Direito à saúde

Município deve pagar tratamento de paciente com artrite reumatóide

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1 de março de 2004, 18h25

“Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de nossa organização federativa.”

A afirmação é do ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello. Ele manteve decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que obriga o município de Porto Alegre a pagar tratamento de paciente com artrite reumatóide juvenil e imunodeficiência primária.

Segundo o ministro, “não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional”.

Leia a íntegra da decisão:

AGRAVO DE INSTRUMENTO 457.544-2 RIO GRANDE DO SUL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

AGRAVANTE(S): MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE

ADVOGADO(A/S): BETHANIA REGINA PEDERNEIRAS FLACH

AGRAVADO(A/S): GEOVANE BORBA DA SILVA

ADVOGADO(A/S): DPE-RS – LEO SCHMITT DREGER

EMENTA: PACIENTE COM ARTRITE REUMATÓIDE JUVENIL E IMUNODEFICIÊNCIA PRIMÁRIA. PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. CUSTEIO DE EXAME. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, “CAPUT”, E 196). PRECEDENTES (STF).

O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar.

O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. Precedentes do STF.

DECISÃO: O recurso extraordinário, a que se refere o presente agravo de instrumento, busca reformar decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 11):

“Constitucional. Direito público não especificado. Realização de exame necessário para o tratamento de doença que deve ser custeada pelo Estado. Sendo a responsabilidade prevista no artigo 196 da Constituição Federal de qualquer dos entes federativos, está o Município de Porto Alegre legitimado para custear o exame ao qual deve submeter-se o autor. Dispensa de processo licitatório (Lei nº 8.666/93). Obrigação de o ente público prestar assistência à saúde (arts. 196 e 197 da Constituição Federal e Lei Estadual 9.908). A improcedência da ação importa pôr em risco o direito à saúde e à integridade física do cidadão, direitos maiores que se sobrepõem a qualquer outro. Ação procedente em primeiro grau. Apelo desprovido, sentença confirmada em reexame necessário (grifei)

Entendo não assistir razão ao Município de Porto Alegre, pois o eventual acolhimento de sua pretensão recursal certamente conduziria a um resultado trágico. É que essa postulação – considerada a irreversibilidade, no momento presente, dos efeitos gerados pela patologia que afeta o ora agravado (que é portador de artrite reumatóide juvenil e imunodeficiência primária) – impediria, se aceita, que o paciente, pessoa destituída de qualquer capacidade financeira, merecesse o tratamento inadiável a que tem direito e que se revela essencial à preservação de sua própria vida.

Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de nossa organização federativa.

A impostergabilidade da efetivação desse dever constitucional desautoriza o acolhimento do pleito recursal ora deduzido na presente causa.

Tal como pude enfatizar, em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput” e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana.

Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar.

O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à Constituição de 1988“, vol. VIII/4332-4334, item n. 181, 1993, Forense Universitária) – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

Nesse contexto, incide, sobre o Poder Público, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas – preventivas e de recuperação -, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República.

O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas – impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.

Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais – que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Poder Constituinte e Poder Popular“, p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros) -, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculado à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição.

Não basta, portanto, que o Estado meramenteproclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial , para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.

Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.

Todas essas considerações – que ressaltam o caráter incensurável da decisão emanada do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – levam-me a repelir, por inacolhível, a pretensão recursal deduzida pelo Município de Porto Alegre, especialmente se se considerar a relevantíssima circunstância de que o acórdão ora questionado ajusta-se à orientação jurisprudencial firmada no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no exame da matéria (RE 195.186/RS, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RE 195.192/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – 198.263/RS, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – RE 237.367/RS, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – RE 242.859/RS, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RE 246.242/RS, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RE 279.519/RS, Rel. Min. NELSON JOBIM, v.g.):

“PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) – PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO MPROVIDO.

O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.

– O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.

– O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE.

– O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES.

– O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.”

(RE 273.834-AgR/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Sendo assim, e pelas razões expostas, nego provimento ao presente agravo de instrumento, eis que se revela inviável o recurso extraordinário a que ele se refere.

Publique-se.

Brasília, 27 de fevereiro de 2004.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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