Ação e reação

MP aciona Hospital das Clínicas por contaminação de criança

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8 de março de 2004, 12h24

O Ministério Público entrará, nesta segunda-feira (8/3), com uma ação civil pública contra o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP). Motivo: contaminação de uma criança pelo vírus da Aids durante um procedimento cirúrgico, em fevereiro de 2001.

O promotor de Justiça da Infância e Juventude, Marcelo Pedroso Goulart, pleiteia o pagamento de indenização pelos danos causados. A criança passou por uma transfusão de sangue contaminado pelo vírus HIV, segundo o promotor.

O sangue fora coletado pelo Centro Regional de Hemoterapia, órgão vinculado ao Hospital das Clínicas.

O Ministério Público alega que a contaminação provocou a debilitação da saúde e a morte da criança e, consequentemente, dano moral à sociedade — dano moral difuso. O promotor pede indenização em valor não inferior a 500 salários mínimos. Postula, também, que esse valor seja depositado no Fundo gerido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente para aplicação nos programas de atendimento à criança do município de Ribeirão Preto.

Leia a íntegra da ação civil pública:

EXMO. SR. DR. JUIZ DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE DE RIBEIRÃO PRETO.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por intermédio do promotor de justiça da infância e juventude infra-assinado, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, com base no art. 129, inciso III, da Constituição da República, art. 5º da Lei nº 7347/85, e art. 201, inciso V, da Lei nº 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), propor

ação civil pública,

em face do HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA FACULDADE DE MEDICINA DE RIBEIRÃO PRETO, CNPJ nº 56.023.443/0001-52, entidade autárquica, sediada no campus da Universidade de São Paulo, avenida Bandeirantes, nº 3900, nesta cidade, pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas.

I– OS FATOS

Apurou-se no inquérito civil anexo (autos nº 497/2002) que:

em fevereiro de 2001, nas dependências do hospital-réu, a criança-paciente Iara Caroline Nascimento dos Santos, então com 9 anos de idade, foi contaminada pelo vírus HIV, em transfusão de sangue realizada durante procedimentos cirúrgicos;

o sangue transfundido no corpo da criança fora coletado pelo Centro Regional de Hemoterapia, órgão diretamente subordinado à superintendência do hospital-réu;

o Serviço de Vigilância Epidemiológica daquele hospital constatou que o sangue transfundido no corpo da criança apresentava sorologia positiva paro vírus HIV (agente causador da Síndrome da Imunodeficiência AdquIrida SIDA/AIDS);

a vítima era paciente do hospital-réu, desde 1998, em razão da grave doença de base (paralisia cerebral) e apresentava quadro crônico de desnutrição, fator predisponente à diminuição da imunidade;

a aquisição do vírus letal agravou esse quadro clínico;

a criança faleceu em 23 de setembro de 2002, nas dependências do hospital-réu, apresentando, como causa mortis: (i) falência de múltiplos órgãos, decorrente de choque séptico provocado por pneumonia; (ii) síndrome de imunodeficiência secundária;

a síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA/AIDS), contraída pela criança durante a transfusão sanguínea acima noticiada, contribuiu para a sua morte.

II– O DIREITO

1. O conjunto normativo aplicável ao caso em exame

A Constituição da República(1) e o Estatuto da Criança e do Adolescente(2) declaram que crianças e adolescentes são titulares dos direitos fundamentais à vida e à saúde, que devem ser assegurados, com absoluta prioridade, pela família, pela sociedade e pelo Estado, mediante a efetivação de políticas socais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

O Código de Saúde do Estado de São Paulo(3) declara que a saúde é uma das condições essenciais da liberdade individual e da igualdade de todos perante a lei. Esse mesmo Código reconhece que o estado de saúde se expressa em qualidade de vida e pressupõe, dentre outras coisas:

a assistência prestada pelo Poder Público como instrumento que possibilite à pessoa o uso e gozo de seu potencial físico e mental;

o reconhecimento e salvaguarda do indivíduo como sujeito das ações e serviços de assistência em saúde, possibilitando-lhe ser tratado por meios adequados e com presteza, correção técnica, privacidade e respeito.

A Constituição da República(4) consagra o princípio da responsabilidade objetiva do Estado no caso de dano causado por seus agentes a terceiros, o que é reforçado pelo Código de Saúde do Estado de São Paulo(5), no que diz respeito especificamente a dano causado ao indivíduo ou à coletividade pela pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado participantes do SUS, através de seus agentes.


O Estatuto da Criança e do Adolescente(6) responsabiliza aquele que ofender direitos assegurados à criança e ao adolescente pela oferta irregular dos serviços de saúde, fornecendo instrumentos processuais para a tutela jurisdicional desses direitos ameaçados ou violados.

O Estatuto da Criança e do Adolescente(7) recepciona a norma da Lei da Ação Civil Pública(8) que prevê a reparação, via tutela jurisdicional, do dano moral difuso.

2. Os direitos fundamentais à vida e à saúde

Vida é a força interna substancial que anima ou dá ação própria aos seres organizados revelando o estado de atividades desses seres, pressupondo o desenvolvimento sadio e harmonioso da pessoa e condições dignas de existência.

A vida, como possibilidade de permanecer vivo em condições dignas de existência, é direito fundamental da pessoa. Cumpre ao Estado e à sociedade promover a vida de todas as pessoas, sem exceção.

Saúde é um processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo que visa a melhor qualidade de vida possível, tendo como instrumento de aferição a realidade de cada indivíduo e pressuposto de efetivação da possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar.

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), saúde é o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças ou outros agravos.

Para a garantia da saúde à população, cabe ao Estado atuar preventivamente, promovendo políticas públicas que reduzam o risco de doença e protejam a saúde. Cabe ao Estado, também, implementar as políticas públicas voltadas à cura e à recuperação dos enfermos.

A saúde, nos termos ora postos, é direito fundamental, passível de ser exigido individual e coletivamente.

3. A violação do direito fundamental à saúde no caso em exame

Ao transfundir para o corpo da criança sangue contaminado por ele coletado, o hospital-réu violou direito fundamental à saúde, provocando, na criança, a predisposição para o desenvolvimento de imunodeficiência geradora de doenças oportunistas e, conseqüentemente, minando o seu particular estado de bem-estar.

4. A violação do direito à vida no caso em exame

Ao transfundir para o corpo da criança sangue contaminado por ele coletado, o hospital-réu violou direito fundamental à vida, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento de imunodeficiência que levou a vítima à morte.

III– A ASSEGURAÇÃO DA VIDA E DA SAÚDE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE COMO INTERESSE DIFUSO

Os direitos fundamentais à vida e à saúde da criança e do adolescente têm titularidade dual complementar. Em outras palavras: são direitos sócio-individuais, visto que a sua efetividade e tutela interessam igualmente à criança ou adolescente e à sociedade. Por isso, são indisponíveis. (9) Como ensina Paulo Afonso Garrido de Paula:

A indisponibilidade [dos direitos da criança e do adolescente] decorre da titularidade dual, de modo que a desregrada e pessoal disposição é inaceitável, porquanto ninguém pode desfazer unilateralmente de coisa comum. (10)

A asseguração da vida e da saúde não interessa apenas ao indivíduo-criança e ao indivíduo-adolescente, mas, também, à toda sociedade. A violação dos direitos à vida e à saúde vai além da pessoa da criança e do adolescente atingidos diretamente pela conduta danosa, para alcançar, também, a sociedade como um todo.

Ao tratarmos da titularidade social complementar do direito à vida e à saúde da criança e do adolescente, entramos, necessariamente, no campo dos interesses difusos.

IV– A RESPONSABILIDADE DA RÉ PELO DANO MORAL DIFUSO

1. O nexo causal e a caracterização do dano moral difuso

Os agentes do Centro Regional de Hemoterapia, órgão vinculado ao hospital-réu, coletaram sangue contaminado pelo vírus HIV, que foi utilizado, no mesmo hospital, em transfusão realizada, durante cirurgia, na criança-vítima.

A contaminação da criança pelo referido vírus:

provocou a debilitação do seu estado de saúde;

contribuiu para a sua morte.

Inequivocamente, o hospital-réu, por intermédio de seus agentes, violaram os direitos fundamentais à saúde e à vida de criança, em decorrência da prestação de serviço público defeituoso.

Essa violação de direitos fundamentais de criança também atinge, com seu resultado danoso, toda a sociedade.

Em primeiro lugar, porque a sociedade é titular complementar desses direitos.

Em segundo lugar, porque a conduta dos agentes do hospital-réu, provocou:

o abalo moral e o desprestígio do serviço público e da sua boa imagem;


o abalo e o desprestígio da Constituição e das leis;

a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos;

a ofensa ao patrimônio moral de nossa sociedade, consubstanciado na imagem, no sentimento de apreço a nossa cidadania;

o sentimento negativo de perda de valores sociais essenciais;

a dor, o sofrimento, o desgosto, a angústia e a intranqüilidade enquanto sentimentos difusos da coletividade (comoção popular);

enfim, a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade.

Essa postulação tem respaldo na Constituição e nas leis (Constituição, art. 5º, inc. V, art. 37, § 6º; Cód. Civil, art. 186, art. 932, inc. III, art. 942; Lei nº 7347/85, art. 1º, art. 21; Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 208, § único, art. 224; Cód. de Defesa do Consumidor, art. 6º, incs. VI e VII, art. 83).

2. A responsabilidade objetiva

Por força de ditame constitucional, o hospital-réu, na condição de pessoa jurídica de direito público, responde pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causam, independentemente da averiguação da culpa.

V– A FORMA DE REPARAÇÃO DO DANO MORAL DIFUSO

O dano moral à coletividade deve ser reparado mediante indenização (condenação em dinheiro), (11) cujo montante deverá:

ser fixado, em sentença, pelo juiz, em valor nunca inferior a 500 salários-mínimos, dada a gravidade do fato, a extensão do dano e o porte econômico do hospital-réu;

ser recolhido ao fundo gerido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente,(12) para aplicação nos programas que compõem a Política de Atendimento do Município.

VI– O PEDIDO

Diante de todo o exposto e do constante da documentação inclusa, que desta petição faz parte integrante, como se literalmente transcrita, propõe o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO a presente ação, com fulcro no Estatuto da Criança e do Adolescente, para que, em decreto de procedência, o HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA FACULDADE DE MEDICINA DE RIBEIRÃO PRETO condenado:

a) ao pagamento de indenização por danos morais difusos, a ser fixada em sentença por Vossa Excelência e recolhida ao fundo gerido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, em valor que não seja inferior a 500 salários-mínimos;

b) ao pagamento das custas processuais.

VII– REQUERIMENTOS FINAIS

Posto isso, requer o autor a citação do réu, na pessoa de seu representante legal, para contestar, querendo, a presente, sob pena de revelia e confissão.

Requer, também:

a inversão do ônus da prova, porque presentes os requisitos legais que autorizam o seu deferimento (art. 6º do Código de Defesa do Consumidor c.c. art. 21 da Lei da Ação Civil Pública e art. 224 do Estatuto da Criança e do Adolescente);

a produção de todos os meios de prova admitidos em direito, em especial juntada de novos documentos, perícia e oitiva de testemunhas.

Dá a causa o valor de R$ 120.000,00.

Ribeirão Preto, 8 de março de 2004.

MARCELO PEDROSO GOULART

Promotor de Justiça da Infância e Juventude

Notas de Rodapé:

1 – CR, art. 227, caput.

2 – ECA, arts. 4º e 7º.

3 – CSESP, art. 2º, caput e § 1º, art. 3, incs. III e IV.

4 – CR, art. 37, § 6º.

5 – CSESP, art. 7º.

6 – ECA, arts. 208, inc. VII, e 210.

7 – ECA, art. 224.

8 – LACP, art. 1º, inc. IV.

9 – Cf. GARRIDO DE PAULA, Paulo Afonso. Direito da criança e do adoelscente e tutela jurisdicional diferenciada. São Paulo: RT, 2002, p. 25-26.

10 – Ob. cit., p. 26.

11 – LACP, art. 3º

12 – LACP, art. 13, c.c. ECA, arts. 214 e 224.

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