Justiça caótica

Dados da OAB revelam situação de caos na Justiça da Bahia

Autor

26 de maio de 2004, 10h07

A Justiça da Bahia vive sob o império do caos e reina no Estado um sentimento de impunidade generalizado. O alerta foi feito nesta quarta-feira (26/5), pelo presidente da seccional baiana da Ordem dos Advogados do Brasil, Dinailton Oliveira. “Na esteira desse sentimento pode voltar a Lei de Talião: olho por olho, dente por dente”, afirmou.

Faltam juízes, servidores, oficiais de Justiça e promotores. Recentes dados da OAB e do Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado (Sinpojud) dão uma mostra do que fala o presidente da seccional.

Das 281comarcas que compõem a Justiça do Estado da Bahia, 62 estão sem juízes. E na maioria delas há carência de servidores e oficiais de Justiça, o que faz com que muitos despachos e mandados não sejam cumpridos.

A Bahia dispõe hoje de 480 juízes — sem contar os 30 desembargadores do Tribunal de Justiça — para as 281 comarcas e 14 milhões de habitantes. São cerca de 50 mil habitantes por juiz, uma proporção extremamente reduzida.

Os servidores do Judiciário são 5.485 no Estado, atendendo aos 415 municípios. A presidente do Sinprojud, Maria José Silva, a Zezé, calcula que são necessários mais 5.498 servidores para que a Justiça estadual funcione com razoável eficiência e em dois turnos.

A falta de juízes e de servidores é citada nos relatórios de praticamente todas as 31 Subseções da OAB da Bahia, entregues recentemente ao presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Gilberto Caribe, como um dos principais problemas enfrentados hoje pelo Judiciário.

Segundo Zezé, “não há juízes para julgar, não há servidores para cumprir despachos quando são emitidos e há oficiais de Justiça que estão assoberbados com 200 a 300 mandados cada um. As Varas da Família juntam verdadeiras multidões e têm apenas quatro ou cinco servidores para atendê-las. E o mais triste: são as pessoas mais humildes da população em busca de direitos como pensão por alimentos”.

Feira de Santana

Um exemplo da situação caótica em que vive a Justiça do Estado é Vara da Fazenda Pública de Feira de Santana. Ali são tocados 65 mil processos apenas pela juíza Suélvia dos Santos Reis.

Para dar conta dessa montanha de ações, a Vara, que responde também por Registros Públicos e Acidentes de Trabalho, conta com apenas nove serventuários e três oficiais de Justiça. “Feira precisa ser vista com a dimensão que ela tem, porque nas últimas três gestões do Tribunal de Justiça ela foi relegada a um plano muito pequeno”, reclama o presidente da subseção da OAB do município, Celso Pereira.

A comarca de Feira de Santana, a 110 km da Capital e segundo maior município baiano, dispõe hoje de 16 Varas judiciárias para atender a uma população de 600 mil pessoas. Cerca de 40 mil habitantes por juiz.

Segundo Celso Pereira, o projeto de reforma da Lei das Organizações Judiciárias do Estado prevê para a região um aumento para 23 juízes, o que não resolve a questão, pois continuaria com uma proporção de quase 30 mil habitantes por juiz. Sua estimativa é de que são necessários hoje, para um atendimento razoável à população, 50 juízes e 50 promotores de Justiça.

Na cidade, há Varas do Fórum marcando audiências somente para meados de 2006 ou até para 2007. “O problema da Justiça é que a máquina judiciária não foi suprida conforme a evolução da demanda”, explicou Pereira. “Hoje, temos falta de juízes, de serventuários, de espaço físico. Por outro lado, a sociedade passou a litigar mais, vem mais ao Judiciário para dirimir seus conflitos, tem atos mais modernos da vida brasileira, tudo isso cresceu. Mas, em contrapartida, a oferta de serviços do Judiciário encolheu”.

O mesmo diagnóstico é feito por diversas outras Subseções da OAB que vêm com preocupação o aumento desproporcional da demanda da sociedade pela Justiça — em conseqüência até de novos hábitos ou das disputas na vida cotidiana, como os crescentes casos das Varas de Família.

Com as próprias mãos

“O descrédito com a Justiça em Serrinha é tão grave e de tal relevância que os conflitos aqui já estão sendo resolvidos à bala”. O depoimento é do conselheiro da seccional OAB da Bahia, o advogado Arnaldo Freitas Pio, que trabalha no município de Serrinha, a 170 Km de Salvador.

Ele é um dos 41 advogados que atuam na cidade e criticam veementemente o total abandono a que foi relegada a Justiça na comarca. O advogado se diz muito preocupado com a situação no município.

Ele confirma que “em alguns lugares da Bahia as situações que poderiam ser solucionadas por uma Justiça efetiva e que funcionasse, estão agora sendo resolvidas pela lei da selva ou a Lei de Talião”.

Advogados, comerciantes e associações de moradores da cidade vão se unir numa passeata, na próxima terça-feira (1/6), às 10h, para exigir o funcionamento das Varas e a presença de juízes no fórum. Como Serrinha é sede da comarca que abrange mais os municípios de Buriti e Barroncas, o número de habitantes que deveriam ser atendidos sobe para 150 mil.

Segundo a OAB, o Fórum Luiz Viana Filho, localizado no centro de Serrinha, na rua Macário Ferreira, está praticamente entregue às moscas. Desde outubro de 2003, o juiz da Vara Cível da comarca está afastado pelo Tribunal de Justiça e mais de 20 mil processos se acumulam, à espera de decisões.

A entidade afirma ainda que centenas de pedidos cautelares (liminares), que carecem de urgência no julgamento, dormitam nas prateleiras do fórum há oito meses sem apreciação. O fórum é aparentemente estruturado, com suas pequenas escadas de mármore e móveis e estantes simples. Mas faltam funcionários (na Vara Cível há apenas quatro) e todos os procedimentos são ainda manuais e rudimentares. Não há informatização.

Segundo a presidente da subseção da OAB em Serrinha, Heusa Régia de Araújo Silva, que trabalha na organização da passeata pelo fim do marasmo judicial, a região carece de mais duas Varas cíveis. “E o problema é que só temos uma e assim mesmo não funciona”, sustenta ela.

Desde 19 de outubro, quando o juiz foi suspenso pelo TJ, foram indicados juízes substitutos de duas comarcas nas proximidades, “os quais aparecem quinzenalmente ou de vez em quando”, conforme depõem diversos dos 41 advogados que militam na comarca.

Greve por melhorias

Uma greve de dois dias dos servidores do Poder Judiciário da Bahia, realizada nos dias 12 e 13 deste mês, foi a forma de pressionar o governo a cumprir parte de um acordo selado em junho do ano passado para repor perdas do achatamento salarial vivido pela categoria nos últimos dez anos. Agora, a presidente Sinpojud, Zezé, junto com a OAB baiana, quer pressionar o governo a contratar mais servidores.

Zezé entende que essa é uma das formas que pode tirar do atoleiro o Judiciário baiano. Ela reclama também dos baixos salários da categoria e das restrições orçamentárias impostas ao Poder Judiciário — que este ano terá repasses de apenas 4,2% da receita corrente líquida do Estado, ou R$ 370 milhões — que o Executivo atribui à Lei de Responsabilidade Fiscal.

Segundo Dinailton Oliveira, a falta de juízes, somado aos baixos salários e aos dois mil cargos de servidores vagos no Judiciário — cargos existentes, mas não ocupados — constituem a face mais evidente “de um Poder Judiciário totalmente desestruturado para atender sua população”.

Classe empobrecida

Os problemas não poupam nem o caixa da OAB. A seccional da Bahia, com 18 mil advogados inscritos, tem um índice de inadimplência de 80% nas contribuições, segundo seu presidente. Sua interpretação é que o elevado índice está também vinculado ao sucateamento da Justiça.

“Os advogados já não conseguem exercitar a contento sua profissão numa situação dessas, pois sua questão na Justiça dura anos e anos e as pessoas passam a não acreditar mais na prestação jurisdicional”, diz Oliveira.

Dinailton Oliveira cita que o jornal A Tarde, um dos dois maiores da Bahia, fez no ano passado reportagem mostrando que há diversos advogados morando em favelas em Salvador, por absoluta dificuldade financeira. “Também no interior a situação dos advogados é deprimente, pois existem comarcas sem juízes há três anos, e esses profissionais ficam numa situação difícil”, afirmou.

As dificuldades vividas pelos advogados baianos afetam também os recém-ingressados na profissão, nas cidades grandes ou pequenas. Em Feira de Santana, eles reclamam, por exemplo, que foi cortado recentemente o convênio que era mantido pela Universidade Estadual com o Fórum, que permitia o estágio de jovens advogados nos cartórios das suas 16 Varas. A alegação para o corte pelo Tribunal de Justiça: falta de recursos financeiros.

Reação

Ao tomar conhecimento das informações de descaso e de falta de profissionais no Judiciário da Bahia, transmitidas por Dinailton Oliveira, o presidente nacional da OAB, Roberto Busato, classificou de “gravíssima” a situação da Justiça deste Estado.

Busato afirmou que apresentará o retrato dessa situação ao presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Gilberto Caribe, e pedirá a presença da sociedade para a resolução do problema. Sobre a crise no Judiciário baiano, Busato disse o seguinte:

“A situação no Judiciário da Bahia é gravíssima, uma das situações mais adversas da Justiça brasileira e deve ser combatida não só pelos advogados da Bahia mas pela advocacia de todo o Brasil. Pretendemos levar o levantamento que o Conselho Federal fez junto ao Judiciário da Bahia e o retrato dessa situação ao presidente do Tribunal de Justiça do Estado, desembargador Gilberto Caribe, e, posteriormente, vamos convocar a sociedade civil baiana a unir forças para resolver o problema. Denunciaremos à sociedade civil baiana o grave estado em que se encontra a Justiça baiana. A partir daí, criaremos um movimento organizado entre OAB e a sociedade e exigiremos das autoridades competentes uma solução urgente para o problema muito grave que ocorre naquele Estado”. (OAB)

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!