Juíza de motocicleta

Carreira da juíza Fabíola Bernardi foi marcada pela determinação

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15 de maio de 2004, 18h31

Nos cinemas, mais uma bela obra dirigida por Walter Salles. Depois de espelhar a pobreza brasileira em “Central do Brasil”, com “Diários de Motocicleta” ele reconstrói os nossos laços com a miséria latino-americana. E fala de generosidade e de amor, sentimentos que colocaram Ernesto (o imortal Che) e Alberto em cima de uma motocicleta, numa viagem ao mundo dos esquecidos, dos “invisíveis”.

Ontem à noite, numa fria sexta-feira brasiliense, enquanto assistia ao filme, e chorava, ainda não sabia que hoje também seria dia de lágrimas. Na floresta amazônica, a juíza federal Fabíola Bernardi encerrava, num desastre aéreo, a sua viagem de motocicleta pela vida. Conheci Fabíola há alguns anos.

Ficamos mais próximos quando ela veio para o Juizado Especial Federal de Brasília, por mim coordenado. Fabíola era determinada, franca, alegre. Fazia questão de assinar todos os despachos, mesmo os que poderiam ser feitos “de ordem” pela Secretaria, pois dizia que queria conhecer todos os processos. Insistia em fazer audiências, porque achava essencial o contato com as partes, para daí extrair a melhor decisão. Não se importava se isso daria mais trabalho, pois amava o trabalho. Indignava-se em ver o Estado negando direitos aos cidadãos.

Um dia entrou na minha sala: “Flávio, vou pedir remoção para Tabatinga (fronteira com a Colômbia). Fabíola, você não está feliz aqui? Estou ótima, mas lá em Tabatinga tem mais pobres, lá me sentirei mais útil”. Abracei-a, despedimo-nos, ela pegou sua motocicleta e foi. Ainda nos falamos mais uma vez por telefone.

Um amigo me ofereceu uma audiência com o ministro da Defesa, para discutir parcerias em Tabatinga. Liguei para ela e ouvi: “Flávio, gostaria de apoio do Exército para fazer Juizados Itinerantes nas cidades da Amazônia”. E assim foi, espontânea e generosamente, ser juíza onde a pobreza brasileira faz fronteira com a latino-americana.

No filme de Walter Salles, numa das cenas mais emocionantes, Che Guevara atravessa a nado um rio profundo, um rio que ninguém havia atravessado daquele modo, o rio que mantinha segregados os portadores de hanseníase em uma cidade amazônica. Cinqüenta anos depois, a seu modo e com suas motivações, Fabíola se jogou ao rio e atravessou. Está feliz, na nova etapa de sua viagem.

No Juizado de Brasília, a sala que recebe as pessoas pobres, que não podem pagar advogados, será chamada de “Juíza Fabíola Bernardi”, um exemplo para os demais juízes federais do Brasil.

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