Posse na OAB paulista

Corrupção e prerrogativas marcam discursos na posse da OAB-SP

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12 de março de 2004, 19h03

Sala São Paulo, realização do saudoso Governador Mário Covas, tem acomodações para cerca de quatro mil pessoas. Conforme disse o presidente eleito Luiz Flávio Borges D’Urso, o anfiteatro era pequeno para os advogados paulistas, porque, além de não haver um só assento vago, havia muito povo lá fora, assistindo pelos telões à solenidade de transmissão dos cargos de Diretoria e Conselho da Seccional paulista da OAB.

Houve discursos, é claro, porque os médicos usam os bisturis e o advogado tem na palavra seu instrumento cirúrgico. Rubens Approbato Machado, um grande líder, recebeu, agora não mais presidente do Conselho Federal, o aplauso carinhosíssimo da platéia. Ainda é a maior liderança da advocacia brasileira.

O presidente da Caixa de Assistência deu um recado seco, enxuto, conciso e direto ao Governador do Estado, pois Alkimin estava presente. A Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo havia votado e o Governador sancionado projeto de lei castrando participação da Caixa nas custas judiciais, prejudicando seriamente os trabalhos da entidade. O presidente da CAASP cobrou de Alkimin o reexame da situação. Foi aplaudido demoradamente.

Luiz Flávio Borges D’Urso, único a falar sem papel nas mãos, fez manifestação crua e rude a respeito da violência praticada contra as prerrogativas da advocacia, dando relevo à inviolabilidade dos escritórios dos profissionais. Houve aplausos sem conta, porque a declaração de princípios constituía séria promessa de efetivação durante o triênio.

A manifestação dos advogados se arredondou no discurso do novo presidente do Conselho Federal da Ordem, Roberto Antonio Busato. Assemelhadamente aos outros, o tom era agressivo, ressaltando, entretanto, aspecto mais amplo ligado à corrupção instalada no serviço público em geral. Busato não poupou a Presidência da República. Usou repetidamente a expressão “corrupção zero”. Disse: “Em vez de fome zero, este país precisa de corrupção zero”. Os quatro mil advogados e advogadas presentes concordaram entusiasticamente. O povo diz “sim ou não”, aplaudindo ou apupando. A aprovação foi unânime.

Depois disso tudo, amadurecendo a reflexão relativa à magnífica cerimônia, o cronista tem duas grandes preocupações. A primeira se relaciona com a desonestidade em si, na medida em que nenhum país consegue a revitalização de parâmetros democráticos sem a concomitante atividade no sentido de recomposição dos valores éticos atinentes ao trato da denominada “coisa pública”. Vale, então, o entusiástico comportamento repressivo daqueles que abiscoitam ilegalmente os dinheiros que medram da cornucópia do Poder. A advertência concernente à “corrupção zero” é, então, intimamente adequada.

Tal contributo, entretanto, traz consigo a antinomia, pois o Estado, ao lutar contra os fatores de apodrecimento da impecabilidade que deve existir na administração, não pode, sob pena de igual enlameamento, transformar-se em algoz, chicote em punho, invadindo lares, infelicitando permanentemente investigados, encarcerando-os imprudentemente, privando-os da defesa plena, interceptando ilicitamente suas comunicações privadas, deslustrando-lhes a intimidade, destruindo-lhes as famílias enfim, tudo no pressuposto de que o criminoso o é antes de o ser, valendo-se o perseguidor, na grande maioria das vezes, do silêncio e até do aplauso de grande parte da imprensa, esta última que desaprendeu a lição deixada pela ditadura recém-enterrada mas ainda chafurdando nas entranhas da terra brasileira.

Triste contágio esse, herança que proíbe os jornalistas de uma só manifestação no sentido de aconselhar as autoridades, nestas compreendidos juízes, promotores e policiais em geral, o resguardo estrito dos instrumentos constitucionais erigidos em defesa do domicílio do cidadão, do escritório do advogado e do próprio hospital, todos achincalhados pela nenhuma dose de respeito aos arquivos de um, à cama do outro e ao prontuário do último.

Uns e outros vendo a dignidade, os segredos e a discrição familiar postos escancaradamente à disposição do populacho, inexistindo censura qualquer a tais comportamentos atrabiliários, como se os jornais, as redes de televisão em geral e os próprios críticos em particular, estivessem ensandecidos nessa caça às bruxas que não poupa as próprias mas que carrega, nos esgotos dos maus, a respeitabilidade daqueles que responsabilidade alguma têm, embora seja irrelevante o raciocínio na medida em que todos, anjos e demônios, têm em seu favor, enquanto não irredutivelmente condenados, o manto protetor do estado de inocência.

Nesse diapasão, nós mesmos, advogados, corremos o risco de ouvir o canto da sereia, madrasta do autoritarismo, esquecidos de que a retorsão desenfreada está a criar, no Brasil, um outro monstro, não se sabendo qual dos venenos é o pior: aquele que inoculou os brasileiros, durante a ditadura, ou o antídoto que pretende salvá-los. No fim de tudo, ambos matam a democracia.

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