Corte proibido

Liminar impede corte de ponto de auditores fiscais da Receita

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24 de maio de 2004, 9h44

O juiz Hamilton de Sá Dantas, da 21ª Vara Federal do Distrito Federal, concedeu liminar que proíbe a União de descontar os dias parados dos auditores fiscais da Receita. A categoria está em greve por reajuste de sálarios desde o mês passado.

A decisão foi tomada no último dia 21 de maio, em Mandado de Segurança proposto pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco) contra ato que determinou o corte de ponto dos grevistas.

Segundo o juiz, “o legislador constituinte originário objetivou (…) universalizar o direito de greve a todas as classes de trabalhadores, abrangendo, assim, tanto os da iniciativa privada quanto os vinculados à Administração Pública, em suas diversas esferas de poder (…)”.

A liminar, contudo, foi deferida parcialmente. Isso porque o Unafisco pedia a garantia da devolução dos valores porventura efetuados antes da proposição do Mandado de Segurança. Mas o magistrado não atendeu a esse pedido.

Para Sá Dantas, o pedido “encontra óbice no enunciado da Súmula 269 do Supremo Tribunal Federal, consoante a qual ‘o mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança'”.

Leia a liminar

MANDADO DE SEGURANÇA

PROCESSO Nº 2004.34.00.013466-0

CLASSE 2200

IMPETRANTE: SINDICATO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL – UNAFISCO.

ADVOGADA: Dra. Cácia Campos Pimentel

IMPETRADOS: COORDENADOR-GERAL DE RECURSOS HUMANOS DO MINISTÉRIO DA FAZENDA e outro.

Vistos em decisão

Cuida-se de Mandado de Segurança Coletivo impetrado por SINDICATO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL contra ato do COORDENADOR-GERAL DE RECURSOS HUMANOS DO MINISTÉRIO DA FAZENDA e do SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL, consistente na ameaça de corte de vencimentos e de pontos de seus associados a partir de abril de 2004, em retaliação a movimento de greve deflagrado por sua categoria.

Afirma o impetrante, ora substituto processual, que as autoridades impetradas vêm admitindo, sem amparo legal, o corte de vencimentos de seus associados, em virtude de participação em movimento de paralisação da categoria. Nesse contexto, alega ser a greve um direito reconhecido internacionalmente, exercido pelos trabalhadores como instrumento de reivindicação para a conquista de melhores condições de trabalho.

Aduz, ainda, que a omissão do Congresso Nacional em editar a lei ordinária a que se referiu o art. 37, inciso VII, da Constituição Federal de 1998 – com a redação conferida pela Emenda Constitucional nº 19/98 – não resulta na impossibilidade de exercício do direito de greve pelos servidores públicos, porquanto se cuida de prerrogativa decorrente de texto constitucional expresso. Colaciona, nesse precedente jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça.

Sustenta, por outro lado, a inconstitucionalidade do Decreto nº 1.480, de 3 de maio de 1995, que dispõe sobre os procedimentos a serem adotados em casos de paralisações dos serviços públicos federais, prevendo, inclusive, punições aos servidores participantes de movimentos paredistas. Tal diploma legal, consoante alega, reporta-se aos arts. 116 e 117 do Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis da União (Lei nº 8.112/90), e não ao exercício do direito de greve, sendo, portanto, inconstitucional por extrapolar suas funções meramente regulamentares. Ressalta, quanto a esse aspecto, que o sistema jurídico nacional não admite a figura do decreto ou regulamento autônomo, ou seja, aquele com força própria independentemente de lei anterior (fl. 18).

Instruem a inicial os documentos de fls. 33/399.

Regularmente citado, o SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL prestou suas informações às fls. 409/415, alegando que o exercício do direito de greve, no ordenamento jurídico pátrio, depende de previsão em lei complementar, nos termos do art. 37, VII, da Constituição Federal de 1988. Aduz, por outro lado, que as faltas decorrentes de participaçnao em movimento grevista não se encontram elencadas no rol taxativo do art. 44 da Lei nº 8.112/90, que disciplina as faltas do servidor público ao serviço. Assim sendo, o servidor participante de movimento paredista perde a remuneração dos dias em que falta ao serviço injustificadamente (fl. 411).

Nas informações prestadas às fls. 417, o COORDENADOR-GERAL DE RECURSOS HUMANOS DO MINISTÉRIO DA FAZENDA, reiterando os argumentos expendidos pela primeira autoridade impetrada, afirma que o direito de greve dos servidores públicos está condicionado aos termos e limites a serem estabelecidos em lei complementar, cuja inexistência inviabiliza o seu exercício pelos associados do impetrante.

Em cumprimento do disposto no art. 2º da Lei nº 8.437/92, manifestou-se a União Federal às fls. 432/443.

É o relatório.

Passo a decidir.

O cerne da questão submetida a este Juízo refere-se à interpretação e ao alcance da disposição insculpida no art. 37, inciso VII, da Constituição Federal de 1988 – com a redação conferida pela Emenda Constitucional nº 19/98 -, que estatui:

Art. 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

VII – o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica.

No entanto, como é de conhecimento geral, o legislador ordinário, até o presente momento, absteve-se de pôr em prática o supracitado mandamento constitucional, editando a lei regulamentadora do exercício desse direito tão relevante, inclusive como meio legitimador da democracia participativa. Pode-se afirmar, assim, que, não obstante a existência de ampla garantia, consubstanciada no dispositivo constitucional sob comento, o exercício do direito de greve pelos servidores públicos encontra-se obstaculizado tão-somente pela ausência de iniciativa do legislador em disciplinar o instituto, consoante já se manifestou o Supremo Tribunal Federal em julgado a seguir transcrito:

Mandado de Injunção. Direito de greve. Constituição, art. 37, VII.

4. Reconhecimento de mora do Congresso Nacional, quanto à elaboração da lei complementar a que se refere o art. 37, VII, da Constituição. Comunicação ao Congresso Nacional e ao Presidente da República (MI 438/GO, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA).

Ressalto, entretanto, que o direito de greve, consoante a orientação esposada pelo ilustre constitucionalista José Afonso da Silva, à qual me filio, “não é um simples direito fundamental dos trabalhadores, mas um direito fundamental de natureza instrumental e desse modo se insere no conceito de garantia constitucional, porque funciona como meio posto pela Constituição à disposição dos trabalhadores, (…) como um recurso de última instância para a concretização de seus direitos e interesses” (in Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, 1990, p. 307). Tenho, assim, que o seu exercício, assegurado constitucionalmente, ainda que dependa de disciplinamento por intermédio de legislação infraconstitucional, não pode ser obstaculizado em virtude da inércia dos poderes competentes para deflagrar o processo legislativo.

Vivemos em um Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos, que prima, como fundamento de sua existência, pela cidadania, dignidade da pessoa humana e pelos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e que tem, ainda, como objetivos fundamentais, a garantia do desenvolvimento nacional e aerradicação da pobreza. Mas como pode implementar tais políticas e cumprir os mencionados princípios constitucionais um Estado de Direito que, reconhecendo a existência de um direito assegurado pela Carta de 1988, erige óbices à participação de servidores públicos em movimentos reivindicatórios de melhores salários e condições de trabalho ante a omissão do próprio legislador em editar lei específica?

Observo, por outro lado, que, a par das considerações ora expendidas, a pretensão deduzida nos presentes autos afigura-se juridicamente relevante se analisada sob outro fundamento. Com efeito, a Constituição da República, em seu Título II, reservado aos Direitos e Garantias Fundamentais, garatiu o exercício do direito de greve aos trabalhadores, nos termos seguintes:

Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

A meu ver, o legislador constituinte originário objetivou, através do aludido dispositivo, universalizar o direito de greve a todas as classes de trabalhadores, abrangendo, assim, tanto os da iniciativa privada quanto os vinculados à Administração Pública, em suas diversas esferars de poder, porquanto situou o artigo sob comento no rol dos direitos sociais, os quais, por sua vez, inserem-se no Título relativo aos Direitos e Garantias Fundamentais, extensivos a todos os brasileiros sem qualquer distinção, por força do princípio da igualdade (Constituição Federal, art. 5º, caput). Portanto, em homenagem ao princípio da unidade da Constituição, considero que a multicitada norma do art. 37, inciso VII, deve ser interpretada em conjunto com o disposto nos arts. 5º e 9º do texto constitucional, reconhecendo-se ao servidor público a legitimidade do exercício do direito de greve.

Considero, assim, não obestante a existência de precedentes jurisprudenciais em sentido contrário, irrepreensível a fundamentação adotada pelo e. Tribunal Regional Federal da 1ª Região no julgamento do AG nº 2002.01.00.034650-0/BA, da lavra do i. Desembargador Federal TOURINHO NETO, na qual restou assentado, verbis:

PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. LIMINAR. SERVIDOR PÚBLICO. GREVE. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 37, VII.

1. A Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, garantiu o direito de greve ao servidor público, condicionando, contudo, seu exercício aos termos e limites definidos em lei específica. A Constituição de 1988, por conseguinte, aboliu a proibição anterior de greve nos serviços públicos, passando a permití-la. Treze anos, no entanto, são passados e a lei específica não é editada. A vontade do constituinte está sendo desrespeitada, e nenhuma providência é tomada. A Constituição permitiu a greve. O servidor pode exercitar esse direito, ainda que não haja lei específica regulamentando-o. Enquanto essa lei não vier, é de aplicar-se a Lei 7.783, de 1989 – a Lei da Greve. O direito de greve é que não pode deixar de ser exercitado por desídia, uma desídia dolosa, do legislador infraconstitucional, que, na hipótese, está se pondo acima do legislador constituinte.

2. A eficácia da norma constitucional não pode ficar a depender de uma norma hierarquicamente inferior que nunca é editada.

Ressalto, contudo, que o pedido de devolução dos valores porventura descontados anteriormente à propositura da presente ação mandamental (20 de abril de 2004) encontra óbice no enunciado da Súmula 269 do Supremo Tribunal Federal, consoante a qual “o mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança”.

Diante do exposto, presentes os pressupostos processuais da urgência no atendimento da prestação jurisdicional e da plausibilidade do direito invocado, DEFIRO, EM PARTE, o provimento LIMINAR, para determinar a reversão, para todos os efeitos (inclusive previdenciários), nas folhas de ponto dos associados do impetrante, dos dias anotados como faltas ao serviço a partir de 20 de abril de 2004, bem como determinar que as autoridade impetradas se abstenham de efetuar quaisquer descontos relativos aos dias não trabalhados pelos ora substituídos em virtude de deflagração de movimento de greve dos Auditores Fiscais da Receita Federal.

Notifiquem-se as autoridades coatoras para imediato cumprimento e para que, querendo, prestem as devidas informações, no prazo de 10 (dez) dias.

Intime-se.

Após, ao Minstério Público Federal.

Brasília, 21 de maio de 2004.

HAMILTON DE SÁ DANTAS

JUIZ FEDERAL TITULAR DA 21ª VARA

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