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Supremo analisa pena para crime de atentado violento ao pudor

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16 de maio de 2004, 11h19

Condenado por crime de atentado violento ao pudor pode ser beneficiado com a progressão de regime? A questão será decidida, em breve, pelo Supremo Tribunal Federal, que julgará o Habeas Corpus 82.959, originário de São Paulo.

O pedido ataca acórdão firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, que determinou o cumprimento da pena em regime integralmente fechado, por classificar o crime como hediondo.

O condenado por atentado violento ao pudor contra uma menor de 14 anos pede a progressão de regime. Ele alega que o crime que cometeu não pode ser classificado como hediondo. Isso porque, do ato criminoso, não resultou lesão corporal grave nem morte da vítima.

Até agora, o placar no STF está apertado. O pedido de progressão de regime é concedido por três votos a dois. A favor estão os ministros Marco Aurélio, relator do HC, Carlos Britto e Cezar Peluso. Contra, Carlos Velloso e Joaquim Barbosa. Agora, o processo está no gabinete do ministro Gilmar Mendes, que pediu vista.

Em seu voto (leia a íntegra abaixo), o ministro Cezar Peluso, além de conceder a progressão de regime, ainda afasta o aumento da pena imposta ao condenado. Para ele, o crime de atentado violento ao pudor, na forma simples, não é crime hediondo.

Dessa forma, diz o ministro, não se aplica “o regime jurídico próprio a estes crimes e sequer a causa de aumento de pena”.

Leia a íntegra do voto de Cezar Peluso

HABEAS CORPUS 82959 SÃO PAULO 11

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

PACIENTE (S): OSEAS DE CAMPOS

IMPETRANTE (S): OSEAS DE CAMPOS

COATOR (A/S): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

MINISTRO CEZAR PELUSO

VOTO-VISTA

1.O paciente/impetrante foi acusado da prática do delito previsto no artigo 214, c/c arts. 224, § 1o, I, 226, III e 71, todos do Código Penal. Condenado, interpôs apelação, julgada pela 1a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que lhe deu parcial provimento para reduzir a pena fixada a 12 anos e 3 meses de reclusão, mas mantendo o regime integral fechado para o seu cumprimento (fls 23).

Em writ impetrado perante o Superior Tribunal de Justiça (HC n° 23.920), argumentou o impetrante que o crime pelo qual fora condenado não poderia ser considerado hediondo, já que dele não resultara lesão corporal grave nem morte, tendo sido praticado apenas com violência presumida. Sustenta, outrossim, a inconstitucionalidade do artigo 2o, § 1o, da Lei n. 8.072/90, que veda a progressão de regime, acrescentando, em alternativa, não obstante, que este dispositivo teria sido derrogado pela Lei n. 9.455/97.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça indeferiu a ordem nos termos do voto do e. Min. VICENTE LEAL, em acórdão que recebeu a seguinte ementa:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS-CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. INEXISTÊNCIA DE LESÃO CORPORAL GRAVE OU MORTE. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. CRIME HEDIONDO. REGIME INTEGRALMENTE FECHADO. ART. 2O, § 1O, LEI 8.072/90. CONSTITUCIONALIDADE. NÃO REVOGAÇÃO PELA LEI 9.455/97.

– A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, nas suas formas qualificadas ou simples, ou seja, mesmo que deles não resulte lesão corporal grave ou morte, e ainda que praticados mediante violência presumida, são considerados hediondos, devendo as suas respectivas penas serem cumpridas em regime integralmente fechado, por aplicação do disposto no artigo 2o, § 1o, da Lei 8.072/90.

– E na linha do pensamento predominante no Supremo Tribunal Federal, consolidou, majoritariamente, o entendimento de que a Lei n. 9.455/97, que admitiu a progressão do regime prisional para os crimes de tortura, não revogou o art. 2o, § 1o, da Lei n. 8.072/90, que prevê o regime fechado integral para os chamados crimes hediondos.

– É firme o posicionamento desta Corte, em consonância com a jurisprudência do STF, no sentido da compatibilidade da norma do art. 2o, § 1o, da Lei 8.072/90 com a Constituição Federal.

Habeas-corpus denegado.” (DJ de 17/02/2003).

É contra este v. acórdão que se insurge agora o impetrante, reclamando, conforme relatório do e. Min. Marco Aurélio, Relator, que o ato praticado deveria ser considerado obsceno, e não, atentado violento ao pudor; que a violência presumida contra menor de quatorze anos não qualificaria o crime como hediondo; que há ausência de fundamentação no acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça; que há impossibilidade de aumento da pena em um sexto, por não revelar a espécie crime continuado; que é incoerente a admissão de progressão de regime no cumprimento de pena por crime de tortura e não nos crimes hediondos.

Remete-se a julgados do Superior Tribunal de Justiça segundo os quais “os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, na modalidade ficta (com violência presumida) não são considerados crimes hediondos” (HC 9345; HC n° 11.537; RESP 203.580), e a Lei n° 9.455/97 alcança a pena dos crimes previstos na Lei n. 8.072/90, autorizando a progressão no regime de seu cumprimento (HC n° 10.658).

Solicitadas informações, o Superior Tribunal de Justiça enviou cópia integral do acórdão referente ao HC n° 23.920.

O parecer da Procuradoria Geral da República é pelo indeferimento da ordem.

Em sessão plenária, já votaram os ministros MARCO AURÉLIO, relator, CARLOS VELLOSO e CARLOS BRITTO. O relator, no sentido da concessão da ordem por não ser hediondo o crime de atentado violento ao pudor na forma simples restando, assim, prejudicada a questão referente à vedação de progressão de regime. O min. CARLOS VELLOSO, em antecipação de voto, é pelo indeferimento, nos termos do precedente da Corte no HC n° 81.288. O min. CARLOS BRITTO é pelo deferimento, quanto à declaração de inconstitucionalidade do §1o do artigo 2o da Lei n° 8.072/90, enquanto veda progressão de regime.

2.Pedi vista dos presentes autos para um exame mais cauteloso da matéria referente a ser ou não o crime de atentado violento ao pudor, na forma simples, considerado hediondo, e da vedação da progressão de regime.

3.Quanto à primeira questão, deve-se atentar na evolução no trato legislativo do crime de atentado violento ao pudor.

Na redação original do Código Penal, a pena cominada ao crime previsto no artigo 214 era a de reclusão de 2 a 7 anos.

Com a edição da Lei n° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), foi-lhe acrescentado um parágrafo único para punir mais severamente o autor do crime, quando praticado em prejuízo de vítima menor de 14 (quatorze) anos, caso em que e pena seria de 3 a 9 de reclusão.

A entrada em vigor desta lei foi protraída no tempo (13/10/90) e, durante a vacatio, veio a lume a Lei n° 8.073/90 – Lei dos Crimes Hediondos, que, no artigo 6°, determinou o aumento dos limites máximo e mínimo da pena do crime de atentado violento ao pudor na forma simples, os quais passando ser de 6 a 10 anos de reclusão. (1) Esta lei entrou em vigor em 25/07/90 e, em vários dispositivos, tratou do crime de atentado violento ao pudor, verbis:

Art. 1o. São considerados hediondos os crimes de …; atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); (…).

Art. 6o. Os arts. …; 213, 214, 223, caput e seu parágrafo único; … passam a vigorar com a seguinte redação.

Art. 9o. As penas fixadas no artigo 6o para os crimes capitulados nos artigos … 214 e sua combinação com o artigo 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de 30 (trinta) anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 (2) também do Código Penal.

A pena originária para o crime de atentado violento ao pudor foi, assim, triplicada em seu mínimo legal.

O aparente conflito entre as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e aquelas previstas na Lei dos Crimes Hediondos resolveu-se, não sem considerável controvérsia, pelo entendimento de revogação tácita dos parágrafos acrescidos aos artigos 213 e 214 do Código Penal, que acabaram sendo expressamente revogados pela Lei n. 9.281/96.

Antes desta revogação expressa e em virtude da controvérsia vigente, foi editada a Lei n° 8.930/94, que deu nova redação ao artigo 1o da Lei n° 8.072/90, alterando a redação originária do artigo 1o, que passou a ter a seguinte redação, no que nos interessa:

“Art. 1o. São considerados hediondos os seguintes crimes,

todos tipificados no Dec.-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:

VI – atentado violento ao pudor (art. 214 (3) e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único (4))”.

Não houve alteração substancial no que tange à matéria sub judice.

No presente caso, o paciente foi condenado pelo crime definido no artigo 214 combinado com o disposto no artigo 224, letra “a”, ambos do Código Penal, ou seja, na modalidade de violência presumida ou ficta em razão da menoridade da vítima. Ou seja, a condenação deu-se pela prática do crime de atentado violento ao pudor na forma simples (art. 214 do CP). Tal crime não poderia ser considerado hediondo, segundo sustenta o Impetrante, à medida que o inciso VI do artigo 1o da Lei n° 8.072/90 somente teria atribuído tal qualidade às formas qualificadas do atentado violento ao pudor, ou seja, àquelas descritas no artigo 223, caput e parágrafo único, do Código Penal, o mesmo sucedendo com a causa de aumento de pena prevista no artigo 9° da Lei n° 8.072/90.

Esta questão já foi tema de aceso debate nesta Suprema Corte, merecendo análise o acórdão do Plenário nos autos do HC n° 81.288-1, relator para acórdão Min. CARLOS VELLOSO, julgado em 17.12.2001, que é tido como precedente decisivo na matéria.

Nesse julgamento, vencidos os Ministros MAURÍCIO CORRÊA, SEPÚLVEDA PERTENCE, NÉRI DA SILVEIRA e MARCO AURÉLIO, decidiu-se que:

“Os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, tanto nas suas formas simples – Código Penal, arts. 213 e 214 – como nas qualificadas (Código Penal, art. 223, caput e parágrafo único), são crimes hediondos. Leis 8.072/90, redação da Lei 8.930/94, art. 1o, V e VI.” (HC 81.228, j. 17/12/2001, DJ 25.04.2003).

A tese ao final vencedora contou com os votos dos Min. CARLOS VELLOSO, ELLEN GRACIE, ILMAR GALVÃO, NELSON JOBIM, SYDNEY SANCHES, CELSO DE MELLO e MOREIRA ALVES.

A discussão centrou-se, basicamente, no valor semântico dado à conjunção “e” constante do inciso VI do artigo 1o da Lei n° 8.072/90: “atentado violento ao pudor (art. 214 sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)”.

Para a douta maioria, a conjunção “e”, coordenativa aditiva, daria a idéia de soma e, como tal, indicara que tanto o atentado violento ao pudor na forma simples quanto o qualificado por morte ou lesão corporal grave seriam considerados hediondos para os fins das disposições contidas na Lei n° 8.072/90.

O entendimento seria reforçado pelo fato de que o disposto no artigo 6o da Lei n° 8.072/90 (que aumentou a pena originariamente prevista para os crimes de estupro e atentado violento ao pudor na redação do Código Penal), aumentando as penas tanto das figuras simples quanto das qualificadas, estaria a predicar que a conjunção “e”, nos incisos V e VI do art. 1o, tem o sentido de soma, acréscimo (fls. 281-2).

Por outro lado, quando o legislador quis considerar hediondos somente as figuras qualificadas de alguns delitos (v.g., extorsão, roubo, epidemia), fê-lo de forma clara. No caso do estupro e do atentado violento ao pudor, porém, a adjetivação de hediondo estendeu-se às duas formas: simples e qualificada (fls. 285 e 305). Além disso, excetuado o próprio homicídio, não haveria, no Código Penal, conduta mais agressiva e nefasta do que as acima referidas (fls. 285).

Os votos vencidos professaram, todavia, que as normas incriminadoras se sujeitam a interpretação estrita, vedadas analogia e interpretação extensiva em prejuízo do acusado (fls. 267):

“ainda que se desenvolva raciocínio adstrito à interpretação literal, exsurge que a conjunção e, contida na expressão ‘e sua combinação com’ estampada no inciso V do artigo 1o da Lei dos Crimes Hediondos, equivale e dizer ‘combinado com’. Não havendo combinação com a qualificadora que define a hediondez, o delito simples não pode ser considerado hediondo.” (Min. MAURÍCIO CORRÊA, fls.268)

Isto porque:

“não se mostra razoável, ante a axiologia jurídico-penal, que uma ação delitiva na figura simples, punível com reclusão de 6 a 10 anos, seja considerada como da mesma natureza hedionda atribuída à sua forma qualificada, também punível com reclusão que varia de 8 a 12 anos (quando resulta lesão corporal grave) e de 12 a 25 anos (quando resulta morte)” (Min. MAURÍCIO CORRÊA, fls. 269).

Precedentes citados: HC n° 80.353, Min. MAURÍCIO CORRÊA, HC n° 80.479 e HC n° 80.223, rel. Min. NELSON JOBIM, HC n° 78.305-4, rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA.

Como bem ponderou o Min. MAURÍCIO CORRÊA, em seu voto vencido:

“De qualquer sorte, é regra básica de hermenêutica que a lei não contém palavras inúteis. Se a norma tencionasse qualificar como hedionda qualquer espécie de estupro, teria feito referência apenas e tão-somente ao tipo com a indicação isolada, entre parênteses, do dispositivo penal – estupro (art. 213) –, tornando-se absolutamente desnecessária a explicação que acompanha, na lei vigente, o nomen iuris estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, ‘caput’ e parágrafo único)” (fls.273, grifei).

O Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, igualmente vencido, ponderou:

“Não consigo entender, para incluir mais um delito nesse rol infeliz dos crimes hediondos, ser necessário fazer referência – ainda que com uma redação, confesso, infeliz – à forma qualificada de um delito, se a forma simples já merecesse o fogo do inferno dos crimes hediondos.” (323, grifei)

O Min. MARCO AURÉLIO aduziu:

“numa interpretação para mim teleológica e sistemática, que a Lei n° 8.072/90 somente enquadra como hediondo os crimes de estupro e o de atentado violento ao pudor quando cometidos com grave lesão ou seguidos de morte. Ao assim proceder, considerei a própria lei mencionada e, mais do que isso, a ordem natural das coisas, a impossibilidade de colocar, na mesma vala, o atentado violento ao pudor e o estupro – sem a grave lesão, sem a morte – e os crimes com essas qualificadoras. Não há como dar aos preceitos interpretação que leve à incoerência – o homicídio simples não é crime hediondo, mas o atentado violento ao pudor, sem as ocorrências citadas, o é” (fls. 338, grifei).

DV, tenho que a interpretação acertada é a que reputa hediondo somente o atentado violento ao pudor – raciocínio que se estende ao crime de estupro – qualificado pelo resultado morte ou lesão corporal.

A leitura do rol dos crimes considerados hediondos mostra-nos que o legislador reservou tratamento mais severo, na maior parte das hipóteses, às formas mais graves dos delitos que previu:

a) crime de homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 1o, I);

b) latrocínio, que é figura qualificada pelo resultado do crime de roubo (art. 157, § 3o, in fine, do CP) (art. 1o, II);

c) extorsão qualificada pela morte (art.1o, III);

d) extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 1o, IV);

e) epidemia com resultado morte (art. 1o, VII);

f) falsificação, corrupção, adulteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 1o, VII-B).

Quanto aos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, guardou o nomen iuris do crime, abrindo, em seguida, parêntese para especificar, nos dois casos e após remissão aos respectivos artigos do Código Penal (arts. 213 e 214), “e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único.”

Alberto Silva Franco, apoiando-se nos ensinamentos do Des. Geraldo Roberto de Souza, entende que as figuras simples, tanto do estupro como do atentado violento ao pudor, não foram considerados crimes hediondos pela Lei n° 8.072/90, verbis:

“E sobram razões no sentido desse entendimento, conforme considerações feitas pelo Des. Geraldo Roberto de Souza, do Tribunal de Justiçado Estado de São Paulo, nesses termos:

‘(…)

Já houve interpretação no sentido de que o tipo básico (estupro e atentado violento ao pudor) também deva ser considerado crime hediondo. Não é a melhor exegese. O legislador, nesse caso, deixou antes e fora dos parênteses só o nomen iuris (estupro, atentado violento ao pudor); abriu imediatamente o parêntese, significando que introduziu esclarecimento, explicação a esses termos, obviamente por não lhe bastar a citação pura e simples do nomen iuris do tipo penal. Aberto o parêntese, o legislador menciona os números dos artigos (213 e 214, respectivamente), mas não é só o que pretende explicar, pois acrescenta ´e sua combinação com o art. 223, ‘caput’ e parágrafo único’. A novidade é esta expressão grifada, que formalmente (e em virtude da conjunção aditiva e) parece somar aos arts. 213 e 214 as formas qualificadas do caput do art. 223 (resultado: lesão corporal grave) e do parágrafo único (resultado: morte). Mas na verdade a nova expressão é conceitualmente a mesma que combinado com, muito mais usada na linguagem jurídica, tanto na doutrina, como na jurisprudência e na lei. Não se trata, portanto, de coordenação entre substantivos, mas de verdadeira subordinação de categorias diversas. O fato mesmo de o legislador não ter aposto o termo caput ao número dos artigos 213 e 214, como fez antes no inciso IV com o art. 159 e agora faz com o art. 223; e de não ter acrescido ao nomen iuris a expressão e na forma qualificada, antes e fora do parêntese, como antes fez no inciso IV, denota que não está relacionando com o tipo básico (estupro e atentado violento ao pudor) as formas qualificadas do art. 223 e do seu parágrafo único, como se fossem figuras somadas, mas, ao contrário, está integrando a redação do tipo básico com as orações subordinadas que compõem o caput e o parágrafo único do art. 223, assim: ‘Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência, pena tal, se da violência ou do fato resulta respectivamente lesão corporal de natureza grave ou morte’. Em suma, aquele e sua combinação com, a saber, a combinação do teor do tipo básico com o teor de suas formas qualificadas, vale o mesmo que ‘extorsão qualificada’ (substantivo adjetivado), como se o legislador tivesse redigido ‘estupro combinado com’ ou ‘estupro qualificado’ (substantivo + adjetivo), figura una.

Não importa que a redação original no art. 1o da Lei 8.072/90 tenha escrito caput em seguida ao art. 213. Já não escrevera em seguida ao art. 214. Sua aposição hoje seria até indevida, porque esses artigos estão sem incisos e sem parágrafo. É verdade que, à época da redação original do art. 1o da Lei 8.072/90, os arts. 213 e 214 apresentavam um parágrafo único, que foi revogado em 1996, mas o que conta é a redação atual e a interpretação de que o e depois dos arts. 213 e 214, na Lei dos Crimes Hediondos, não soma as formas qualificadas ao tipo básico, mas apenas participa de redação inovadora, que substitui a forma mais corrente e usual de ‘combinado com’ ou mesmo ‘qualificado’, por ‘e sua combinação com’.

De outra parte, é indiferente que o art. 9o da Lei 8.072/90 tenha mantido o termo caput depois do art. 213. As considerações acima se sustêm, mesmo porque não teria cabimento que um dispositivo que apenas determina uma causa de aumento de pena (art. 9o) viesse modificar a classificação dos crimes hediondos estabelecida por artigo específico (o art. 1o), tão-só por inadvertência de sua redação que deveria ter sido igualmente alterada pela Lei 8.930/94, como foi o art. 1o da Lei 8.072/90.’

Aliás, o Superior Tribunal de Justiça tem interpretado, de forma quase pacífica, que o art. 9o da Lei 8.072/90 só é aplicável em relação ao estupro qualificado pelo resultado e não ao estupro simples, o que significa que aquele é hediondo e este não exibe esse rótulo (…).”(5)

O que me reforça o convencimento e, desde o princípio, me relevou a atenção, foi a combinação de duas circunstâncias. A primeira, a imperatividade da interpretação restrita de normas que reduzam a amplitude de direitos fundamentais, in casu a liberdade individual, sobretudo daquelas que instituem o mais rigoroso regime jurídico-penal vigente no país, as da Lei n° 8.072/90. A segunda, o fato mesmo de a discussão acerca de ser ou não o atentado violento ao pudor hediondo gerar tantos debates, decisões frontalmente opostas e, ainda que vencedora, na época, uma das correntes dentro desta Corte Constitucional, não o foi com base na unanimidade. O acórdão proferido no autos do HC n° 81.288, acima analisado, desenvolveu-se por longas setenta e sete páginas.

4.De todo modo, a questão não se resume ao disposto no inciso VI, do artigo 1o, da Lei n. 8.072/90, mas alcança, ainda, a questão da aplicabilidade da causa de aumento da penas prevista no artigo 9° da mesma lei, ao crime de atentado violento ao pudor.

Dispõe a norma:

Art. 9o. As penas fixadas no artigo 6o para os crimes capitulados nos artigos … 214 e sua combinação com o artigo 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de 30 (trinta) anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 (6) também do Código Penal.

Tal causa de aumento da pena, pelas mesmas razões, aplica-se tão-somente ao crime de atentado violento ao pudor qualificado pelo resultado (morte ou lesões corporais graves), ou, o que é dizer o mesmo, somente quando seja praticado o crime descrito no artigo 214, combinado com o artigo 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal.

5.Sustenta o impetrante, ainda, a inconstitucionalidade do artigo 2o, § 1o, da Lei n° 8.072/90, (7) que veda a progressão de regime, sem prejuízo da alternativa de que o dispositivo teria sido revogado pela Lei n° 9.455/97.

O texto é o seguinte:

“Art. 2o. Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:

I – anistia, graça e indulto;

II – fiança e liberdade provisória;

§ 1o. A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.

§ 2o. Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.” (grifei)

Em 1992, o Plenário desta Corte fixou precedente no julgamento do HC n° 69.657-SP, que recebeu a seguinte ementa:

HABEAS CORPUS. LEI DOS CRIMES HEDIONDOS. PENA CUMPRIDA NECESSARIAMENTE EM REGIME FECHADO. CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 2. PAR. 1. DA LEI 8072.

Tráfico ilícito de entorpecentes. Condenação, onde o artigo 2o, § 1o da Lei 8.072/90, dos crimes hediondos, impõe o cumprimento da pena necessariamente em regime fechado. Não há inconstitucionalidade em semelhante rigor legal, visto que o princípio da individualização da pena não se ofende na impossibilidade de ser progressivo o regime de cumprimento da pena: retirada a perspectiva da progressão frente à caracterização legal da hediondez, de todo modo tem o juiz como dar trato individual à fixação da pena, sobretudo no que se refere à intensidade da mesma.

Habeas corpus indeferido por maioria.

Nesse julgamento, ficaram vencidos o relator, Min. MARCO AURÉLIO e o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Relator para o acórdão Min. FRANCISCO REZEK que foi acompanhado por MOREIRA ALVES, NÉRI DA SILVEIRA, OCTAVIO GALLOTTI, PAULO BROSSARD, CELSO DE MELLO, CARLOS VELLOSO e ILMAR GALVÃO. Pres. do Min. SYDNEY SANCHES.

A tese vencedora subtraiu ao âmbito do princípio da individualização da pena o momento da execução, limitando-o ao ato da dosimetria.

Vencido, o Min. MARCO AURÉLIO ponderou, a meu juízo, com razão, que, verbis:

“Assentar-se, a esta altura, que a definição do regime e modificações posteriores não estão compreendidas na individualização da pena é passo demasiadamente largo, implicando restringir garantia constitucional em detrimento de todo um sistema e, o que é pior, a transgressão a princípios tão caros em um Estado Democrático como são os da igualdade de todos perante a lei, o da dignidade da pessoa humana e o da atuação do Estado sempre voltada ao bem comum. A permanência do condenado em regime fechado durante todo o cumprimento da pena não interessa a quem quer que seja, muito menos à sociedade que um dia, mediante o livramento condicional ou, o mais provável, o esgotamento dos anos de clausura, terá necessariamente que recebê-lo de volta, não para que este torne a delinqüir, mas para atuar como um partícipe do contrato social, observados os valores mais elevados que o respaldam.

Por último, há de se considerar que a própria Constituição Federal contempla as restrições a serem impostas àqueles que se mostrem incursos em dispositivos da Lei 8.072/90 e dentre elas não é dado encontrar a relativa à progressividade do regime de cumprimento da pena.” (fls. 420)

E advertiu o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, igualmente vencido:

“De nada vale individualizar a pena no momento da aplicação, se a execução, em razão da natureza do crime, fará que penas idênticas, segundo os critérios da individualização, signifiquem coisas absolutamente diversas quanto à sua efetiva execução.

E não ilide essa minha convicção o inciso XLVIII do artigo 5o, que diz respeito ao estabelecimento penitenciário em que se cumprirá a privação da liberdade e não às formas alternativas do aprisionamento propiciadas pelo regime legal de progressão da penas.” (437).

O entendimento vencedor tampouco escapou à censura doutrinária. MARIA LÚCIA KARAM foi incisiva a respeito:

“Os argumentos, acenados pela corrente que se tornou prevalecente no Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o princípio da individualização se satisfaria e se esgotaria na definição da quantidade da pena, não impedindo que o legislador ordinário retirasse do juiz qualquer discricionariedade na fixação do regime prisional, simplesmente excluem a execução da pena privativa de liberdade do alcance daquele princípio.

Com isso, subtrai-se campo de atuação à norma constitucional, assim, inquestionavelmente, sendo-lhe retirada eficácia, para permitir ao legislador ordinário uma regulação da execução da pena privativa de liberdade à margem da ordem constitucional, como se, exatamente ali, onde a pena encontra seu momento de maior concreção, fosse autorizado ao legislador ordinário ignorar a particularização operada na pena concretamente imposta, para, com disposições de caráter genérico, retornar ao momento anterior de sua cominação abstrata, como se o comando constitucional que lhe determina assegurar a individualização da pena pudesse, exatamente neste momento de maior concreção, de maior personalização, ser pura e simplesmente afastado.” (8)

A Constituição Federal, ao criar a figura do crime hediondo, assim dispôs no artigo 5o, XLIII:

“a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. (grifei)

Excepcionou, portanto, de modo nítido, da regra geral da liberdade sob fiança e da possibilidade de graça ou anistia, dentre outros, os crimes hediondos, vedando-lhes apenas com igual nitidez: a) a liberdade provisória sob fiança; b) a concessão de graça; c) a concessão de anistia.

Não fez menção nenhuma a vedação de progressão de regime, como, aliás – é bom destacar e lembrar -, não o fez tratamento penal stricto sensu (sanção penal) mais severo, quer no que tange ao incremento das penas, quer no tocante à sua execução.

Preceituou, antes, em 2 incisos seguintes:

“XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes (…);

XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”. (grifei)

É, pois, norma constitucional que a pena deve ser individualizada, ainda que nos limites da lei e que sua execução em estabelecimento prisional deve ser individualizada, no mínimo, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado.

Evidente, assim, que, perante a Constituição, o princípio da individualização da pena compreende: a) proporcionalidade entre o crime praticado e a sanção abstratamente cominada no preceito secundário da norma penal; b) individualização da pena aplicada em conformidade com o ato singular praticado por agente em concreto (dosimetria da pena); c) individualização da sua execução segundo a dignidade humana (artigo 1°, III, CF), o comportamento do condenado no cumprimento da pena (no cárcere ou fora dele, no caso das demais penas que não a privativa de liberdade) e a vista do delito por ele cometido (art. 5o, XLVIII, CF, acima transcrito).

Logo, tendo predicamento constitucional o princípio da individualização da pena (em abstrato, em concreto e em sua execução), qualquer exceção somente poderia ser aberta por norma de igual hierarquia normalógica.

“A imposição de um regime único e inflexível para o cumprimento da pena privativa de liberdade”, no escol de MARIA LÚCIA KARAM, “com a vedação da progressividade em sua execução, atinge o próprio núcleo do princípio individualizador, assim, indevidamente retirando-lhe eficácia, assim indevidamente diminuindo a razão de ser da norma constitucional que, assentada no inciso XLVI do art. 5o da Carta de 1988, o preconiza e garante”. (9)

Já sob este aspecto, falta legitimidade à norma inserta no § 1o do artigo 2o da Lei n. 8.072/90.

Mas não é só.

Quando o constituinte reservou o tratamento excepcional (no sentido mesmo de exceção) para os crimes hediondos, não lhes vetou progressão de regime (forma de individualização da execução da pena) nem impôs outra restrição à incidência da regra da individualização.

J.J. GOMES CANOTIILHO ao lecionar acerca do regime das leis restritivas de direitos fundamentais ensina que ele passa por três instâncias: 1a. delimitação do âmbito de proteção da norma; 2a. averiguação do tipo, natureza e finalidade da restrição; e, 3a. controle da observância dos limites estabelecidos pela Constituição às leis restritivas (problema do limite de limites). (10)

Tais instâncias funcionam como critérios de interpretação-aplicação das normas restritivas de direitos, liberdades e garantias.

Dentro do âmbito da 3a instância – limite de limites – enquadra-se a exigência de autorização de restrição expressa que, nas palavras do eminente constitucionalista português, “tem como objectivo obrigar o legislador a procurar sempre nas mesmas normas constitucionais o fundamento concreto para o exercício de sua competência de restrição de direitos, liberdades e garantias, e criar segurança jurídica nos cidadãos, que poderão contar com a inexistência de medidas restritivas de direitos fora dos casos expressamente considerados pelas normas constitucionais como sujeitos a reserva de lei restritiva.” E, acrescenta, “a exigência de autorização constitucional expressa visa exercer uma função da advertência (Warnfunktion) relativamente ao legislador, tornando-o consciente do significado e alcance da limitação de direitos, liberdades e garantias, e constituir uma norma de proibição, pois sob reserva de lei restritiva não se poderão englobar outros direitos salvo os autorizados pela Constituição.” (11)

A autorização constitucional para a restrição de direitos deve, pois, ser observada à risca pelo legislador pena de entrar em contraste com a Constituição.

De modo que resiste a tal exigência a vedação de progressão de regime prevista no dispositivo controverso que deve, por ambos os fundamentos, ser declarado inconstitucional.

Ademais, conforme acentuado por ALBERTO SILVA FRANCO, “o sistema progressivo é, em verdade, o precipitado lógico, a decorrência natural, o resultado prático de alguns princípios constitucionais inseridos na Constituição Federal. É o ponto de interseção em que se conectam os princípios da legalidade, da individualização e da humanidade da pena.” (12) “O princípio da individualização da pena”, prossegue, “garante, em resumo, uma pena particularizada, pessoal, distinta e, portanto, inextensível a outro cidadão, em situação fática igual ou assemelhada.” (13) E, pondera, “mais importante do que a sentença em si é o seu cumprimento, porque é na execução que a pena, cominada em abstrato pelo legislador e ajustada pelo juiz à situação singular, encontra o seu momento de maior concreção. É aí que o processo de individualização chega à sua derradeira etapa: a da pena real que adere, de modo definitivo, à pessoa do condenado.” (14)

E ensina, ainda, que os objetivos do sistema progressivo de execução da pena – parte essencial da individualização da mesma – tem triplo objetivo: “a) a diminuição gradativa do tônus da pena; b) o estímulo à boa conduta, e c) a obtenção paulatina da reforma moral do recluso e sua conseqüente preparação para a vida em liberdade.” (15)

E conclui, em nosso entender, acertadamente, que “excluir, portanto, o sistema progressivo, também denominado ‘sistema de individualização científica’, da fase de execução é impedir que se faça valer, nessa fase, o princípio constitucional da individualização da pena. Lei ordinária que estabeleça regime prisional único, sem possibilidade de nenhuma progressão atenta, portanto, contra tal princípio, de indiscutível embasamento constitucional.” (16)

Deveras, a aniquilação do sistema progressivo conflita com o princípio da humanidade da pena (art. 5o, III, XLVII e LXIX, da CF) transformando sua finalidade “numa resposta estatal que paga o mal causado com um mal, de igual ou superior intensidade, dela eliminando não apenas qualquer intento ressocializador (que pode ter expressão até na tentativa de evitar um processo dessocializador), mas também o mínimo ético que é exigível na execução penal.” (17)

O mesmo entendimento é perfilhado por TUPINAMBÁ PINTO DE AZEVEDO que arrola os dois principais fundamentos em prol da inconstitucionalidade do dispositivo sub examen, verbis:

“a) norma constitucional que cerceia direitos ou garantias deve ser interpretada restritivamente, inclusive pelo legislador ordinário;

b) o princípio da individualização da pena deve ser observado também na fase de execução, sendo absolutamente ilegítima a consideração de fato delituoso para fins de concessão dos benefícios executórios.” (18)

Acresça-se que o Pacto de São José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992, não só veda a submissão de qualquer pessoa a penas desumanas ou degradantes (art. 5, n.2) como fixa os escopos que devem orientar a disciplina legal e a execução das penas privativas de liberdade, verbis:

“As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados.” (art. 5, n° 6).

Independentemente do grau hierárquico que na escala normalógica se atribua aos dispositivos oriundos de tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil – refiro-me ao significado do disposto no § 2o do artigo 5° da Constituição Federal – , o fato é que a norma é posterior à Lei n° 8.072/90 e se mostra de todo incompatível com seu artigo 1o, § 1o, em sendo evidente que a proibição da progressão de regime impede a reforma e a readaptação social dos condenados.

É bom não esquecer ainda que a Lei de Execuções Penais (Lei n° 7.210/84), no artigo 1°, estatui que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (grifei).

ALBERTO ZACHARIAS TORON, em percuciente análise crítica da Lei n. 8.072/90, aponta a contrariedade entre a disciplina da Lei n. 8.092/90 e os princípios que regem a execução penal em nosso ordenamento jurídico. Ao analisar as restrições às medidas penais previstas na lei (elevação das penas – inclusive do estupro e do atentado violento ao pudor – e supressão do regime progressivo), afirma que:

“apontam para um reforço da retribuição fora dos marcos da proporcionalidade quando se comparam os novos patamares punitivos estabelecidos pela lei em estudo, com as penas fixadas para outros delitos. Dessa maneira, impondo-se uma reprimenda em todos os sentidos severa, veicula-se no âmbito da sociedade uma visão de rigor que, ao mesmo tempo, deveria atuar como contra-estímulo a novas ações delitivas.” E, arremata, “no plano do agente criminoso e a despeito do Pacto de São José da Costa Rica, despreza-se por inteiro a prevenção positiva, pois, ao se expungir o sistema progressivo, prestigiou-se a custódia com efeito neutralizador. Vale dizer, descrendo-se da ressocialização, joga-se na única coisa aparentemente certa: enquanto preso, o delinqüente não ameaça os bens juridicamente protegidos e, enfim, preserva-se a paz social.” (19)

Tão incongruente com o princípio da individualização da pena, da readaptação dos condenados, tão ilógica e irracional se desnuda a disciplina instaurada com a Lei dos Crimes Hediondos, que, hoje, temos situação inusitada: o condenado por crimes hediondos não pode progredir no regime, mas pode obter livramento condicional, tanto que cumpridos três quartos de sua pena (art. 83, V, CP – inciso inserido justamente pela Lei n. 8.092/90). (20) Ou seja, sem que se possa avaliar o seu grau de ressocialização e/ou proporcionar ao condenado condições para sua harmônica integração social por meio da progressão para regimes menos severos (semi-aberto e aberto), sai ele diretamente de estabelecimento prisional de segurança máxima (art. 3o da Lei n. 8.072/90) para as ruas!

Concluo: Nas palavras de LUIZ VICENTE CERNICCHIARO: “Só se aprende a viver em sociedade vivendo na sociedade!” (21)

5.Diante destas considerações, tenho por prejudicada a questão da derrogação do § 1o do artigo 2o da Lei n. 8.072/90 pela Lei n. 9.544/97.

6.Mas outra questão, não tratada no voto do ilustre Relator, chamou-me a atenção. Trata-se da aplicação (cf. fls. 23 = 62 xerocopiada), ao crime praticado pelo paciente, da causa de aumento de pena prevista no artigo 226, III, do Código Penal, verbis:

“Art. 226. A pena é aumentada da quarta parte:

II – se o agente é casado”.

Conforme observou Nelson Hungria, à luz da regra constitucional de indissolubilidade, “a razão da majorante está na impossibilidade, por parte do agente, de reparar o mal pelo subseqüente matrimônio. Como acertadamente adverte Noronha, a especial agravante subsiste ainda no caso de ser o agente desquitado, pois o desquite não rompe o vínculo conjugal”. (22)

Ocorre que, desde 1977, com a admissibilidade constitucional do desfazimento do vínculo, incorporada ao novo Código Civil (art. 1.571), o simples fato de ser o agente casado já não impede, por si só, a reparação do mal por casamento, Tendo-se esvaído a ratio iuris.

A questão que se propõe, então, é esta: continua a viger a norma com a mudança do ordenamento?

Receio que não.

Relativamente ao bem jurídico tutelado pelas normas incriminadoras, descritas nos artigos 213 a 222, qual seja, a liberdade sexual, ser o agente casado não implica exacerbação do dano causado à vítima, i.é, ofensa mais grave ao interesse tutelado, ou, na concepção de 1940, nem impossibilidade de repará-lo (aliás, concepção eminentemente patriarcal, centrada na idéia de que a reparação do crime de estupro, por exemplo, se adscreveria ao casamento do agente com a vítima).

Por outro lado, as demais hipóteses de causa de aumento da pena previstas no mesmo dispositivo – ser o crime cometido com o concurso de duas ou mais pessoas (inc. I) e ser praticado por quem detenha título de autoridade sobre a vítima (ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou empregador, etc.) (inc. II) – guardam, sim, relação de pertinência com o objeto jurídico tutelado—a liberdade sexual de titularidade da vítima, assim porque agravam o dano causado à vítima (inc. I), como porque praticado o delito por pessoas que têm especial dever de proteção e vigilância relativamente ao bem jurídico tutelado, e ainda porque envolvem abuso de relação de confiança oriunda de vínculo familiar, civil ou profissional, colocando a vítima em situação de desvantagem (inc. II). (23)

Tais nexos lógico-normativos entre o bem jurídico tutelado e a causa de aumento da pena já não se encontram na base do aumento de pena previsto ao agente casado, cuja condição de per si, não exacerba o dano causado à vítima, não corrompe dever de proteção e vigilância, nem induz abuso de relação de confiança.

Poder-se-ia excogitar que o aumento de pena visa a tutelar, indiretamente, o dever de fidelidade conjugal, nos casos em que – como no caso do crime previsto no artigo 213 – sua prática importe violação deste dever.

O argumento é pobre. E é-o por várias razões: a) quando o crime supõe necessariamente conjunção carnal, configura-se, em concurso formal, o crime de adultério (art. 240, Código Penal), que já tutela de forma autônoma a violação do dever de fidelidade, não se revelando a seara dos crimes contra a liberdade sexual, própria à proteção desse vínculo; b) se se entendesse, doutro modo, a punição do autor via causa de aumento do art. 226, III, do Código Penal, seria sempre superior à pena prevista para o próprio crime de adultério (detenção, de 15 dias a 6 meses), (24) o que conduz à absurda situação na qual a circunstância de um crime conduziria a uma pena maior do que aquela prevista para a prática do crime em si; e, c) por outro lado, alguns dos crimes aos quais se aplicaria a causa de aumento não pressupõem violação do dever de fidelidade conjugal – como, por exemplo, o crime de assédio sexual (art. 216-A) e a corrupção de menores na modalidade de facilitação (art. 218), demonstrando que não é a tutela da fidelidade conjugal que está à base do aumento; c) Não poderia ser esta, então, racionalidade normativa da causa de aumento, até porque já há figura penal autônoma.

LUIS RÉGIS PRADO, em obra bastante recente, explica que, a par da impossibilidade de reparar o dano pelo casamento, a causa de aumento da pena teria sido instituída tendo “em consideração o fato de que o agente casado, mais do que o solteiro, tem o dever de ser guardião dos bons costumes, em nome dos interesses da sociedade, da qual sua própria família, como a da vítima, é parte integrante.” (25)

Objete-se desde logo que a entidade familiar, que recebe particular proteção constitucional, não se limita àquela formada em torno do casamento. Entidade familiar, antes, é hoje instituição que abarca não só o casamento, como a união estável e o grupo formado por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, CF). Assim, se fosse em atenção à integridade da família que se exigisse do agente ser o “guardião dos bons costumes”, certamente o dispositivo hospedaria insustentável discriminação e, como tal, não teria sido recebido pelo ordenamento jurídico vigente.

Poderia, então, o legislador instituir causa de aumento da pena com fundamento na exigência de ser o homem casado o “guardião dos bons costumes”, ou, em outros termos, o simples fato de o agente ser casado e praticar crimes contra a liberdade sexual de terceiro justificaria, maior reprovabilidade, por conta do vínculo conjugal e, pois, ampliação na restrição de sua liberdade? Ou, o que é o mesmo, o atentado violento ao pudor praticado por agente solteiro, ou divorciado, ou viúvo, é menos grave, ou menos reprovável, sob o ponto de vista da lesão sofrida pelo bem jurídico tutelado, do que aquele praticado por agente casado?

A questão remete-nos à separação entre Moral e Direito e, especialmente, entre Moral e Direito Penal, coisa legada pelo Iluminismo. A confusão entre Moral e Direito Penal, é bom lembrar, esteve à raiz de notórias aberrações, como a criminalização do homossexualismo. Aliás, foi exatamente em torno da confusão estabelecida entre direito penal, moral e religião que foram elaboradas as “teorias do bem jurídico-penal” – desde ANSELM VON FEUERBACH até CLAUS ROXIN –, hoje largamente desenvolvidas e aceitas pela doutrina e pela jurisprudência, nacional e estrangeira. (26)

Segundo recorda GIOVANNI FIANDACA, o renascimento dos estudos sobre o tema do bem jurídico na Alemanha Ocidental “foi, em grande parte, ocasionado pelos esforços de reforma dos delitos sexuais – isto é, de uma matéria que, de qualquer maneira, tornou-se o ‘locus classicus do interesse moderno sobre os limites do direito penal’ –, mas, também, dos delitos contra a religião – setor este não menos sintomático da demonstração do nível de secularização alcançado pelo instrumento penalístico.” (27)

A concepção iluminista e laica, de HOBBES, passando por LOCKE, BENTHAM, BECCARIA, MILL, BOBBIO e HART, baseia-se na separação entre Direito e Moral. “O direito, segundo esta tese, não é – não deve ser, pois a razão jurídica não o permite, nem a razão moral o pretende – um instrumento de reforçado da moral. O seu objectivo não é o de oferecer um braço armado à moral, ou melhor, dada a existência de várias concepções morais na sociedade, a uma determinada moral. O direito tem o dever, diferente e mais limitado, de assegurar a paz e a convivência civil, impedindo os danos que as pessoas podem causar umas às outras – ne cives ad arma veniant – sem lhes impor sacrifícios inúteis ou insustentáveis.” (28)

LUIGI FERRAJOLI, jusfilósofo italiano, discorre sobre as conseqüências dessa separação entre direito e moral:

“Podemos identificar esta segunda posição – a da separação axiológica entre direito e moral – com o primeiro postulado do liberalismo: ou seja, com o princípio do pluralismo moral e cultural que devemos admitir e tolerar na sociedade. Direito e moral, com base nela, não só são, como devem permanecer sistemas deontológicos separados. Todos estamos submetidos ao mesmo direito: é uma condição da igualdade e, antes ainda, da certeza e do próprio papel normativo do direito. Ao contrário, nem todos temos, e nem sequer devemos ter, numa sociedade liberal, as mesmas opiniões, ou crenças, ou valores morais ou culturais.

É nesta assimetria e nesta sua recíproca autonomia que se baseiam tanto o direito moderno como a ética moderna: por um lado, a moral laica fundada, em oposição à heteronomia do direito, na autonomia da consciência individual, ou seja, na tese metaética da separação da moral do direito, em virtude da qual o juízo moral sobre um facto é independente da sua qualificação jurídica; por outro, a secularização do direito e a laicidade do Estado baseadas na tese metajurídica da separação do direito da moral, em virtude da qual o direito positivo não somente é uma coisa diferente da moral, como nem sequer deve reflectir uma determinada moral, proibindo um comportamento como crime só porque é considerado pecado.

(…) O direito e o Estado, em virtude deste princípio, não encarnam valores morais e também não têm o dever de afirmar, apoiar ou reforçar a (ou uma determinada) moral ou a (ou uma determinada) cultura, mas apenas têm o dever de tutelar os cidadãos, garantindo os seus direitos. O Estado não tem portanto de se meter na vida moral dos cidadãos, defendendo ou impedindo estilos morais de vida, crenças ideológicas ou religiosas, opções ou atitudes culturais. O seu dever é apenas o de garantir a igualdade, a segurança e os mínimos vitais. (…) É precisamente nesta sua neutralidade moral, ideológica e cultural, e portanto na sua não invasão da vida privada das pessoas a não ser para proibir condutas que prejudiquem terceiros, que reside a laicidade do direito e do Estado liberal. Por isso mesmo, o direito penal foi o terreno no qual nasceu o liberalismo e ao mesmo tempo o Estado de Direito. Por isso, o princípio da ofensividade, como critério de justificação do que é punível, é um corolário do princípio liberal” . (29)

Constituindo-se a República Federativa do Brasil em Estado Democrático de Direito, laico, fundado na dignidade da pessoa humana (art. 1o, caput e inc. III) e na tolerância para com cultos, crenças, consciência e opinião (art. 5o, IV e VI), na medida em que não prejudiquem direitos alheios, não pode o direito positivo assumir, ou seja, impor coativamente aos cidadãos, determinada concepção moral ou “de bons costumes”, nem muito menos fazê-lo sob a ameaça de restrição a direito fundamental, que é a liberdade pessoal (art. 5o, caput). (30)

“Não devem”, ensina MIGUEL REALE JÚNIOR, “em um Estado de Direito Democrático constituir valores penalmente tutelados ou bens jurídico-penais convicções de cunho moral ou religioso, punindo-se por exemplo o homossexualismo ou a prática da quimbanda”. (31)

Vale a pena transcrever palavras de MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA CUNHA que, em primoroso estudo acerca das relações entre Direito Penal e Constituição, tratou dos limites que a adoção do Estado Democrático de Direito impõe ao Direito Penal, verbis:

“esta doutrina retira do conceito de Estado de direito, democrático e social, constitucionalmente consagrado, um princípio geral, de onde decorrem três indicações básicas, as primeiras de tipo negativo e a última, sua conseqüências, de tipo positivo, para a delimitação da área criminalizável: Do princípio da liberdade e da tolerância – da máxima liberdade individual compatível com a liberdade alheia e, assim, da máxima tolerância compatível com uma vida em comum – decorre a exclusão da legitimidade do Direito Penal para tutelar valores puramente morais, religiosos ou ideológicos (em si e por si mesmos considerados) cujo desrespeito não cause verdadeiros danos sociais; para tutelar meras intenções não exteriorizadas em factos, cuja punição redundaria numa intromissão na liberdade de consciência individual; e, assim, uma legitimidade criminalizadora limitada à tutela de condições básicas para a vida em comum, sendo certo que, numa sociedade democrática, pluralista e compromissória, estas condições não podem identificar com aqueles valores puramente morais ou ideológicos…

Seria importante acentuar este aspecto: em sociedades democráticas, cuja essência reside no princípio da liberdade, ligado à exigência de respeito pela dignidade humana (de todo e qualquer homem, qualquer que sejam as suas particulares convicções e modo de vida); sociedades que não se baseiam num monismo axiológico, mas que promovem até ‘a diversidade ética como algo intrinsecamente valioso’, sociedades pluralistas e, necessariamente compromissórias, não se poderia vir defender ser a moral e a ideologia maioritária (mesmo que bastante dominante), em si e por si mesma considerada – ou seja, desligada de eventuais efeitos danosos para outros valores considerados básicos – um bem jurídico penal ancorado constitucionalmente, assim como não se poderia defender a punição de meras intenções, não competindo ao Estado exercer o papel de conformador ou tutor moral dos cidadãos, mas, apenas, a menos ambiciosa função de preservação dos bens essenciais para uma vida em comunidade. Até porque, o valor da liberdade individual e tolerância se sobrepõem, como mais essenciais, à moral dominante (…). O mandato de tolerância exige do Estado, principalmente em matérias discutidas no aspecto religioso ou ideológico, prescindir de regulamentações jurídicas, desde que a capacidade funcional da convivência social tenha por imprescindível uma intervenção do legislador. Também Figueiredo Dias sublinha a necessidade de distinção entre Direito e moral, com a consequente expurgação do Direito Penal de todas as ‘excrecências moralistas’ salientando ser esta uma exigência da própria moral. Assim, defende-se um princípio de imanência social, no sentido de que o Direito Penal não deverá perseguir finalidades transcendentes, mas permanecer ‘fiel à terra’ e às suas necessidades; assim como se defende o ‘princípio do consenso’ na determinação dos factos a criminalizar”. (32)

GIOVANNI FIANDACA filia-se neste mesmo pensamento, ao postular que “princípios de indiscutível relevo constitucional, como o direito à liberdade moral, à livre manifestação do pensamento, o princípio de tolerância ideológica e de tutela das minorias, impedem que se transforme o Direito Penal de um Estado Democrático em tutor da virtude, desta forma, impõe a limitação da repressão penal somente àquelas infrações da, assim chamada, moralidade pública que sejam, de fato, socialmente danosas e que, de qualquer maneira, violem o direito à ‘autodeterminação sexual’.” (33)

CLAUS ROXIN, de longa data aliás, sustentava a inadmissibilidade da criminalização de condutas enquanto simplesmente imorais, dentre outras razões, porque própria da democracia é a tolerância: “o hodierno Estado democrático de direito, enquanto laico e fundado na soberania popular, não pode perseguir o aperfeiçoamento moral dos cidadãos adultos, mas deve limitar-se a assegurar as condições de uma convivência pacífica.” (34)

Em tal perspectiva, não só não pode o Direito predefinir quais sejam os “bons costumes”, como, se pudera, não lhe seria dado eleger a pessoa casada, exclusivamente, como a guardiã de tais valores morais, impondo-lhe maior restrição à liberdade, quando praticasse crimes, suposto aqueles que visam a proteger a liberdade sexual. Ou seja, maior reprovabilidade fundada apenas no grau teórico de imoralidade do ato praticado pelo agente casado não encontraria apoio em nosso ordenamento jurídico.

Por outro lado, se é verdade que – e é – o ordenamento jurídico num Estado Democrático de Direito laico e que tem por vocação a indulgência para com as diferenças – o que é, aliás, uma das festejadas qualidades da cultura e da alma brasileiras – somente pode imiscuir-se na vida privada para “para proibir comportamentos que prejudiquem terceiros”, nisto residindo sua laicidade, é força concluir pela incompatibilidade da causa de aumento em exame com tais postulados, porque o fato de o agente ser casado não redunda em maior prejuízo à vítima dos crimes contra a liberdade sexual.

MARIÂNGELA GAMA DE MAGALHÃES GOMES, citando NILO BATISTA, assevera que, dentre as quatro funções atribuídas ao princípio da ofensividade que estrutura a intervenção penal, a quarta delas significa a proibição da incriminação de condutas desviadas, “ou seja, orientadas em direção oposta àquela aprovada pela coletividade, que não afetem qualquer bem jurídico; esta proibição funda-se no chamado ‘direito à diferença´, de práticas e hábitos de grupos minoritários que não podem ser criminalizados”. (35)

Como observa com acuidade GIOVANNI FIANDACA, é justamente no campo dos delitos sexuais onde se deve proceder com mais cautela na separação entre Direito e Moral, já que “quanto piú la vita di uma comunità si ispira a precetti universalmente accettati, che fissano rigidamente anche gli ambiti delle manifestazioni sessuali lecite, tanto più forte sara la tentazione di identificare i delitti sessuali con i delitti contro la morale e di far coincidere, perciò, crimine e peccato; la distinzione di principio tra azione delittuosa, da un lato e azione semplicemente immorale, dall´altro, sarà invece più marcata nella misura in cui predominino in una determinata comunità sociale concezioni laiche ispirate al pluralismo ideologico” . (36)

Mas, continua o professor italiano, “al diritto penale non spetta ergersi a tutore della virtù morale dei cittadini, onde non dovrebbe mai essere elevato a delitto un fato pur eticamente condannabile ma privo di apprezzabili conseguenze dannose a carico di terzi”. (37) Concluindo que, na esfera dos delitos sexuais, tal qual fez Carrara em seu Programma, deve-se evitar “il più possibile la confusione tra magistero punitivo e sfera morale”, assumir “la libertà/integrità della singola persona umana a oggetto di tutela delle norme che incriminano condotte di violenza sessuale” e “nel problematizzare la necessità e/o meritevolezza di pena con riguardo ai comportamenti che, privi di conseguenze tangibili nei confronti di vittime ben determinate, si considerado tradizionalmente offensive di quel bene-fantasma che continua ancor oggi a essere evocato con la ‘diafana’ etichetta ‘moralità pubblica”. (38)

Em suma: Não implicando maior ofensividade ao bem jurídico tutelado e, ademais, tendo perdido a razão normativa que estava na indissolubilidade do vínculo matrimonial, desde EC a causa de aumento a parece claro como mero julgamento ético desfavorável ao agente casado, tarefa que, certamente, não incumbe ao Direito e, muito menos, ao Direito Penal.

Por tais razões, afasto o aumento de pena imposto ao paciente com base no artigo 226, III, CP, anulando o título condenatório, nessa parte, e determinando ao magistrado que proceda a nova adequação da pena.

7. Assim sendo, acompanho o Relator no entendimento de que o crime de atentado violento ao pudor, na forma simples, não é crime hediondo, não se lhe aplicando, portanto, o regime jurídico próprio a estes crimes e sequer a causa de aumento de pena prevista no artigo 9o da Lei n. 8.07/90, faço-o sem prejuízo de entender, ainda e também seguindo o Relator, que o disposto no § 1o do artigo 2o deste diploma legal é inconstitucional, restando prejudicado, outrossim, o exame da questão atinente à derrogação desta norma pela Lei n. 9.455/97, concedo ainda a ordem para, cassando o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, garantir ao paciente não só o direito à progressão de regime, mas, igualmente, a inaplicabilidade da causa de aumento prevista no artigo 226, inciso III, do Código Penal.

Notas de Rodapé:

1) E, ainda, indevidamente igualou as penas cominadas ao crime de estupro e ao crime de atentado violento ao pudor.

2) Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (quatorze) anos; b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

3) Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

4) Art. 223. Se da violência resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. Parágrafo único. Se do fato resulta a morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos.

5) FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 4. ed. rev. atual. ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.237-8.

6) Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (quatorze) anos; b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

7) Sobre os “equívocos e casuísmos” de que padece a Lei n. 8.072/90 desde suas origens até sua redação atual, vale à pena a leitura de LEAL, João José. Lei dos crimes hediondos ou direito penal da severidade: 12 anos de equívocos e casuísmos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v.40, out-dez.2002, p.154 e ss.

8) KARAM, Maria Lúcia. Regimes de cumprimento da pena privativa de liberdade. “In”: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.315-6.

9) KARAM, Maria Lúcia. Regimes de cumprimento da pena privativa de liberdade. “In”: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.314.

10) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2a ed., Coimbra: Almedina, 98, p. 411.

11) Idem, p.412.

12) FRANCO, Alberto Silva, ob. cit., p.161.

13) Idem, p.163.

14) Idem, p.164.

15) Idem, p.165.

16) idem, p.165.

17) Idem, p.168

18) AZEVEDO, Tupinambá Pinto de. Crimes hediondos e regime carcerário único: novos motivos de inconstitucionalidade. “In”: CARVALHO, Salo de (org.). Crítica à execução penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. RJ: Lumen Juris, 2002, p.588, grifos do original.

19) TORON, Alberto Zacharias. Crimes hediondos: o mito da repressão penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p.133, grifei. Cf., no mesmo sentido, CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Pena: cumprimento integral em regime fechado. “In”: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.291.

20) No mesmo sentido, Min. MARCO AURÉLIO, verbis: “Por sinal, a Lei n. 8.072/90 ganha, no particular, contornos contraditórios. A um só tempo dispõe sobre o cumprimento da pena no regime fechado, afastando a progressividade, e viabiliza o livramento condicional, ou seja, o ret orno do condenado à vida gregária antes mesmo do integral cumprimento da pena e sem que tenha progredido no regime.” (HC 69.657-1, fls. 417).

21) CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Pena: cumprimento integral em regime fechado. “In”: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.291.

22) HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3ed., Rio de Janeiro: Forense, 1956, v. VII, p.250-1.

23) Cf., neste sentido, HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3ed., Rio de Janeiro: Forense, 1956, v. VII, p.248-9.

24) De fato, tomando por critério de comparação a pena mínima cominada a cada um dos tipos sujeitos à causa de aumento (arts. 213 a 220 do Código Penal) e calculando um quarto de cada uma delas (o art. 226, III, manda aumentar em um quarto a pena aplicada), teremos que o menor aumento será de 3 meses (arts. 215, 216, 216-A, 220) e o maior de um ano e meio (arts. 213 e 214), muito superiores, portanto, à própria pena prevista para o crime de adultério que é de 15 dias a 6 meses de detenção!

25) PRADO, Luiz Régis. Comentários ao Código Penal: doutrina, jurisprudência selecionada, leitura indicada. 2ed. rev. atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.869.

26) Consulte-se, por todos, POLAINO NAVARRETE, Miguel. El bien jurídico em el derecho penal. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1974.

27) FIANDACA, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal. Trad. de Heloisa Estellita. Revista dos Tribunais, v. 776, 2000, p.410.

28) FERRAJOLI, Luigi. A questão do embrião entre direito e moral. Revista do Ministério Público, Coimbra, ano 24, abr.jun.2003, n. 94, p.11.

29) FERRAJOLI, Luigi. A questão do embrião entre direito e moral. Revista do Ministério Público, Coimbra, ano 24, abr.jun.2003, n. 94, p.11-12, grifamos.

30) Sequer poderia ser veículo de implementação de políticas sociais – vício da legislação penal contemporânea –, o que não passa de falácia essa utilização “na medida em que a resposta penal a uma determinada demanda social nada mais é que uma forma de fugir à responsabilidade de atender efetivamente a essa demanda” (PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.126).

31) REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 1, p.25.

32) CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. Constituição e crime: uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995, p.135-138, grifei.

33) FIANDACA, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal. Trad. de Heloisa Estellita. Revista dos Tribunais, v. 776, 2000, p.428, grifei.

34) Apud ESTELLITA, Heloisa. Tutela penal e as obrigações tributárias na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.39.

35) FIANDACA, Giovanni. I reati sessuali nel pensiero di Francesco Carrara: un onorevole compromesso tra audacia illuministica e rispetto per la tradizione. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, v.31, 1988, p.428.

36) FIANDACA, Giovanni. I reati sessuali nel pensiero di Francesco Carrara: un onorevole compromesso tra audacia illuministica e rispetto per la tradizione. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, v.31, 1988, p.904.

37) Ibid., p.906.

38) Ibid., p.919.

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