Garantia da ordem

"Garantia da ordem pública" é insuficiente para prisão preventiva

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9 de março de 2004, 16h34

“A experiência mostrou que a prisão, ao contrário do que se sonhou e desejou, não regenera: avilta, despersonaliza, degrada, vicia, perverte, corrompe e brutaliza”

Min. Evandro Lins e Silva

1. Justificativa inicial:

O presente estudo tem por objetivo aprofundar a análise do requisito da garantia da ordem pública como fundamento do decreto de prisão preventiva de uma pessoa acusada do cometimento de uma infração penal. Busca investigar os fundamentos normativos que alicerçam este instituto, assim como as interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, pois estas últimas são fruto da aplicação prática da norma ora investigada. A reflexão ater-se-á ao requisito da garantia da ordem pública, sem preocupar-se detalhadamente com os demais elencados no artigo 312 do Código de Processo Penal, por entender que este, especificamente, carece de uma melhor definição por parte dos juristas que estudam e dedicam-se ao direito processual penal.

Por outro lado, esta investigação parte de premissas consideradas fundamentais. Primeiro: considera a liberdade física do indivíduo regra, sendo a sua privação, medida de natureza excepcional. Segundo: admite hipóteses de aplicação de medidas privativas de liberdade anteriores ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, desde que fundamentada nos limites da legalidade estrita e em critérios legais puramente objetivos. Terceiro: entende o cárcere como a pior reprimenda, ou seja, como o “mal maior” de um ordenamento jurídico.

Assim, confrontando-se tais premissas com a realidade do arcabouço legislativo e judicial do sistema criminal brasileiro, nota-se que existe praticamente unanimidade no tocante a primeira e terceira premissas, principalmente após os avanços das investigações sociológicas e criminológicas desenvolvidas no século XX, bem como o advento da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988. Da mesma forma, no que se refere à segunda premissa, goza de certa unanimidade a aceitação das medidas privativas de liberdade de natureza cautelar, não havendo maiores discordâncias quanto a sua imperiosidade.

Todavia, na ausência de critérios objetivos para a decretação da medida restritiva de liberdade é que se identifica uma falha de nosso ordenamento: o fundamento de garantia da ordem pública é insuficiente para preencher a necessidade de obediência aos parâmetros de legalidade estrita exigidos por força do princípio constitucional do devido processo legal.

Registre-se: trataremos aqui tão somente da prisão preventiva, por ser esta a modalidade mais empregada no cotidiano forense, desconsiderando as demais existentes no direito pátrio.

2. A prisão preventiva – artigo 311 e ss. do CPP

A prisão preventiva é a prisão cautelar por excelência, bem como a mais utilizada hoje no processo penal brasileiro. Encontra-se disciplinada nos artigos 311 e seguintes do Código de processo Penal.

Todavia, é no artigo 312 que se encontram os requisitos necessários a sua decretação. Estes requisitos podem ser divididos em dois grupos que aqui denominaremos de concomitantes e alternativos. Para a decretação de toda e qualquer prisão preventiva devem estar presentes os dois requisitos concomitantes e ao menos um dos alternativos. São requisitos alternativos: a garantia da ordem pública, da ordem econômica, da aplicação da lei penal e a conveniência da instrução criminal. Enquanto são requisitos concomitantes: a prova da existência do crime (materialidade) e indícios suficientes de autoria. Alguns autores(1) ainda, numa clara comparação entre a doutrina processual civil e penal, identificam os requisitos concomitantes como sendo o fummus boni iuris e os requisitos alternativos como o periculum in mora.

Cumpre ainda salientar que a custódia preventiva pode ser decretada a qualquer momento, e até mesmo antes do oferecimento da denuncia, marco inicial da fase processual da persecução penal(2). Da mesma forma, sua manutenção fica condicionada a existência concreta dos requisitos que autorizam a custódia. Deixando de existir quaisquer destes requisitos a prisão deve ser revogada, consoante o teor do artigo 316 do Código de Processo penal. (3)

O seu fundamento assenta-se na necessidade de privação da liberdade individual, desde que demonstrados certos requisitos, como forma de preservar o interesse de toda a coletividade atingida pelo injusto penal. Ou como diz TOURINHO FILHO “toda e qualquer prisão que anteceda à decisão definitiva do juiz é medida drástica, ou, como dizia Bento de Faria, é uma injustiça necessária do Estado contra o indivíduo, e por isso, deve ser reservada para os casos excepcionais.”(4)

Merece transcrição a lição de TOURINHO FILHO que bem sintetiza a excepcionalidade da medida de prisão preventiva em comparação com a liberdade do acusado: “Por isso mesmo, entre nós, a prisão preventiva somente poderá ser decretada dentro naquele mínimo indispensável, por ser de incontrastável necessidade e, assim mesmo, sujeitando-a a pressupostos e condições, evitando-se ao máximo o comprometimento do direito de liberdade que o próprio ordenamento jurídico tutela e ampara.“(5)


3. O requisito da garantia da ordem pública

Como explicitado na justificativa inicial, interessa-nos analisar, em particular, o requisito da garantia da ordem pública que fundamenta o decreto de prisão preventiva.

A doutrina e os operadores do direito muito debatem acerca de estar ou não presente em um caso concreto uma lesão à ordem pública que justifique a custódia preventiva. Alguns procuram estender a abrangência do conceito de ordem pública, enquanto outros restringi-lo, conforme a posição que ocupem no processo, sejam acusadores, sejam defensores. Da mesma forma a jurisprudência ingressa nesta celeuma, ora firmando posição mais rigorosa, ora mais branda, conforme a formação e o entendimento pessoal de cada julgador.

Outros, por sua vez, procuram buscar uma definição do que efetivamente signifique a locução “ordem pública”. No entanto, os conceitos apresentados não acrescentam nada novo e tornam-se repetitivos, eis que não há dificuldade em conceituar o que seja “ordem pública”. Para tanto, transcrevemos abaixo alguns conceitos do que se tem entendido por ordem pública: “O conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e sua repercussão.” (JULIO FABBRINI MIRABETE)(6). “Para a garantia da ordem pública, visará o magistrado, ao decretar a prisão preventiva, evitar que o delinqüente volte a cometer delitos, ou porque é acentuadamente propenso à práticas delituosas, ou porque, em liberdade, encontraria os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida.” (BASILEU GARCIA)(7)

Da mesma forma, em vários julgados, os Tribunais discutem a amplitude e o conteúdo compreendido na “garantia da ordem pública”. Para exemplificar, transcrevemos duas ementas, uma Supremo Tribunal Federal, e outra do Superior Tribunal de Justiça que abordam a questão:

“No conceito de ordem pública, não se visa apenas prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas acautelar o meio social e a própria credibilidade da Justiça, em face da gravidade do crime e de sua repercussão. A conveniência da medida deve ser revelada pela sensibilidade do juiz à reação do meio ambiente à ação criminosa.

(STF, 2a Turma – RHC 65.043 – rel. Min. Carlos Madeira in RTJ 124/1033)

“A prisão preventiva pode ter como fundamento a garantia da ordem pública. A constrição ao exercício do direito de liberdade é justificada cautelarmente, a fim de evitar repetição de conduta delituosa ou reagir a vilania do comportamento delituoso, que, por suas características, gera vigorosa reação social.”

(STJ, RHC 2775-4, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, julgado em 13/09/93)

No entanto, embora existam diferenças entre o alcance dos conceitos, nenhum deles apresenta-se suficiente para resolver a problemática proposta. Isso não quer dizer que estejam equivocados, muito pelo contrário, todos os conceitos encontram-se, dentro de suas particularidades, formal e substancialmente adequados. Ocorre, no entanto, que a mera conceituação de ordem pública como fundamento para decretação da prisão preventiva tem se mostrado insuficiente ante o estagio de desenvolvimento do processo penal atual.

Chegamos, portanto, à idéia central de todo este breve estudo: de nada adiantará extensos debates doutrinários e jurisprudenciais acerca do que signifique “garantia da ordem pública”, pois esta é absolutamente insuficiente e em nada justifica, principalmente para aquele que teve sua liberdade tolhida, o fundamento e a justiça da medida.

Da forma como encontra-se disciplinado o atual artigo 312 do Código de Processo Penal, no tocante ao fundamento de garantia da ordem pública, é possível (e freqüentemente assim acontece) a prisão cautelar de qualquer pessoa independentemente de suas circunstâncias subjetivas. É por essa via que, muitas vezes, os Tribunais tem remetido ao cárcere um grande número de acusados primários e sem qualquer passagem pelos órgãos de segurança pública estatais, devidamente empregados, com residência fixa e família constituída, ou portadores de outras circunstâncias que lhe permitiriam aguardar a marcha processual em liberdade, sem qualquer prejuízo à sociedade.

Ao contrário disso, os Tribunais, com algumas exceções, preferem submeter essa pessoa, ainda inocente por força de preceito constitucional, ao horror do cárcere ao invés de procurar avaliar de forma mais profunda suas circunstâncias subjetivas. Como resultado, temos cada vez mais a superlotação dos estabelecimentos prisionais, transformados em verdadeiras “máquinas de deformação de pessoas”.

Some-se a isso, a enorme balbúrdia realizada pelos meios de comunicação, bem como a pressão exercida por comunicadores sensacionalistas que apresentam-se como “juristas de plantão” responsáveis pela distorção de muitos acontecimentos e a propagação de um clima de insegurança no seio social.


Temos como produto então uma mistura de preconceito contra o acusado, pressão intensa dos órgãos de imprensa, sentimento de insegurança da população e legislação muito subjetiva (quanto ao fundamento da “garantia da ordem pública”), isto é: todos os elementos necessários para a privação de liberdade do cidadão com base em critérios aparentemente objetivos, mas em verdade, puramente discricionários.

Para estas pessoas que pressionam as autoridades públicas à aumentarem o rigor da justiça criminal, tolerando um percentual aceitável de injustiças deste sistema, é importante lembrar o ensinamento de ROBERT DWORKIN, professor de Filosofia do Direito da Universidade de Harvard: “O direito penal poderia ser mais eficiente se desconsiderasse essa distinção problemática e encarcerasse homens ou os forçasse a aceitar tratamento sempre que isso parecesse ter probabilidade de reduzir crimes no futuro. Mas isso, ( ) significaria cruzar a linha que separa tratar alguém como ser humano e como nosso próximo e tratá-lo como um recurso para o benefício dos outros. Para as convenções e práticas de nossa comunidade, não pode haver insulto mais profundo que esse.(8)”

Urge que possamos aprofundar a discussão e a reflexão sobre a insuficiência do fundamento de garantia da ordem pública para a decretação da prisão preventiva de um acusado. É preciso que estabeleçamos critérios legais objetivos que procurem disciplinar taxativamente as hipóteses que mereçam e, principalmente necessitem, de privação de liberdade.

Uma boa idéia seria a definição de critérios objetivos, e previstos em lei, que levem em conta para a decretação da prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública, por exemplo, a natureza do crime imputado, a existência ou não de violência na conduta do acusado, as conseqüências advindas do crime (tanto para a vítima, quanto para a sociedade). Além disso, devem ser analisadas, principalmente, as condições subjetivas do acusado, tais como seus antecedentes criminais, suas condições familiares, suas atividades laborais e outras que permitam a verificação da pertinência e necessidade da medida cautelar.

Em suma, entendemos que a prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública, na forma como está disciplinada pela nossa legislação, viola garantias constitucionais do cidadão. Este fundamento, na realidade, não diz nada, e sujeita-se a qualquer juízo hipotético do julgador. Sob o fundamento de garantir a ordem pública, muitas são as decisões que, simplesmente desconsiderado as circunstâncias pessoais dos réus e, sem qualquer outro fundamento, senão a possibilidade de reincidência, têm mantido encarceradas desnecessariamente muitas pessoas em nosso país.

Buscar uma reflexão acerca da insuficiência do fundamento da garantia da ordem pública para decretação de prisão preventiva, bem como procurar uma nova base teórica que acarrete a sua superação é o pretensioso objetivo deste breve estudo. Todavia, não buscamos dar as respostas, pois estas devem ser fruto de muita discussão entre os juristas e a sociedade civil, tão somente contribuir na investigação dos problemas de nossa legislação penal, no que esperamos possa alcançar êxito.

Notas de Rodapé

(1) Em especial ANTONIO SCARANCE FERNANDES na obra já citada.

(2) É a interpretação majoritariamente aceita pela doutrina e jurisprudência, conforme determina o artigo 311 do CPP: “Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal .

(3) Art.316. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no decorrer do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

(4) FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Obra citada. V.3 P. 469.

(5) FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Obra citada, v.3 p. 469.

(6) MIRABETE, Julio Fabbrini. “Código de Processo Penal Interpretado” 2ed. São Paulo: Atlas, 1995.p. 377.

(7) GARCIA, Basileu. “Comentários ao Código de processo Penal”, v.III, p.169/170;

(8) DWORKIN, Robert. “Levando os direitos a sério”, Martins Fontes: São Paulo, 2002, p. 18.

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