

Onde, pois, a preocupação em colher provas favoráveis à defesa? Investigações tendenciosas e acusações infundadas podem ocorrer em qualquer país: cabe ao Judiciário rechaçá-las. Retirar a investigação do MP e enfeudá-la nas mãos da Polícia é inadmissível retrocesso.

Argumentos contra o poder do investigatório do MP são contraditórios

10 de março de 2004, 12h06

Por Paulo Gustavo Guedes Fontes

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Dois argumentos têm sido utilizados por aqueles que negam ao Ministério Público poder investigatório em matéria criminal. Seus fundamentos diferem e até se opõem.

O primeiro deles afirma que o membro do Ministério Público, no exercício da acusação penal, deve se manter imparcial quanto aos resultados das investigações realizadas pela Polícia, não podendo, com maior razão, desenvolvê-las pessoalmente.

O segundo, ao contrário, parte da premissa oposta de que o membro do Ministério Público, por ser o titular da ação penal, é parcial, podendo ser levado por essa razão a realizar uma investigação tendenciosa.

Em um, o membro do MP é imparcial e deve manter distância do trabalho da Polícia, que poderia agir com parcialidade; no segundo, o membro do MP é parcial e, por isso, as investigações devem ser realizadas pela Polícia, que seria, ela, mais imparcial.

A primeira tese foi rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça, ao adotar, em 13 de dezembro de 1999, a Súmula 234, que afirma: a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.

Nada mais fez a Corte do que aplicar entendimento pacífico na doutrina, de que o Ministério Público é parte no processo penal. É o juiz quem deve ocupar o ponto eqüidistante entre acusação e defesa, entre o acusado e o Ministério Público, cuja função constitucional é acusar. A imparcialidade que se exige do membro do Ministério Público é aquela de cunho pessoal, proibindo que o acusador seja parente do juiz ou das partes, amigo íntimo ou inimigo capital etc ; do ponto de vista funcional, a imparcialidade é incompatível com a função do acusador público.

Nesse sentido, já lecionava Hélio Tornaghi (A relação processual penal, 2ª edição, 1987, p. 271): "( ) não há que se falar em imparcialidade do Ministério Público, porque então não haveria necessidade de um Juiz para decidir a acusação No procedimento acusatório, deve o promotor atuar como parte, pois se assim não for, debilitada estará a função repressiva do Estado. O seu papel, no processo, não é o de defensor do réu nem o de Juiz, e sim o de órgão do interesse punitivo do Estado". Assim, no processo penal brasileiro, os requisitos da imparcialidade e a necessária distância das investigações são exigidos do juiz e não do membro do Ministério Público.

Para o segundo argumento, que reconhece acertadamente a posição de parte do Ministério Público no processo penal, é o trabalho de investigação que poderia ser prejudicado por essa parcialidade. Diz-se que o membro do Parquet somente buscaria provas que servissem à acusação, deixando de pesquisar elementos que pudessem interessar à defesa.

O problema desse argumento é que seus defensores, sem maior justificativa, creditam à Polícia Judiciária, em detrimento do MP, a possibilidade de realizar uma investigação imparcial. Ora, Polícia e Ministério Público estão igualmente encarregados e interessados na repressão penal, não havendo por que acreditar que um deles seja mais imparcial que o outro.

A Polícia, pela forma prática como intervém no sistema, protagonizando uma luta por vezes de vida ou morte contra a criminalidade e exercendo a força física legal, como diria Weber, teria até menor inclinação para reconhecer e respeitar os direitos dos investigados.

Então, o que garantiria aos membros da Polícia essa imparcialidade ou por que a possuiriam em maior grau que os membros do Ministério Público? Não esqueçamos que a Polícia Judiciária está submetida hierarquicamente ao Executivo, logo a critérios políticos e, lembrando agora Carl Schmitt, a antinomia predominante na política é aquela do amigo/inimigo, muito mais do que legal/ilegal ou justo/injusto.

Deputado oposicionista, alvo preferencial de uma investigação da Polícia, pode deixar de sê-lo tão logo passe a integrar a base governista… Por outro lado, Delegados de Polícia não possuem as garantias de independência e as prerrogativas dos membros do Ministério Público.

Quando o constituinte conferiu ao membro do Parquet independência funcional similar à dos juízes, não foi apenas para que pudesse acusar livre de pressão, mas também para que pudesse não acusar, se razão jurídica não houver para tal. A independência conferida pela Constituição a procuradores e promotores se constitui em garantia não só para o Estado, mas para o cidadão, dúvida não existindo de que lhes habilita a uma maior imparcialidade, quando comparados aos integrantes das polícias judiciárias.

Surpreende que expoentes do mundo jurídico, e até ministros do Supremo, abracem a tese da "polícia imparcial" ou da "polícia mais imparcial que o MP". O noticiário mostra com lamentável fartura inúmeros episódios de desrespeito aos direitos dos cidadãos protagonizados por policiais, como a tortura e morte do auxiliar de cozinha Antônio Gonçalves de Abreu, no Rio e o recente assassinato em São Paulo do dentista Flávio Ferreira Sant’Ana. Onde, pois, a preocupação em colher provas favoráveis à defesa?

Investigações tendenciosas e acusações infundadas podem ocorrer em qualquer país: cabe ao Judiciário rechaçá-las. Retirar a investigação do MP e enfeudá-la nas mãos da Polícia é inadmissível retrocesso.