Dívida pendente

Poder Público brasileiro quer licença para mais calote

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13 de março de 2004, 8h47

007 contra os direitos humanos e de propriedade.

O 007, agente da espionagem inglesa, recebia o direito de matar “em nome dos interesses da Coroa”. Na emenda Constitucional nº 42/03, em andamento no Congresso, sobre a Reforma Tributária, o Senado Federal aprovou artigo que limita a 2% das receitas líquidas dos órgãos públicos, o pagamento de ordens judiciais (precatórios) de qualquer natureza.

É uma tentativa tupiniquim de transformar governadores e prefeitos em agentes 007 do calote, com licença para liquidar direitos humanos e de propriedade.

Somente no Estado de São Paulo, segundo informações do Valor Econômico de 27.2.04, a receita líquida em 2.003 foi de quase R$ 44 bilhões. 2% representam R$ 880 milhões, contra um saldo acumulado de precatórios estimado em R$ 15 bilhões. Aprovado o texto, São Paulo teria então 15 anos para pagar este saldo, isto deixando de lado as condenações judiciais definitivas que venceriam ano a ano, orçamento a orçamento neste período e que inevitavelmente iriam para o fim da fila.

O texto, extremamente mal redigido e omisso em inúmeros temas relevantes, diz que o que exceder os 2% (porque não 3 ou 4?) seria pago em 120 prestações, sem esclarecer sua periodicidade, mensal, anual, o que for. Impossível de cumprir, se é que esta vontade jamais existiu.

Tal lamentável texto tampouco registra se os precatórios já sujeitos à moratória de 10 anos prevista em 2.000 na Emenda 30 à CF, entrariam nesta nova confusão ou não. Esta moratória da Emenda 30 foi declarada inconstitucional por Ministro Relator de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade em andamento no Supremo Tribunal Federal, mas providencial “pedido de vista”, engavetado há mais de 3 anos, mantém o tema no limbo enquanto o Poder Público procura formas renovadas de calote.

O novo generoso texto não prevê nenhuma sanção ao Poder Público que descumprir suas disposições obscenamente inconstitucionais, afrontando a coisa julgada, o direito adquirido.

Qualquer governador ou prefeito, aprovada esta maluquice, poderá deixar de pagar o que quiser a seus funcionários ou desapropriar qualquer propriedade, sem pestanejar, pois provavelmente já terá atingido mesmo o limite de 2% das receitas líquidas, e o que exceder, seja o que Deus quiser…

Conceder a quem quer que seja o Direito de cumprir ordens judiciais, somente até certo ponto é consagrar o calote e admitir que, em nome de certos supostos interesses, podemos ser éticos, honestos ou responsáveis apenas até x porcento de nossa receita.

Direitos humanos, respeito ao Judiciário, não entram nesta conta.

O indivíduo (servidor público) que não recebe precatório alimentar em São Paulo está devendo no cheque especial do Banco Nossa Caixa S.A. (de propriedade do seu devedor!), e não pode limitar o pagamento de juros altíssimos a x% do seu holerith.

A empresa que não recebe precatório por desapropriação, não pode limitar o pagamento de impostos a x% de seu faturamento.

O malfadado projeto está na Câmara dos Deputados e espera-se que tal texto seja suprimido, por completo, por razões sanitárias de Direito.

Um levantamento completo do estoque de dívidas judiciais no Brasil precisa ser feito, e com base nestes números, aí sim credores e devedores poderiam desenvolver diálogo civilizado e objetivo para solução do problema, que, segundo o Min. José Dirceu, “é o maior esqueleto ainda no armário das contas públicas do país”.

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