Câmera escondida

Globo é inocentada em ação que contestou reportagem do Fantástico

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10 de março de 2004, 11h54

A Rede Globo de Televisão foi inocentada da acusação de danos morais e materiais proposta por Sueli Amato Datri, em razão de reportagem veiculada no Fantástico em agosto de 2001. A decisão foi tomada pelo juiz Dimas Borelli Thomaz Júnior, de São Paulo. Ainda cabe recurso.

Sueli reclamava que a reportagem tratou de exercício ilegal da Medicina e a apontou como uma das agentes dessa prática. Com uma câmera escondida, dois repórteres da Globo se passaram por clientes da clínica de estética onde ela trabalha e gravaram a consulta para realizar a matéria.

Ela ainda alegou que “apesar de (Sueli) haver explicado que os procedimentos lá feitos seriam previamente diagnosticados e acompanhados por médico integrante da equipe, a ré (Globo) editou a gravação e resultou montagem que deturpou por completo o sentido da aludida entrevista, pois foram truncadas e modificadas suas palavras”.

A autora da ação pedia indenização por danos morais de, no mínimo, R$ 74.165,00. E alegava danos materiais, pelos quais pediu indenização de R$ 1.375,00, porque a reportagem fez com que clientes da clínica se afastassem.

Na contestação, a defesa da Globo afirmou que não foi divulgada nenhuma inverdade na reportagem e que a emissora agiu com o direito e dever de veicular assuntos de interesse da sociedade.

A TV também afirmou que Sueli distorceu os fatos veiculados para favorecer-se e que nada há de ilegal ou anti-ético no uso de câmera escondida, meio de prova admitido e reconhecido como válido.

O juiz Dimas Borelli Thomaz Júnior acolheu os argumentos da emissora. Segundo ele, na reportagem, “a autora (Sueli) se portou com extrema naturalidade ao mostrar e demonstrar, ainda que brevemente, como se dava ou se daria o atendimento estético, chegando mesmo a fazer auto-aplicação do produto que anunciava – basta ver a fita, como fiz ao prolatar esta sentença”.

E acrescentou: “Todo o narrado na inicial acerca de atendimento médico a preceder tratamentos na clínica, ou, como constou na inicial, ‘procedimento previamente diagnosticado e acompanhado por médico integrante da equipe da clínica’ (fls. 3) não ficou provado”.

O magistrado ainda ressalta que Sueli nem sequer referiu-se quem seriam os médicos ou médicas que trabalhavam na clínica. “Resulta disso a total falta de credibilidade da narrativa feita na petição inicial quanto à seriedade do tratamento prometido ou feito pela clínica em que a autora trabalhava”.

Quanto ao fato de a reportagem ter utilizado uma câmera escondida, Dimas Júnior afirmou: “E o fato de ser clandestina essa fita não lhe torna a divulgação proibida ou ofensiva a quem quer que seja, pois, se não se presta como meio de prova em ação criminal, serve como indício da prática de atividade irregular, como demonstra a própria matéria divulgada e os documentos que acompanham a defesa”.

Sueli foi ainda condenada a pagar custa processuais e honorários advocatícios fixados em R$ 2 mil. A Rede Globo foi representada pelo escritório Camargo Aranha Advogados e Consultores.

Leia a sentença

VISTOS

SUELI AMATO DATRI ajuizou ação ordinária de indenização por danos materiais e morais contra REDE GLOBO DE TELEVISÃO LTDA.. No dia 26/08/01 a ré transmitiu reportagem no programa FANTÁSTICO acerca de exercício ilegal da medicina e apontou a autora como uma das agentes dessa prática.

Com câmera escondida, dois repórteres passaram-se por clientes e, como se fizessem consulta com a autora, que apenas trabalhava em clínica e, apesar de haver explicado que os procedimentos lá feitos seriam previamente diagnosticados e acompanhados por médico integrante da equipe, a ré editou a gravação e resultou montagem que deturpou por completo o sentido da aludida entrevista, pois foram truncadas e modificadas suas palavras.

Além de expor publicamente a imagem da autora sem prévia autorização, em verdadeira invasão de seu domicílio, houve ofensa à sua honra e à sua imagem, em prejuízo à sua reputação, com desgaste emocional, abalo de sua imagem-moral, de que resultaram também prejuízos em suas atividades profissionais, com o afastamento de clientes que se sentiram ameaçados com a situação criada pela ré.

Além disso, a ré ocultou a fita e deixou de exibi-la na íntegra em processo anterior promovido pela autora, a indicar prova dos fatos descritos na inicial. Por isso ajuizou a presente ação com o fito de obter indenização pelos danos morais acarretados, estimada minimamente em R$ 74.165,00, e pelos danos materiais de R$ 1.375,00.

Contestação: não se afastou dos limites da liberdade de manifestação que lhe é constitucionalmente assegurada, além de não ter divulgado nenhuma inverdade, daí não ser cabível o pedido indenizatório; agiu com o direito-dever de veicular assuntos de interesse da sociedade; a autora distorceu os fatos veiculados, querendo favorecer-se; nada há de ilegal ou anti-ético no uso de “câmera escondida”, meio de prova admitido e reconhecido como válido; não há razoabilidade no pedido de indenização por dano moral; não há prova do dano material.


Réplica a fls 153/161, refutando as alegações da requerida e reiterando suas posições iniciais. Deu-se audiência do artigo 331 do Código de Processo Civil, saneado o processo (fls. 169). Deu-se audiência de instrução a fls. 177, com as ocorrências lá atermadas, convertido o julgamento em diligência.

A autora trouxe documentos (fls. 187/201) e apresentou agravo, para ficar retido nos autos, ante indeferimento de ser ela submetida a exame psicológico (fls. 203/206), tudo impugnado pela ré (fls. 211), mantida a decisão (fls. 212). As partes manifestaram-se em alegações finais escritas, reeditando as teses anteriores.

Relatados, D E C I D O:

A questão em debate nestes autos versa sobre o eventual cometimento de abuso na liberdade de imprensa, cometido pela requerida (e para cuja constatação, basta a mera análise da referida reportagem televisiva), o qual teria acarretado danos materiais e morais à autora, não havendo, ainda, necessidade da prova da existência dos danos ditos morais, pois já deixei observado a fls. 177 a natureza jurídica deles e acrescento que sua comprovação ocorre ex facto, quando da análise de cada caso concreto submetido à apreciação judicial.

No sentido dessa conclusão, trago à colação os seguintes trechos de dois julgados:

a) “À evidência, não será com a produção de prova oral que restará comprovada a violação de princípio constitucional garantidor de direitos básicos da pessoa. Ao julgador é que compete, examinando a prova documental produzida, dizer se houve ou não ofensa a dispositivo constitucional que assegura o respeito à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade” (Apelação Cível nº 80.346-4/9, da C. 1ª Câmara de Direito Privado do E. Tribunal de Justiça);

b) “Imprensa – Indenização por dano moral – Julgamento antecipado da lide – Caso em que não era necessária a produção da prova em audiência, estando a petição inicial instruída, quanto ao bastante, com o exemplar do jornal que publicou a notícia” (RSTJ 99/184).

Quanto ao mérito, trata-se de ação ordinária de indenização por danos morais, calcada no fato de que a requerida divulgou, em seu programa FANTÁSTICO, o conteúdo de fita obtida em gravação clandestina, relacionada à atividade de clínica em que a autora trabalhava, fato que lhe acarretou violações à intimidade, à honra e à vida privada.

A requerida, por seu turno, aduziu ter-se limitado a divulgar o conteúdo de fita que, mesmo gravada sem conhecimento da autora, em exercício de direito que lhe assiste, sem intenção de ofender a requerente e sim ante haver interesse público na divulgação e apuração de eventuais denúncias acerca de atividades causadoras de danos à saúde da população.

Constata-se, portanto, que a discussão travada nestes autos cinge-se à análise da legalidade do agir da ré e, para tanto, mister o estudo das normas legais citadas pelas partes, na defesa de seus interesses postos em Juízo.

A autora aduziu, em suma, que a requerida violou normas da Lei de Imprensa e da Constituição Federal, até mesmo com violação de domicílio, ao passo que esta asseverou ter agido exatamente em conformidade com aqueles diplomas legais, a lhe darem plena sustentação jurídica aos atos que praticou.

Destarte, na essência, trava-se nestes autos discussão acerca da eventual compatibilização de dois princípios constitucionais, qual seja, a inviolabilidade da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (artigo 5º, inciso X) e a livre manifestação do pensamento e da informação (artigo 220, “caput”), devendo ser analisado se algum deles deve prevalecer sobre o outro.

Para tanto, mister a análise do teor das reportagens editadas pela requerida, reproduzidas na fita de vídeo cassete anexada aos autos.

A reportagem mostra a transcrição de fita de áudio e vídeo, clandestinamente gravada no interior de clínica de tratamentos estéticos, que traz imagens e conversas de que a autora teria tomado parte instada por repórteres que se fizeram passar por pessoas interessadas em tratamentos estéticos.

Impossível concluir-se por indícios ou presunções em desfavor da ré ou em favor da autora, como esta quis argumentar, por não se ter o “copião” da fita.

Tanto assim é que o MM. Juiz de Direito prolator da r. sentença vista por cópia a fls. 46/49 deixou julgado não haver “na lei de regência texto expresso que obrigue as emissoras de rádios e televisão, a conservar o inteiro teor das gravações de áudio e imagens, em moldes a propiciar o posterior confronto com a matéria efetivamente divulgada” (fls. 48).

Então, como também lá ficou consignado, a prática de edição de textos, cortes e montagens, fazem parte da rotina daquelas empresas e deverão elas responder de acordo com o que venha a ser divulgado e no limite dessa divulgação.


Como se vê da matéria – e vi a fita três vezes antes da audiência de instrução e outras três vezes para prolatar esta sentença – conclui-se que a transcrição feita na defesa da ré reflete exatamente como ela se deu.

A referência à autora inicia exatamente com o locutor anunciar “vimos o anúncio de uma clínica de estética…” e se encerra com o anúncio “dissemos a Sueli que preferimos deixar o tratamento para outro dia”. A “entrevista” diretamente com a autora deu-se por exatamente um minuto, com o exato teor visto na transcrição feita pela ré a fls. 128/129.

Por oito segundos a imagem da autora volta à tela, quando da entrevista dada pela médica Ida Alzira Duarte, momento em que esta refere “…ela está lidando com uma droga….”, trecho também transcrito a fls. 129. Depois, outra imagem da autora, por dois segundos.

O fato é que a autora se portou com extrema naturalidade ao mostrar e demonstrar, ainda que brevemente, como se dava ou se daria o atendimento estético, chegando mesmo a fazer auto-aplicação do produto que anunciava – basta ver a fita, como fiz ao prolatar esta sentença.

Todo o narrado na inicial acerca de atendimento médico a preceder tratamentos na clínica, ou, como constou na inicial, “procedimento previamente diagnosticado e acompanhado por médico integrante da equipe da clínica” (fls. 3) não ficou provado.

As duas testemunhas ouvidas a pedido da autora nada esclareceram sobre isso e importa assinalar, que isso sim vem em absoluto detrimento para a tese da autora, não veio depor o “médico integrante da equipe da clínica” nem vieram documentos firmados por médicos a confirmar aquele acompanhamento indicado na inicial.

Aliás, vejam-se, v.g., os documentos de fls. 62, 66, 67, 72, 73, que nada referem sobre acompanhamento médico.

Confira-se, v.g., a “ficha de anamnese corporal” de fls. 68 sem atendimento por médico e que seria assinada por “esteticista”, no final da folha, à direita e, à esquerda, pelo “cliente”.

Confira-se, v.g., a “ficha de anamnese facial” de fls. 74 em que também não se vê referência a atendimento médico, mas sim por “terapeuta responsável”.

Perceba-se não ter a autora nem sequer referido quem seria(m) o(a)(s) médico(a)(s) que trabalhava(m) na clínica.

Resulta disso a total falta de credibilidade da narrativa feita na petição inicial quanto à seriedade do tratamento prometido ou feito pela clínica em que a autora trabalhava.

Assim, o certo é que a ré divulgou mesmo cópia de fita de áudio e imagens provenientes de gravação clandestina feita por seus repórteres no interior da clínica em que a autora trabalhava – perceba-se não haver na inicial informação sobre a profissão da autora, sua formação, sua atividade, o nome da clínica ou mesmo o endereço dela e, repete-se, o nome de quem trabalhava como médico(a)(s) para diagnosticar e acompanhar clientes – e cuidou de divulgá-la, sem tecer nenhuma consideração depreciativa sobre a pessoa da autora, tampouco dirigindo ofensas gratuitas contra ela.

E o fato de ser clandestina essa fita não lhe torna a divulgação proibida ou ofensiva a quem quer que seja, pois, se não se presta como meio de prova em ação criminal, serve como indício da prática de atividade irregular, como demonstra a própria matéria divulgada e os documentos que acompanham a defesa.

A alegação de que a fita seria montagem não tem o condão de impedir a divulgação dela, pelo simples motivo de que ela, de qualquer forma, existe e que aquela prática, de atividades irregulares, poderia ser evitada por causa da matéria divulgada pela fita.

Quanto ao mais, reitere-se, a referida reportagem limitou-se a comentar o fato de práticas irregulares mesmo, como acima consignei, tanto que há opinião e pareceres de médicos sobre a temeridade da conduta atribuída à autora.

Não se tratou, portanto, de reportagem despropositada, feita com o intuito de ofender e prejudicar a autora.

A existência das irregularidades postas na matéria, é certo, não pode ser atribuída à matéria, que as irregularidades não foram criadas pela ré. Eventual investigação desencadeada por conta dela também não cabe à ré, pois são fatos que se mostraram verídicos cuja divulgação em nada pode agravar a honra da autora.

Pese embora ao respeito devido a qualquer cidadão, o certo é que a referida reportagem não lhe atacou a honra objetiva ou subjetiva, da forma como por ela alegada; tampouco acarretaram gravame à sua intimidade ou vida privada.

Apenas fatos verídicos são ali destacados e não há intenção deliberada de ofender, senão de chamar a atenção para esses fatos, que os responsáveis pela reportagem entenderam deploráveis e que, de fato, são mesmo.

Anoto, por oportuno, que a Suprema Corte dos Estados Unidos, em recente decisão, tomada pela maioria de 6 de seus 9 membros, decidiu que “a imprensa não pode ser punida por publicar informações de interesse público fornecida por alguém que as tenha obtido de forma ilegal”, conforme reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo, em sua edição de 27 de maio de 2001, na página 20, do caderno “Mundo”.

A reportagem destaca que fita com a gravação de conversa telefônica foi entregue anonimamente ao apresentador de certa emissora de rádio, que a divulgou em seu programa. Então, os protagonistas do diálogo entraram na Justiça, alegando que a difusão de informações obtidas por meio de ilegal interceptação de sua conversa constituía violação do direito à privacidade, assegurado pela Constituição.

O julgado considerou que havia, no caso, conflito entre interesses individual e público da mais alta ordem, mas que informações sobre figuras públicas e com interesse público devem ser divulgadas, não prevalecendo sobre elas o direito à intimidade da pessoa envolvida.

Citou-se, ainda, na reportagem, que os dois principais jornais daquele país, “The New York Times” e o “The Washington Post”, elogiaram a decisão, reconhecendo-a como uma vitória da liberdade de imprensa.

E essa decisão tem perfeita aplicação para o direito pátrio, em que há norma constitucional protetora do direito à intimidade e, além disso, norma constitucional a assegurar a liberdade de imprensa.

A prevalência de um desses princípios sobre o outro deve ser decidida pelo Juiz, na análise de cada caso concreto submetido à sua apreciação, pois não há possibilidade de harmonização entre ambos

No sentido da conclusão esposada nesta sentença, trago à colação a lição de PEDRO CALDAS, inserta em sua obra “Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral”, Editora Saraiva, 1997, da qual transcrevo os seguintes trechos:

“Posto o conflito e escrutinado o sistema, não se encontrando critério apto de saída, o órgão aplicador, no caso, o juiz, terá de fazer uma opção, perante o caso concreto, por um dos termos da alternativa: ou a privacidade, ou a liberdade de imprensa. A decisão judicial não importará na ab-rogação de qualquer delas ou de ambas as normas em conflito, salvo se o sistema previsse tal saída. A decisão judicial, uma vez passada em julgado, pode até se contrapor a qualquer norma do sistema, justo porque existe norma assegurando esse efeito” (…) (p. 90);

“Em se tratando, como se trata, de colisão entre direitos constitucionais fundamentais (vida privada versus liberdade de imprensa – rectius direito à informação) em que um deles não pode ser considerado prima facie de importância hierárquica superior ao outro, impõe-se ao intérprete procurar, na resolução do conflito, harmonizar os dois direitos. Demonstrada impraticável essa harmonização, um dos direitos poderá prevalecer sobre o outro, valendo salientar que o critério da prevalência será aplicado no caso concreto, de tal sorte que, a depender das circunstancias fáticas, ora um, ora outro, será considerado, o direito prevalecente.

“Realmente, posto jurisdicionalmente sob a consideração do Estado-juiz, o conflito deverá ser desatado em favor de uma das partes, outorgando-se ao julgador um amplo espaço de manobra para colocar os fundamentos de sua decisão. Esse espaço de atuação concedido ao juiz não é por ele utilizado de forma arbitrária porque suas decisões devem ser fundamentadas em elementos de razoabilidade. Além do mais, a chamada decisão judicial nunca é fruto das inclinações e das idéias preconcebidas de uma pessoa, considerando-se o resultado final, filtrado em diversas instâncias judiciais, com a intervenção, inclusive, de órgãos judicantes colegiados, refletirá, ao fim e ao cabo, uma decisão impessoal, indicativa do grau de desenvolvimento jurídico e social do ambiente em que lavrou a colisão dos direitos” (…) (p. 94/5);

“Não se esqueça que o embate não se dá pura e simplesmente entre o direito individual de alguém preservar a sua vida privada e um direito coletivo à informação, pois o direito à vida privada é individual quando particularizado, quando sob consideração a vida de alguém, mas, no fundo, retrata um interesse coletivo, eis que todos almejam um selo de reserva sobre parte de sua vida, por isso que não é incomum que sob a capa de um direito privado haja um interesse público.” (p. 99).

E, no caso presente – repita-se – entendeu-se que a divulgação do conteúdo da fita era direito da ré, dado o interesse público envolvido na apuração dos fatos nela descritos, o que deve prevalecer sobre o direito à intimidade das pessoas mencionadas na gravação.

No sentido dessa conclusão, trago à colação os seguintes julgados:

a) “Indenização – Responsabilidade civil – Danos morais – Lei de Imprensa – Notícia veiculada em jornal – Descrição de acontecimento verdadeiro e do interesse público – Legítimo exercício do direito de crítica configurado – Verba não devida – Recurso provido” (JTJ(LEX) 182/81);

b) “Indenização – Responsabilidade civil – Abuso na liberdade de imprensa – Rigor no tratamento dos fatos, utilizando-se de jargão pertinente, que não o caracteriza – Ação improcedente – Recurso não provido” (JTJ(LEX) 178/51);

c) “(…) No Estado de Direito, vigorante no país, onde a Administração Pública direta ou indireta e fundacional subsume-se aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade etc (Constituição da República, artigo 37), aflora-se saliente e imprescindível o papel dos veículos de comunicação de todos os gêneros, que diante da revelação de fatos gravíssimos e verossímeis (…), tem o dever cívico e jurídico de informar, denunciar, exprobar e alertar os agentes públicos, no exercício primordial da livre manifestação do pensamento e da tarefa de fiscalizar e reprimir atos atentatórios à dignidade humana e ao Estado” (JTJ(LEX) 207/105);

d) “Não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação, entre outras condutas, a divulgação, a discussão e a crítica de atos e decisões do Poder Executivo e seus agentes, desde que não se trate de matéria de natureza reservada ou sigilosa, e a crítica inspirada pelo interesse público, não estando presente o ânimo de injuriar, caluniar ou difamar” (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível nº 219.490-1).

Tem-se, portanto, que na reportagem não ocorreu abuso na liberdade de expressão ou deliberada intenção de ofender a honra, ou violar a vida privada ou a intimidade da autora; destarte; não há que se falar em danos morais a serem indenizados.

Em arremate, transcrevem-se os seguintes trechos de artigo escrito por MARCOS BARBOSA PINTO, publicado em Revista de Direito mercantil nº 111, p. 171 a 184, sob o título “Liberdade de imprensa e responsabilidade civil dos meios de comunicação”, dadas as preciosas lições que encerra para a exegese do caso ora em análise:

“Outra importante função exercida pela imprensa atualmente é a de fiscalização dos atos do Poder Público, do bom funcionamento das instituições democráticas e da honestidade dos funcionários públicos e governantes. Neste contexto destaca-se a capacidade da imprensa de combater a corrupção, através da investigação e de denúncias que informam o cidadão e permitem ao Poder Judiciário apurar irregularidades e punir culpados.

Esta função de fiscalização, assim como as demais funções dos meios de comunicação, não pode ser exercida sem ampla liberdade de imprensa. Os cidadãos não estarão aptos a posicionar-se coerentemente ante os fatos políticos a menos que obtenham notícias jornalísticas corretas e que possam ter acesso a diferentes fontes de informação. Se notícias incorretas e parciais não puderem ser contrabalançadas pelos demais meios de comunicação, ou se fatos relevantes para o público não puderem ser publicados, a capacidade de decisão da sociedade fica mutilada e a democracia perde sua força. O mesmo ocorre se não houver espaço na imprensa para opiniões divergentes, ou se a imprensa, de qualquer modo, for impedida de fiscalizar o poder público e de expressar os anseios populares.

É a imprensa, em última instância, que possibilita o exercício político no atual cenário social. A respeito dessa afirmação, cabe recordar aqui algumas interessantes considerações de Hanna Arendt sobre a política. Para essa autora, a ação da política só pode desenvolver-se onde existe uma esfera pública, isto é, onde está presente aquela instância em que os cidadãos agem em conjunto, conversam entre si, discutindo assuntos de interesse geral com vistas a formações de convicções comuns. A concepção de política de Hanna Arendt é dominada pela palavra e pelo discurso – pela comunicação – por um agir em conjunto em função do interesse comum. É precisamente a ação política que, na opinião dos antigos, compartilhada por Hanna Arendt, leva à dignificação do homem, pois é através dela que o ser humano pode mostrar-se, ser visto e ouvido” (…)

“O ponto central é que a responsabilização civil, quando prevista de modo inadequado pela legislação, pode levar os meios de comunicação à prática de auto-censura. Em outros termos, a imprensa pode deixar de divulgar informações controvertidas, ou mesmo notícias verdadeiras de difícil comprovação em juízo, para evitar ações de indenização. Desta forma, informações de interesse dos cidadãos e essenciais ao debate público deixam de ser publicadas.

Ademais, o papel investigativo exercido pelos meios de informação jornalística também pode ser prejudicado, sobretudo em questões envolvendo denúncias de corrupção no Poder Público. Sabemos que a participação da imprensa neste casos é essencial, tanto denunciando quanto exercendo pressão para que os culpados sejam devidamente punidos” (…)

“Para finalizar, é oportuna uma última consideração sobre a importância da liberdade de imprensa para a democracia, tendo em vista Direito constitucional. No parágrafo único, do art. 1º, a Constituição de 1988 assim determina: “Todo poder emana do povo, que exerce por meio de representantes ou diretamente, nos termos desta Constituição” (grifamos). Analisando a fundo este dispositivo constitucional verificamos quão grandioso e importante é o ideal da liberdade de imprensa. Sem liberdade de imprensa não há mesmo como pensar em democracia, pois o livre acesso a informação é fundamental para aqueles que, segundo a Constituição, são verdadeiras fontes de todos os poderes: os cidadãos. Sem liberdade de imprensa a determinação constitucional de que o poder deve ser exercido pelo povo não passaria de letra morta”.

Em conclusão, impõe-se a improcedência dos pedidos da autora.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos feitos por SUELI AMATO DATRI contra REDE GLOBO DE TELEVISÃO LTDA.. Pela sucumbência, a autora reembolsará as custas e despesas processuais da ré, atualizadas pela tabela prática de atualização do Tribunal de Justiça desde cada desembolso, bem como pagará honorários de advogado, que arbitro, nos termos do § 4º, do artigo 20, do Código de Processo Civil, em R$ 2.000,00, ressalvado ser a autora beneficiária de assistência judiciária gratuita.

P.R.I

São Paulo, 17 de fevereiro de 2004.

DIMAS BORELLI THOMAZ JÚNIOR

Juiz de Direito

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