Volta ao passado

A gafe autoritária do governo Lula no caso New York Times

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17 de maio de 2004, 14h27

Ao determinar o cancelamento do visto do jornalista norte-americano Larry Rohter por se aborrecer com matéria publicada no New York Times sobre um suposto abuso no consumo de bebidas alcoólicas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cometeu o maior fiasco autoritário do seu governo.

Pior é que, alertado sobre o inconveniente, o presidente aprofundou um pouco mais o autoritarismo da medida, condicionando a sua revogação à retratação de Larry Rohter e do jornal americano. Ou seja, somente se “calassem a boca”.

Como a retratação não veio, a imaturidade com que o episódio vem sendo tratado fez com que o ministro da Justiça “recebesse como retratação” uma carta dos advogados de Larry Rohter, na qual se pede reconsideração por não ter havido intenção de ofender. O New York Times, entretanto, nega que tenha havido retratação e avaliza a matéria de Rohter.

Com essas infelizes atitudes, travestidas de defesa da “ordem pública” e dos “interesses nacionais” (artigo 7o., inciso II, da Lei 6.815/80, que serviu de fundamento para a cassação do visto), o presidente brasileiro conseguiu sair-se pior do que o jornalista americano: fez de uma crítica aparentemente sensacionalista e rasteira, indigna de uma cobertura sóbria dos problemas políticos brasileiros, motivo para revanche pessoal infantil, sem sentido e acima de tudo antidemocrática.

É um típico exemplo, que jamais será apagado do currículo do presidente, de alguém que, estando em princípio coberto de razão, passou de vítima a vilão por se exceder na reação, não conter os próprios nervos e o ímpeto de atacar a ofensa com overdose de agressividade.

Ferido em sua pessoa, a resposta só poderia ser igualmente pessoal. Mas o excesso foi disparado também contra a instituição da liberdade de imprensa, que deve ser cara ao presidente, um dos muitos militantes de esquerda que sofreram na pele as atrocidades da ditadura militar brasileira.

E o presidente se valeu, justamente, de um dos instrumentos dos tempos da repressão, uma lei de 1980 (nº 6.815), que prevê, em seu artigo 7o., que “não se concederá visto ao estrangeiro considerado nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais” (inciso II). Com instrumentos jurídicos dúbios como este a ditadura militar calava quem ousasse se opor ao regime de força.

Nada mais impalpável do que essa “nocividade à ordem pública”, ou mais subjetivo do que “interesse nacional”, que podem ser manipulados ao gosto do momento e do ocupante do Poder. Uma lei como essa só poderia vir mesmo dos tempos em que se sufocava escandalosamente a liberdade de expressão no Brasil, comandado na época por militares golpistas de alta patente.

Mais espantoso do que estar essa lei ainda em vigor, é ser manejada nos dias de hoje como instrumento de uma vingança caseira do presidente da República, que deve respeito à Constituição Federal, hierarquicamente preciosa e, portanto, de maior quilate do que quaisquer fofocas sobre os gostos de quem estiver dirigindo o País.

O outro dinossauro legislativo dos tempos da ditadura brasileira, em vigor e que poderia ter sido invocada (graças a Deus não foi ainda lembrada!), é a nossa Lei de Imprensa (Lei 5.250, de 1967), que considera crimes puníveis com pena corporal delitos de opinião.

Serviu como mais um instrumento de intimidação no Brasil, para abortar críticas ao regime imposto em 1964, ainda bem menos autoritário do que o Ato Institucional nº 5, que amordaçou toda a nação brasileira também a pretexto de um “interesse nacional” acima de qualquer suspeita e legítimo como que por vocação divina.

A democracia brasileira, por sorte, em que pese a precariedade de algumas de suas instituições, parece consolidada a ponto da truculência episódica do Poder Executivo Federal ser prontamente suspensa pela decisão certeira do Judiciário, na pessoa do ministro do Superior Tribunal de Justiça Francisco Peçanha Martins, provocada por um dos integrantes do terceiro Poder (o Legislativo), o senador pelo Rio de Janeiro Sérgio Cabral, que impetrou habeas corpus.

O que tinha tudo para ser um exemplo vergonhoso de autoritarismo, agora pode ser mostrado ao mundo como prova da independência entre os três Poderes brasileiros, de maturidade do próprio regime democrático, já que um senador da República (de um partido da base aliada do Presidente) tomou a iniciativa de ajuizar ação corretiva, contando com um Judiciário independente e sóbrio, que tutelou o direito de expressão imediatamente.

Críticas, portanto, ao presidente, que confundiu o próprio fígado com a alma brasileira. Aplausos ao senador e ao Judiciário. Os méritos da matéria do jornalista americano ainda precisarão ser confirmados.

Apesar do recuo do presidente com a restituição do visto ao repórter americano (em nome de uma retratação que o jornal New York Times diz não ter feito), essa confusão toda pode ter novos capítulos nos próximos dias. Os eventuais excessos cometidos na reportagem (que evidentemente nada têm que ver com o direito do repórter continuar exercendo o ofício no Brasil) poderão render uma indenização por danos morais ao presidente Lula, resguardado, espera-se, o direito do jornalista ao uso da exceção da verdade (direito de quem alega provar que a alegação é verdadeira), sem o que o suposto alcoolismo inveterado cairá igualmente no ridículo das leviandades, com a agravante de mirar o chefe da nação brasileira.

Não se trata, de qualquer forma (e isto está ganhando peso na opinião pública brasileira) de uma questão de Estado, mas de intriga, que ao que parece não é de hoje, entre o jornalista e o presidente, como sugerem matérias publicadas no jornal O Estado de São Paulo de 14/5/04, um dos jornais de maior tiragem no Brasil.

Nos tempos da ditadura, o ambiente favorecia, diferentemente de hoje, a perseguição a intelectuais e jornalistas. Carlos Heytor Cony, em A Revolução dos Caranguejos (coleção Vozes do Golpe, Companhia das Letras), bem a propósito, narra deliciosamente como começou, estupidamente, a sua perseguição pelo regime militar, após ter publicando no Diário da Manhã uma crônica intitulada “Da Salvação da Pátria”. Nessa crônica, Cony conta um episódio pitoresco, ocorrido no cruzamento da avenida Atlântica com a rua Joaquim Nabuco, no Rio de Janeiro, presenciado por ele durante uma caminhada nos arredores do Posto Seis: dois militares amontoavam poucos paralelepípedos com o objetivo, declarado, de impedir o possível avanço de tanques do Primeiro Exército. Dali em diante, ele, que nunca foi simpático ao governo de João Goulart, e não se interessava pela política nacional, passou a ser perseguido duramente pela ditadura militar. Não é possível que alguém queira, conscientemente, reviver aqueles tempos.

* Artigo semelhante publicado no site www.infobrazil.com — em inglês — intitulado “Lula’s Authoritarian Faux Pas: A Legal Perspective” (16/5/4).

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