HC prejudicado

Leia voto do ministro Joaquim Barbosa sobre interrupção de gravidez

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5 de março de 2004, 16h43

Fetos com anencefalia não têm possibilidade nenhuma de sobreviver fora do útero materno. “Qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa esta gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime?”.

Os questionamentos são do ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, em voto que leria na Corte sobre o HC impetrado por um casal do Rio de Janeiro. O habeas corpus ficou prejudicado por falta de objeto. A criança nasceu no sábado (28/2) e sobreviveu apenas por sete minutos. Segundo o jornal “A Gazeta de Teresópolis”, o bebê chegou ser registrado com o nome de Maria Vida.

Segundo o relator da matéria, “a notícia da vinda de um filho é motivo de imensa alegria. Incontáveis projetos começam a ser traçados, imaginando-se um futuro repleto de alegria e realizações para a família que começa a se formar. Mas, sobrevindo a notícia de que o feto padece de patologia irreversível e incontornável, fácil imaginar-se o desespero, a tristeza que toma conta dos pais. Saber que se traz no ventre um ser tão amado, mas fadado à morte tão logo nasça”. Ele elogiou a iniciativa do casal que em vez “de recorrer à ilegalidade, buscou junto ao Judiciário obter a interrupção da gravidez”.

Barbosa criticou a demora para o julgamento do recurso do casal. “O Superior Tribunal de Justiça, em vez de julgar imediatamente o feito em face da manifesta urgência que o caso requer, resolveu, às vésperas do recesso judiciário, requerer diligências ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tendo ficado vencida a ilustre relatora”, observou.

Leia o relatório do ministro e, em seguida, o voto.

HABEAS CORPUS 84.025-6 RIO DE JANEIRO

RELATOR : MIN. JOAQUIM BARBOSA

PACIENTE(S) : GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO

IMPETRANTE(S) : FABIANA PARANHOS E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (Relator): Trata-se de habeas corpus em favor de GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO, com a alegação de que a paciente estaria sofrendo constrangimento ilegal por parte da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu a ordem no HC 32.159 em favor do feto de que é gestante.

A paciente, de 18 anos, residente em Teresópolis-RJ, por intermédio da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, entrou, perante o juízo criminal de direito de Teresópolis, com pedido de autorização judicial para realização de aborto, tendo em vista a constatação por exames médicos de que o feto era portador de grave anomalia (anencefalia, ausência da calota craniana e cérebro rudimentar).

O juiz de direito de Teresópolis, em 06 de novembro de 2003, indeferiu liminarmente o pedido, alegando falta de previsão legal, uma vez que a postulação não se encaixaria no rol das hipóteses de exclusão de ilicitude previstas no art. 128 do Código Penal.

Dessa decisão recorreu o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, em apelação que foi distribuída à Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça daquele estado.

Distribuído o recurso à relatoria da ilustre desembargadora Gizelda Leitão Teixeira, esta houve por bem, em 19 de novembro de 2003, conceder medida liminar autorizando a realização da intervenção cirúrgica destinada a promover a interrupção da gravidez. A decisão da desembargadora ficou assim vazada:

“Trata-se de apelação interposta contra sentença proferida em primeiro grau de jurisdição, onde o julgador indeferiu pedido formulado pela combativa Defensoria Pública, no sentido de ser expedido alvará de autorização para que GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO interrompesse inviável gravidez, eis que, realizados exames, constatou-se padecer o feto de anencefalia, o que torna inviável a vida pós-natal.

A inicial do requerimento (fls. 02 a 09) veio instruída pelos documentos de fls. 10 a 22.

Inconformados com a extinção do feito, as partes requerentes interpuseram recurso de apelação (fls. 23), sustentando nas razões de fls. 24 a 27 que se trata de hipótese excepcional, pelo que urge a concessão liminarmente de autorização para que a gestante tenha interrompida a gravidez, ante à inviabilidade de vida pós-natal do feto, conforme fartamente demonstrado nos autos.

O Ministério Público, em contra-razões da lavra da Promotora de Justiça, Dra Soraya Taveira Gaya, manifestou-se favoravelmente à pretensão trazida nestes autos, juntando ela própria documentação (inclusive fotogramas) sobre a anomalia de que padece o feto, na hipótese tratada nos autos.

A Procuradoria de Justiça (fls. 39 vº e 40), formulou pedido de diligências.

É o relatório.

DECISÃO

A hipótese trazida nestes autos não é de fácil solução, eis que, trata-se de uma vida que está em curso, mas, registre-se, fadada, inexoravelmente, ao óbito logo após o parto.

A notícia da vinda de um filho é motivo de imensa alegria. Incontáveis projetos começam a ser traçados, imaginando-se um futuro repleto de alegria e realizações para a família que começa a se formar.

Mas, sobrevindo a notícia de que o feto padece de patologia irreversível e incontornável, fácil imaginar-se o desespero, a tristeza que toma conta dos pais. Saber que se traz no ventre um ser tão amado, mas fadado à morte tão logo nasça.

Louve-se a iniciativa do casal que, ao invés de recorrer à ilegalidade, buscou junto ao Judiciário obter a interrupção da gravidez.

Não se pode ficar insensível ao sofrimento desta mãe. Mais do que qualquer outra pessoa, a apelante busca um fim ao seu sofrimento, positivado cabalmente nos autos às fls. 12 pelo atestado médico que refere-se a ‘estado emocional abalado, necessitando de cuidados especiais’.

A anencefalia do feto é atestada pelo documento juntado às fls. 13, que ‘apresentando feto com malformação grave do sistema nervoso central (cabeça fetal) com ausência de calota craniana e cérebro rudimentar’, concluindo que ‘é incompatível com a vida pós-natal.’

A vida é bem a ser preservada a qualquer custo. Mas e quando a vida torna-se inviável, pois é certo que o bebê em gestação não sobreviverá após o parto?

É justo condenar-se a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero, quando, desde logo, já se sabe que o feto está condenado de forma irremediável ao óbito, logo após o parto?

Não se trata de doença, mas de um embrião sem cérebro.

Desesperados, os pais vêm às portas do Judiciário buscar uma solução legal para o sofrimento que sobre eles se abateu. Buscam a legalidade, o que demonstra nobreza de sentimentos e obediência à ordem jurídica vigente. Nada de agir às margens da lei, porque nada têm a esconder: tornam público o drama que sobre eles se abateu e clamam por uma solução que ponha fim ao sofrimento e à angústia.

Louve-se a sensibilidade da Promotora Dra Soraya Taveira Gaya que, com lucidez e desassombro, manifestou-se favoravelmente ao pedido formulado pelo casal, ilustrando sua manifestação com fotos e texto informativos sobre o doloroso tema da anencefalia. São de Promotores assim, dotados deste espírito público que a sociedade necessita. Atuam sem alarde, mas lucidamente opinam como lhes parece correto, sem preocupação com as eventuais críticas que possam advir pelo desassombro. Promovem verdadeiramente a Justiça!

Não se pode impor à gestante o insuportável fardo de, ao longo de meses, prosseguir na gravidez já fadada ao insucesso. A morte do feto, logo após o parto, é inquestionável. Logo, infelizmente nada se pode fazer para salvar o ser em formação.

Assim, nossa preocupação deve ser para com o casal, em especial com a mãe, que padece de sérios problemas de ordem emocional ante o difícil momento porque passa.

Ante o exposto, ao entendimento de que é perfeitamente viável o pedido trazido pela combativa DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, liminarmente (conforme requerido no recurso de apelação – fls. 27 e referendado pelo Ministério Público – fls. 32) autorizo a Sra GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO (qualificada às fls. 02 destes autos) a submeter-se ao aborto, conforme pleiteado, interrompendo-se a gravidez em curso.

Embora se trate de uma LIMINAR SATISFATIVA, enviem-se os autos, após as providências cartorárias pertinentes ao imediato cumprimento desta decisão, à Procuradoria de Justiça, para ciência e manifestação.”


Ao tomarem conhecimento da decisão concessiva de liminar da desembargadora, por matéria jornalística publicada no jornal O Globo de 20 de novembro de 2003, os senhores CARLOS BRAZIL, desembargador aposentado do TJRJ, e PAULO SILVEIRA MARTINS LEÃO JUNIOR, ambos na qualidade de advogado, interpuseram agravo regimental à Segunda Câmara Criminal. Por seu turno, o presidente da Segunda Câmara Criminal, em 21.11.2003, suspendeu “si et in quantum” a decisão de sua Colega de Turma. Processado o agravo regimental, veio este a ser desprovido pelo Colegiado em 25.11.2003, mantida, portanto, a decisão da desembargadora que autorizara a realização do aborto eugênico.

Ocorre que, em 21 de novembro de 2003, isto é, antes da decisão da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça carioca que julgara o agravo regimental, o padre LUIZ CARLOS LODI DA CRUZ, residente em Anápolis-GO, sacerdote e presidente da Associação Pró-Vida sediada naquela cidade, impetrou ao Superior Tribunal de Justiça um habeas corpus visando a desconstituir a decisão monocrática da desembargadora, que viria a ser confirmada quatro dias depois.

Distribuído o feito à ministra Laurita Vaz, Sua Excelência, em despacho datado de 25.11.2003, concedeu liminar para “sustar a decisão do Tribunal de origem que autorizou a realização do abortamento do nascituro, até a apreciação final deste writ pela Egrégia Quinta Turma desta Corte”.

Solicitadas as informações ao Tribunal de Justiça, estas foram prestadas em 18 de dezembro de 2003. O Superior Tribunal de Justiça, em vez de julgar imediatamente o feito, em face da manifesta urgência que o caso requer, resolveu, às vésperas do recesso judiciário, requerer diligências ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tendo ficado vencida a ilustre relatora.

Em 18 de fevereiro de 2004 foi finalmente julgado o habeas corpus, tendo o Superior Tribunal de Justiça decidido nos seguintes termos:

“EMENTA

HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO. DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO NASCITURO.

1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.

2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestando, formalmente, apenas da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.

3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar conta ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesses casos, o princípio da reserva legal.

4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.

5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.”

Diante desse acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, FABIANA PARANHOS; ANIS: INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO; THEMIS: ASSESSORIA JURÍDICA e ESTUDOS DE GÊNERO, CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO impetraram ao Supremo Tribunal Federal o presente habeas corpus, em que alegam (i) a coação da liberdade por proibição de antecipação do parto, (ii) a inocorrência do crime de aborto, (iii) a necessidade de tutela à saúde física e mental da paciente e (iv) o desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Em conseqüência, pedem a cassação do acórdão do Superior Tribunal de Justiça, para autorizar a paciente a realizar a antecipação do parto.


Distribuído o feito a meu Gabinete na tarde de sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004, despachei imediatamente, solicitando por fax as informações ao Superior Tribunal de Justiça, que enviou cópia do processo na segunda-feira, somente tendo chegado o voto da relatora no dia 02 deste mês.

A Procuradoria-Geral da República opinou pelo não-conhecimento da impetração e, no mérito, por sua denegação (fls. 17-20).

É o relatório. Distribuam-se cópias aos gabinetes dos demais ministros.

HABEAS CORPUS 84.025-6 RIO DE JANEIRO

V O T O

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (Relator): Sr. Presidente, trago este habeas corpus na data de hoje tendo em vista a urgência da tutela jurisdicional pleiteada, bem como as possíveis implicações que o caso apresenta.

Preliminarmente, há que se discutir se esta Casa tem ou não tem competência para julgar a impetração.

Os impetrantes atacam acórdão do Superior Tribunal de Justiça que concedeu a ordem em favor do feto e cassou a decisão da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que autorizara o aborto. É importante salientar, porém, que em nenhum momento se cogitou de eventuais direitos da gestante, isto é, da paciente. Toda a discussão levada a efeito no âmbito do Superior Tribunal de Justiça diz respeito aos direitos do nascituro, sem qualquer alusão a eventuais direitos da gestante, como se esses direitos, constitucionalmente protegidos, não estivessem intimamente entrelaçados, ou seja, como se a proteção ao nascituro tivesse o condão de excluir completamente a proteção aos direitos da gestante.

Entendo, contudo, que a continuidade da gestação, por força da ordem de habeas corpus concedida pelo Superior Tribunal de Justiça, tem o efeito imediato de causar restrição à liberdade da paciente.

Aliás, não foi por outra razão que a própria ministra relatora no Superior Tribunal de Justiça, ao proceder ao exame do cabimento da impetração naquela Corte, argumentou, verbis:

“A insurgência não procede. Com efeito, o habeas corpus é a via idônea para alcançar a tutela jurídica ora pleiteada. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.”

Assim, tendo em vista o entrelaçamento dos direitos do nascituro, cuja sobrevivência guarda total dependência em relação à gestante, com os direitos desta, os quais a Constituição igualmente protege, não há como negar que ela sofreu constrangimento em virtude do acórdão ora atacado, cujo processo tramitou em Brasília, inteiramente à larga, isto é, sem o seu conhecimento. E não se trata simplesmente de um constrangimento: a própria vida da paciente encontra-se em risco, na medida em que, diante de uma gravidez potencialmente problemática como a sua, caso surja a necessidade de uma intervenção cirúrgica de emergência, pesará sobre a paciente e sobre o médico que vier a assisti-la a ameaça da persecução criminal decorrente da vedação consubstanciada na decisão do Superior Tribunal de Justiça.

Daí por que entendo que a hipótese se encaixa no permissivo constitucional do art. 102, I, i, tratando-se, pois, de competência originária deste Tribunal, e não, como se poderia pensar, de competência recursal.

Essa hipótese, e isso importa esclarecer, é diversa daquela em que um dos sujeitos processuais, aparentemente prejudicado por decisão que favorece a outra parte, impetra habeas corpus (ou mandado de segurança) visando a eliminar a situação que crê lhe prejudicar. É o caso, por exemplo, da vítima que se vale de habeas corpus contra o trancamento da ação penal em favor do réu. Sobre esse tema, o Supremo Tribunal Federal tem entendido que é incabível o habeas corpus, na medida em que não há violação de direito próprio (Precedentes: HC 83.941 e HC 83.942, dos quais fui relator, e MS 22.486, rel. min. Celso de Mello).

Não quero dizer com isso que, em processos objetivos, como o habeas corpus e o mandado de segurança, seja sempre possível a impetração por quem, reflexamente, tem um direito constrangido pela decisão judicial em favor de terceiro.

No caso em exame, e com isso concluo este tópico, a situação da vida e a situação jurídica encontram-se de tal forma imbricadas que a ordem concedida em favor quer do feto, quer da paciente implica obrigatoriamente restrição da liberdade do outro. Daí por que se justifica o conhecimento do presente habeas corpus.

A Procuradoria-Geral suscita o óbice de que “a impetrante, na verdade, não está a representar o interesse real de Gabriela Oliveira Carneiro. Desenvolve tese pessoal, por via processual cabalmente inadequada.”


Tenho que tal circunstância, seja ela verdadeira ou falsa (o que não se pode inferir do material existente nos autos), é irrelevante para fins de impetração do habeas corpus. Isso porque a legitimação para impetrar o writ deve ser interpretada de forma ampla, sem que as tradicionais condições da ação obstaculizem a efetividade da tutela do direito de ir e vir.

Conheço, portanto, da impetração.

Superada a questão preliminar, antes mesmo de discutir o tema do aborto de feto com vida extra-uterina inviável, tenho que o acórdão prolatado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça é nulo.

Abro aqui um pequeno parêntese para mais vez tentar deixar explícita a forma como tramitou a apelação interposta pela paciente ao Tribunal de Justiça carioca. Parece-me evidente que nenhuma dessas peripécias processuais exóticas teriam ocorrido se estivéssemos diante de questão desprovida de paixões, de convicções filosóficas, morais e políticas arraigadas.

Pois bem. Ao receber o recurso de apelação da paciente, a desembargadora relatora deferiu a liminar, autorizando a paciente a realizar o aborto.

Inconformados com a decisão monocrática, CARLOS BRAZIL e PAULO SILVEIRA MARTINS LEÃO JÚNIOR, advogados, estranhos ao processo, interpuseram agravo regimental, mesmo sendo partes ilegítimas e não tendo qualquer interesse jurídico na demanda, e apenas invocando o direito constitucional de petição e o art. 5º, XXXV, da Constituição. O presidente da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça conheceu do recurso e, violando o princípio do juiz natural, cassou liminarmente a decisão da desembargadora relatora da apelação. Ao final, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou provimento ao agravo regimental, confirmando a decisão monocrática da desembargadora relatora.

Destaco, para fins de elucidação desta esdrúxula situação, um trecho do voto da desembargadora quando do julgamento do agravo regimental:

“Sem que a decisão fosse publicada no Diário Oficial, com base em reportagens publicadas em jornais, os agravantes interpuseram este agravo regimental, dirigido à esta relatora, em obediência ao previsto no Regimento Interno deste Tribunal (art. 200 § 2o), requerendo a reconsideração da decisão agravada e, submetida ao Colegiado fosse reformada, invocando o argumento de defesa da vida.

(…) No mesmo dia (fl. 80), outro Desembargador desta Câmara, ao argumento de que o único presente era seu Presidente, suspendeu a autorização concedida por esta relatora, mas determinando o envio dos autos à relatora, mesmo de férias, para apreciar a hipótese de julgamento.

(…) Logo, resta incompreensível a invasão de competência perpetrada nestes autos, eis que não há hierarquia entre Desembargadores da mesma Câmara; um não pode revogar a decisão do outro e, para quem leu nos jornais a notícia da revogação da decisão de um Desembargador por outro, ficou a falsa impressão de que há hierarquia entre os Desembargadores e que o Presidente da Câmara tudo pode.”

Concomitantemente, LUIZ CARLOS LODI DA CRUZ, sacerdote da Igreja Católica e presidente da ONG Pró-Vida, com sede em Anápolis-GO, impetrou, também contra a concessão da liminar pela relatora, habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça.

A impetração do habeas corpus naquela corte visava, portanto, a atacar decisão monocrática da desembargadora do Tribunal de Justiça carioca que concedera a liminar em favor da ora paciente.

A sucessão dos fatos, portanto é a seguinte: a liminar na apelação, concedida em 19 de novembro do ano passado, foi agravada regimentalmente no dia 21 daquele mês; na mesma data, foi deferida pelo presidente da Turma a liminar requerida no agravo, bem como foi impetrado o habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça. No dia 25 de novembro, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou provimento ao agravo regimental interposto pelos mencionados advogados. No mesmo dia, aqui em Brasília, a relatora do habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, ministra Laurita Vaz, concedeu, sem fazer qualquer menção à decisão colegiada do Tribunal de Justiça carioca, a liminar, para suspender a decisão monocrática que autorizara a realização do aborto.

Posteriormente, quando do julgamento do mérito do writ, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça procurou sustentar sua competência ao afirmar que o objeto da impetração não mais seria a decisão monocrática, mas sim o acórdão que rejeitou o agravo regimental.

De qualquer forma, ao rejeitar o agravo regimental, que não deveria sequer ter sido conhecido, a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça restabeleceu a decisão monocrática da desembargadora, que permaneceu, portanto, hígida.


Ora, ainda que se discuta acerca da possibilidade ou impossibilidade da concessão, em caráter liminar, de provimento satisfativo, o Superior Tribunal de Justiça não poderia ter julgado o writ, na medida em que não detinha competência para apreciar a matéria.

A questão, creio eu, é puramente de forma, e não de conteúdo: enquanto não exaurida a função jurisdicional do tribunal a quo, o tribunal ad quem não pode avocar a matéria, pouco importando se é, juridicamente, correta ou incorreta a decisão monocrática.

Sobre o assunto, há inclusive a recém-editada Súmula 691, cujo teor é o seguinte:

“Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.”

A orientação do Superior Tribunal de Justiça é idêntica ao excluir de sua competência o writ impetrado contra decisão monocrática de desembargador que concede liminar. Confira-se a seguinte ementa, do HC 26.107, relatado pela própria ministra Laurita Vaz:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. SENTENÇA QUE NEGA AO CONDENADO A POSSIBILIDADE DE APELAR EM LIBERDADE. DENEGAÇÃO DE LIMINAR EM WRIT IMPETRADO NO TRIBUNAL A QUO, CUJO MÉRITO AINDA NÃO FOI ANALISADO. IMPETRAÇÃO DE HABEAS CORPUS NO STJ. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. INCOMPETÊNCIA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PRECEDENTES. WRIT NÃO CONHECIDO.

1. É entendimento pacificado desta Corte, bem como do Supremo Tribunal Federal, de que não cabe habeas corpus contra indeferimento de liminar em feito da mesma natureza, uma vez que eventual decisão antes do pronunciamento do Tribunal de origem pode ensejar indevida supressão de instância. Tal entendimento só comporta exceção quando a negativa da liminar constituir-se em manifesta ilegalidade, o que não ocorre na espécie.

2. Writ não conhecido.”

No mesmo sentido: HC 30.299, rel. min. Gilson Dipp; HC 27.659, rel. min. Paulo Medina, e HC 27.504, rel. min. Francisco Falcão.

Note-se, por fim, que a ministra relatora daquele feito tinha plena ciência de que se opunha a firme entendimento desta e daquela Corte quando deu seguimento à impetração, conforme consta do despacho da liminar concedida (grifo nosso):

“De início, cumpre ressaltar que, na esteira da remansosa jurisprudência dos Tribunais Superiores, não se admite habeas corpus contra decisão proferida em sede de liminar pelo relator do writ na instância de origem, sob pena de indevida supressão de instância, salvo situações absolutamente excepcionais, onde restar claramente evidenciada a ilegalidade do ato coator.

Embora a decisão da Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não tenha sido prolatada em sede habeas corpus, a hipótese, de modo análogo, também enseja a apreciação por esta Corte, diante da flagrante excepcionalidade e urgência do caso.

É que, in casu, a autorização para a realização do aborto foi concedida, liminarmente, através de decisão monocrática proferida em sede de recurso de apelação, tendo, pois, caráter eminentemente satisfativo.”

Em síntese, considerando a incompetência absoluta do Superior Tribunal de Justiça para apreciar o habeas corpus lá impetrado, tenho que é nulo o acórdão atacado.

Com relação ao próprio mérito da impetração, tenho que a questão deva ser analisada por dois ângulos. O primeiro diz respeito à liberdade individual, da qual a autodeterminação da gestante é uma manifestação. Já o segundo refere-se aos diferentes graus de tutela penal da vida humana.

Em primeiro lugar, ressalto que, neste caso concreto, estamos diante de uma situação peculiar em que estão em flagrante contraposição o direito à vida, num sentido amplo, e o direito à liberdade, à intimidade e à autonomia privada da mulher, num sentido estrito.

Em outras palavras, busca-se, no presente habeas corpus, a tutela da liberdade de opção da mulher em dispor de seu próprio corpo no caso específico em que traz em seu ventre um feto cuja vida independente extra-uterina é absolutamente inviável.

Portanto, é importante frisar, não se discute nos presentes autos a ampla possibilidade de se interromper a gravidez. A questão aqui é bem diferente, pois se refere à interrupção de uma gravidez que está fadada ao fracasso, pois seu resultado, ainda que venham a ser envidados todos os esforços possíveis, será, invariavelmente, a morte do feto.

Segundo a literatura médica especializada, o bebê não viverá mais do que alguns dias porque é portador de uma anomalia gravíssima: a anencefalia ou ausência de cérebro. Não é preciso ser um especialista no assunto para entender que sem o órgão vital que comanda as funções básicas do corpo humano e também os sentimentos e as emoções, é absolutamente impossível a vida extra-uterina independente.


Por outro lado, os estudos multidisciplinares indicam que as reações emocionais dos pais após o diagnóstico de malformação fetal abrangem, conjuntamente ou não, os seguintes sentimentos: ambivalência, culpa, impotência, perda do objeto amado, choque, raiva, tristeza e frustração(1). É facilmente perceptível a enorme dificuldade de se enfrentar um diagnóstico de malformação fetal. E é possível imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que passam aqueles que de súbito se vêem diante do dilema moral de interromper uma gestação, unicamente porque nada se pode fazer para salvar a vida do feto. Seria reprovável uma decisão pela interrupção da gestação nesse caso?

Neste momento, a tarefa desta Corte é justamente esta: é preciso fornecer uma resposta rápida e precisa para essa mãe, a fim de que, a par de todo seu sofrimento pessoal, não tenha ela de se preocupar com a possível criminalidade de sua conduta.

Assim, analisando o que a lei penal prescreve sobre o tema, verifica-se que o legislador optou, em regra, pela punição do aborto, qualquer que seja o momento de sua realização (art. 124 do Código Penal), mas não se preocupou em conceituá-lo.

Segundo Alberto Silva Franco, “a expressão ‘aborto’ corresponde a um elemento normativo do tipo e, portanto, a um elemento necessitado de valoração por parte do juiz ou do intérprete. É evidente que o preenchimento da área de significado desse dado compositivo da figura típica deve ser buscado em campo extra-penal, na medicina, ou mais especificamente, na biologia, na parte em que cuida do processo de formação da vida e de suas causas de interrupção.”(2)

A doutrina, de um modo geral, conceitua o aborto como “a solução de continuidade, artificial ou dolosamente provocada, do curso fisiológico da vida intra-uterina”(3)

Nesse sentido, portanto, o ato que interrompe a gestação configurará o crime de aborto descrito no art. 124 do Código Penal quando tiver como resultado prático a subtração da vida do feto, sendo este elemento (morte do feto) indissociável do delito ali tipificado.

Contudo, o legislador, no campo da exclusão de ilicitude, trouxe duas exceções a essa regra do art. 124 do Código Penal. No primeiro caso, quando a vida da mãe estiver em perigo – aborto necessário (art. 128, I). No segundo caso, quando a honra da mãe for violada de tal forma que torne insustentável para ela a manutenção da gravidez – aborto sentimental (art. 128, II). Em ambos os casos, é preciso ressaltar, a lei apenas exclui a ilicitude da conduta. Ou seja, a norma permite que a mãe decida se quer continuar com a gestação, não punindo sua conduta caso ela opte pela interrupção da gravidez. É certo que, no caso de risco de vida para a mãe, muitas vezes não há tempo hábil para ela fazer tal escolha, mas isso não vem ao caso neste momento. O que é imprescindível repisar é que a lei preserva o direito de escolha da mulher, não atentando para a viabilidade ou inviabilidade do feto. Estamos diante, portanto, de uma tutela jurídica expressa da liberdade e da autonomia privada da mulher.

Veja-se: a lei não determina que nesse ou naquele caso o aborto deva necessariamente ocorrer. A norma penal chancela a liberdade da mulher de optar pela continuidade ou pela interrupção da gestação. E, neste caso, não incrimina sua conduta.

Em se tratando de feto com vida extra-uterina inviável, a questão que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento em que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extra-uterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal.

Na verdade, e valendo-me das palavras de Daniel Sarmento, entendo que “a autonomia privada representa um dos componentes primordiais da liberdade, tal como vista pelo pensamento jurídico-político moderno. Esta autonomia significa o poder do sujeito de auto-regulamentar seus próprios interesses, de ‘autogoverno de uma esfera jurídica’, e tem como matriz a concepção de ser humano como agente moral, dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, e que deve ter liberdade para guiar-se de acordo com estas escolhas, desde que elas não perturbem os direitos de terceiros nem violem outros valores relevantes da comunidade. Ela importa o reconhecimento que cabe a cada pessoa, e não ao Estado ou a qualquer outra instituição pública ou privada, o poder de decidir os rumos de sua própria vida, desde que isto não implique em lesão a direitos alheios. Esta é uma idéia essencial ao princípio da dignidade da pessoa humana, que, na expressão de Canotilho, baseia-se no ‘princípio antrópico que acolhe a idéia pré-moderna e moderna da dignitas-hominis (pico della Mirandola) ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projecto espiritual'”.(4)


Isso porque, em casos de malformação fetal que leve à impossibilidade de vida extra-uterina, uma interpretação que tipifique a conduta como aborto (art. 124 do Código Penal) estará sendo flagrantemente desproporcional em comparação com a tutela legal da autonomia privada da mulher, consubstanciada na possibilidade de escolha de manter ou de interromper a gravidez, nos casos previstos no Código Penal. Em outras palavras, dizer-se criminosa a conduta abortiva, para a hipótese em tela, leva ao entendimento de que a gestante cujo feto seja portador de anomalia grave e incompatível com a vida extra-uterina está obrigada a manter a gestação. Esse entendimento não me parece razoável em comparação com as hipóteses já elencadas na legislação como excludente de ilicitude de aborto, especialmente porque estas se referem à interrupção da gestação de feto cuja vida extra-uterina é plenamente viável.

Seria um contra-senso chancelar a liberdade e a autonomia privada da mulher no caso do aborto sentimental, permitido nos casos de gravidez resultante de estupro, em que o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual da mulher, e vedar o direito a essa liberdade nos casos de malformação fetal gravíssima, como a anencefalia, em que não existe um real conflito entre bens jurídicos detentores de idêntico grau de proteção jurídica. Há, na verdade, a legítima pretensão da mulher em ver respeitada a sua vontade de dar prosseguimento à gestação ou de interrompê-la, cabendo ao direito permitir essa escolha, respeitando o princípio da liberdade, da intimidade e da autonomia privada da mulher.

Nesse ponto, portanto, cumpre ressaltar que a procriação, a gestação, enfim os direitos reprodutivos, são componentes indissociáveis do direito fundamental à liberdade e do princípio da autodeterminação pessoal, particularmente da mulher, razão por que, no presente caso, ainda com maior acerto, cumpre a esta Corte garantir seu legítimo exercício, nos limites ora esposados.

Lembro que invariavelmente essa concepção fundada no princípio da autonomia ou liberdade individual da mulher é a que tem prevalecido nas cortes constitucionais e supremas que já se debruçaram sobre o tema. Cito, para ilustrar, trecho do voto do juiz Harry Blackmun, da Corte Suprema dos Estados Unidos, no famoso leading case Roe v. Wade, de 1973. Sustentou Blackmun:

“Este direito de privacidade, fundado no conceito de liberdade pessoal da 14a Emenda ou nas restrições à atuação do Estado, como nós o entendemos, ou nos direitos reservados ao povo, como entendeu a Corte distrital, é amplo o suficiente para incluir a decisão de uma mulher de interromper ou não a gravidez. Os prejuízos que o Estado causa a uma mulher ao recusar-lhe esta escolha é manifesto. Podem envolver danos específicos e diretos, medicalmente diagnosticáveis até mesmo no início da gravidez. Uma maternidade, ou filhos indesejados, podem conduzir uma mulher a uma situação ou a um futuro de miséria. Danos psicológicos podem ser iminentes. A educação de uma criança pode afetar a saúde mental e psíquica da mãe. Há, também, para todas as pessoas envolvidas, o problema do stress (distress) associado à criança não desejada, bem como o problema de se criar uma criança em uma família desprovida de meios, tanto no plano psicológico como em qualquer outro plano”

E prossegue a corte de Washington, mais adiante:

“Nessas condições, nós julgamos que o direito à vida privada inclui a decisão de abortar, mas que esse direito não é ilimitado, devendo ser visto à luz do relevante interesse que o Estado tem em regulamentá-lo.”

Na França, igualmente, a decisão de interromper a gravidez é vista como algo inerente à autonomia privada, à liberdade da mulher, fazendo parte daquilo que o professor Jacques Robert caracteriza como “lê droit de disposer de son corps”.

Trago igualmente à reflexão a percuciente observação do filósofo norte-americano Ronald Dworkin, que, em sua obra Freedom’s Law, sob o epíteto “CONFORMIDADE e COERÇÃO”, sustenta o seguinte:

“Proibir o aborto não é a mesma coisa que tomar decisões coercitivas no campo do zoneamento urbano ou da proteção de espécies em perigo. O impacto em certas pessoas (mulheres grávidas) é bem maior. Uma mulher que é obrigada a levar adiante uma gravidez em razão da pressão da sua comunidade não tem mais o controle do seu corpo. Isto é uma escravidão parcial, uma privação de liberdade muito mais séria do que os ônus sofridos pelos cidadãos em razão do poder de polícia do Estado em matéria urbana! Ter um filho pode significar a destruição da vida de uma mulher!”

Já o segundo aspecto que gostaria de enfocar diz respeito ao possível cometimento de crime de aborto (Código Penal, art. 124), caso a gestante assim decida proceder.


O acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, acerca da possível conduta abortiva da paciente, encontra-se fundamentado nos seguintes termos:

“Contudo, é fato inarredável que a situação posta nos autos não está expressa na Lei Penal deste País como hipótese em que o aborto é autorizado.

(…)A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem.

(…)O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta nos autos originários é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que, insisto, fora excluída de forma propositada pelo Legislador.”

Vê-se, assim, que são dois os argumentos do Superior Tribunal de Justiça, quais sejam: (i) de que a vida do nascituro, no caso concreto, é protegida pelo Direito Penal e (ii) de que o aborto eugênico não se encaixa nas hipóteses de excludente de ilicitude, previstas no art. 128 do Código Penal.

Com relação ao primeiro argumento, faço a seguinte indagação: quando, em razão de anencefalia, a vida extra-uterina do nascituro é inviável, deve o direito garantir a essa vida o mesmo grau de proteção?

Entendo que não. Explico.

A tutela da vida humana experimenta graus diferenciados. As diversas fases do ciclo vital, desde a fecundação do óvulo, com a posterior gestação, o nascimento, o desenvolvimento e, finalmente, a morte do ser humano, recebem do ordenamento regimes jurídicos diferenciados.

Não é por outra razão que a lei distingue (inclusive com penas diversas) os crimes de aborto, de infanticídio e de homicídio.

Ora, se o feto ainda se encontra no ventre da mãe, é evidente que sua situação jurídica, penal inclusive, é diversa da das pessoas já existentes.

Limitando-me ao problema concreto, ou seja, de feto que, por ser portador de anencefalia, não irá sobreviver muito tempo após o parto, devemos nos ater a qual é o objeto jurídico tutelado pelos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal.

Creio que seja, de um lado, a preservação de uma vida potencial e, por outro, a incolumidade da gestação.

Daí por que há de se separar a situação em que o feto se encontra em desenvolvimento das situações em que ele está biologicamente morto e, ainda, da situação em que ele está biologicamente vivo, mas juridicamente morto.

Apenas a primeira hipótese é abraçada pelo Direito Penal, uma vez que não se visa a proteger situações moralmente controversas, mas apenas aquelas em que exista algum obstáculo durante a gestação a impedir a transformação de vida potencial em um novo ser humano.

Por essa razão, o feto anencefálico, mesmo estando biologicamente vivo (porque feito de células e tecidos vivos), não tem proteção jurídica.

Sobre o tema, e com orientação idêntica à nossa, o professor Claus Roxin, em recente visita ao Brasil, proferiu a palestra “A proteção da vida humana através do Direito Penal”, oportunidade em que salientou (i) que a vida vegetativa não é suficiente para fazer de algo um homem e (ii) que com a morte encefálica termina a proteção à vida. A transcrição da referida palestra pode ser obtida no seguinte sítio: http://wwww.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto_Roxin.htm (consultado em 03.03.2004).

A própria lei de transplante de órgãos (Lei 9.434/1997), ao fixar como momento da morte do ser humano o da morte encefálica(5), reforça esse argumento.

Concluo. O feto, desde sua concepção até o momento em que se constatou clinicamente a irreversibilidade da anencefalia, era merecedor de tutela penal. Mas, a partir do momento em que se comprovou a sua inviabilidade, embora biologicamente vivo, deixou de ser amparado pelo art. 124 do Código Penal.

Por fim, com relação ao argumento de que o aborto eugênico não se encontra incluído no rol de excludentes de ilicitude previsto no art. 128 do Código Penal, tenho que, sendo o comportamento atípico, a questão fica prejudicada.

De fato, se a conduta não é típica, sequer há de se cogitar de ilícito penal.

No entanto, importante frisar que há uma razão histórica para o aborto eugênico não ser considerado lícito. Quando da promulgação do Código Penal, em 1940, não havia tecnologia médica apta a diagnosticar, com certeza, a inviabilidade do desenvolvimento do nascituro pós-parto.(6)

Nesse aspecto, é importante lembrar que os estudos referentes à medicina fetal e à terapia neonatal datam da década de 1950, somente vindo a alcançar a sofisticação hoje conhecida há pouco mais de dez anos. Explica-se, assim, a lacuna do Código Penal. O que não se explica é o argumento fundamentalisticamente positivista utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Ante o exposto, concedo parcialmente a ordem, para cassar a decisão do Superior Tribunal de Justiça, assegurando à paciente GABRIELA OLIVEIRA CORDEIRO o direito de, assistida por médico, tomar, caso seja essa sua vontade, a decisão de interromper a gravidez, desde que isso ainda seja viável do ponto de vista médico, visto haver indícios de que a gravidez já esteja em estágio avançado. Estendo igualmente a ordem a todo o corpo médico e paramédico que eventualmente venha a se envolver no possível evento hospitalar.

Notas de Rodapé:

1 FRIGÉRIO, Marcos Valentin. “Aspectos bioéticos, médicos e jurídicos do abortamento por anomalia fetal grave no Brasil”, in: Revista Brasileira de CIências Criminais, 41, jan/mar 2003. p. 291.

2 FRANCO, Alberto Silva. “Aborto por Indicação Eugênica”, in Estudos Jurídicos em Homenagem a Manoel Pedro Pimentel. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 90.

3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 427.

4 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 188.

5 Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

6 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1977. 5ª ed. v. 5. p. 313: “Consiste esta [referindo-se à idéia de eugenia] num amontoado de hipóteses e conjecturas, sem nenhuma sólida base científica. Nenhuma prova irrefutável pode ela fornecer no sentido da previsão de que um feto será, fatalmente, um produto degenerado.”

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