Bicho ilegal

Omissão de autoridades sobre jogo do bicho é nociva ao país

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9 de maio de 2004, 8h45

Há mais de um século o jogo do bicho foi instituído no Brasil, precisamente no Estado do Rio de Janeiro. O Barão de Drummond, dono do antigo Jardim Zoológico no Bairro de Vila Isabel, em dificuldades financeiras decorrentes do corte de subvenções ocorrido com o advento da República, investiu na idéia do jogo para os visitantes de seu Zoológico. O visitante recebia um bilhete com o nome e desenho de um dos 25 (vinte e cinco) animais do zoológico, dentre os quais era sorteado um, que revelava os bilhetes premiados.

Inicialmente, o jogo surgiu oficializado como uma diversão da classe alta fluminense, mas, posteriormente, já sob a clandestinidade, conquistou o imaginário do povo brasileiro, e penetrou em todos os cantos do país, permanecendo até hoje.

A prática do jogo foi aceita e adotada pela sociedade brasileira como um passatempo fácil, acessível e confiável. As diversas modalidades de apostas, de baixos ou altos valores e riscos, permitem que os jogadores aumentem suas chances de ganhos, ainda que baixos, dependendo do tipo do jogo escolhido. Essa peculiaridade, aliada à certeza do recebimento do prêmio, é forte atrativo para a maioria da população “fazer sua fezinha”, na esperança de aumentar seus baixos rendimentos.

A aceitação do jogo do bicho é tão grande que, a depender do local, são oferecidos até três sorteios diários, sem pausa nos finais de semana. O lucro do negócio é difícil de se mensurar, pois a “renda” obtida pela apostas, feitas em dinheiro e aos olhos de qualquer um, não é submetida ao controle estatal; ou seja, não é declarada, não gera tributo, tampouco é fiscalizada.

Para a lei, a exploração do jogo do bicho é mera contravenção penal, e pode configurar, no máximo, crime de sonegação fiscal cuja punibilidade se extingue com o pagamento do tributo devido. As penalidades baixas tornam a ilicitude do negócio mais vantajosa que sua legalização. Na clandestinidade, o jogo permanece longe dos tributos. A não tributação e os altos rendimentos dão invejada lucratividade à atividade.

A estrutura necessária para a exploração desse tipo de jogo: apontadores, bancas, recolhimento das apostas, sorteios, pagamento de prêmios e a logística do transporte de prêmios e apostas é tão complexa que consome a mão-de-obra de centenas ou milhares de trabalhadores. Sem uma administração e controle bem estruturados, análogos aos de grandes organizações, o negócio certamente não sobreviveria.

Por outro lado, numa sociedade capitalista na qual o dinheiro é fonte de poder e cobiça, especialmente num país como o Brasil onde são praticadas altíssimas taxas de juros, tornando mais restrito e oneroso o acesso ao capital, não há como entender a existência de uma fonte de renda desse porte livre da ganância de outros homens, da ação do fisco ou da Justiça, sem considerarmos a alta penetração dessa atividade no Estado e na sociedade.

Com efeito, as principais armas do jogo do bicho são o poder financeiro livre de controle e sua credibilidade perante o apostador.

O poder financeiro gerado pelo jogo abre seus caminhos para a conquista de poder e influência. Essa conquista passa pela sedução de autoridades públicas através do capital, pela corrupção, disseminação do medo e pela omissão. Enquanto o dinheiro atrai a cobiça humana, o medo provoca sua paralisia.

A credibilidade do jogo vem da sua “sociabilidade”: as bancas de apostas estão sempre próximas ao apostador e, ao revés das loterias oficiais, oferecem a figura do apontador que “faz o jogo”; ou melhor, “escreve” para o jogador. Por outro lado, são disponibilizadas apostas baixas, com riscos e ganhos menores, tornando o jogo e os prêmios mais acessíveis à população, o que não acontece nas loterias oficiais.

Numa sociedade marcada pela falta de acesso ao ensino e excluída dos deleites do capitalismo, essas facilidades são fortes atrativos para o cidadão comum, analfabeto ou inseguro na sua escrita, a procura de oportunidades.

A acessibilidade aos prêmios aumenta a confiança no jogo e, conseqüentemente, os lucros dele decorrentes. A população, na maioria desavisada dos riscos inerentes ao poder financeiro viabilizado aos donos do negócio acaba, indiretamente, financiando a paralisia das autoridades públicas.

Para a sua sobrevivência, o jogo ilegal vai além da contravenção e da sonegação fiscal. Passa a ser fonte de tráfico de influência, corrupção, prevaricação, ameaças, e a financiar a corrida eleitoral, dentre outros danos reais ou potenciais que fragilizam o Estado.

A população que aceita e alimenta esse poder é a mesma que mais sofre com os prejuízos por ele causados. O Estado fragilizado e enfraquecido não é capaz de prestar plenamente os serviços que deve à sociedade.

Em Mato Grosso, por exemplo, a Operação Arca de Noé desarticulou a exploração do jogo do bicho e as investigações fizeram prova do envolvimento de Autoridades Públicas, fatos que, apesar de notórios, não eram apurados pela omissão e tolerância do Estado em todos os níveis de poder, Municipal, Estadual e Federal.

A partir da Operação Arca de Noé, o combate ao jogo ilegal ganhou força, e as autoridades passaram a contar com maior segurança e liberdade para exercerem seus ofícios. As ações repressivas ganharam o foco da mídia e qualquer vacilo passou a ser denunciado.

No entanto, mesmo com a concentração de forças policiais no combate ao jogo ilegal e vontade política, vez por outra, o jogo dá sinais de vida, mesmo que precária comparando-se ao passado recente. Ainda existem pessoas dispostas a apostar e trabalhar no jogo ilegal. As sanções impostas aos apontadores são incapazes de impedir que os mesmos permaneçam na atividade, da qual viveram por vários anos sem qualquer óbice.

Com a repressão do jogo em Mato Grosso, os apontadores recorreram à Justiça do Trabalho, postulando direitos trabalhistas aos quais não tinham acesso, vez que a força de trabalho consumida pelo jogo ilegal dá-se na informalidade. A Justiça do Trabalho, ainda dividida quanto aos direitos pleiteados, alterna decisões favoráveis e desfavoráveis aos apontadores.

Apesar da ilegalidade e da informalidade do trabalho, o recrutamento de apontadores não é um obstáculo para a reestruturação do jogo, que conta com o fantasma do desemprego como aliado.

Outro fato dificulta o combate desse jogo ilegal: sua prática, por mais de um século, está enraizada na cultura e nos sonhos do brasileiro; realidade que não se transforma de um dia para o outro.

Essa realidade indica que o combate ao jogo do bicho, apenas com ações repressivas, pode ser insuficiente e até mesmo traumático para a população, desavisada quanto ao seu real potencial ofensivo. A repressão, então, deve ser complementada com a prevenção, através de campanhas de conscientização do perigo oferecido pelo jogo, quando praticado na clandestinidade. Outra solução possível seria o oferecimento de um jogo oficial que resguarde as mesmas características do “bicho” e que possa ocupar seu espaço.

Inobstante, a tolerância à prática de jogos explorados ilegalmente, tal como se dá com o jogo do bicho, é incompatível com a construção de um Estado focado no combate a corrupção e a criminalidade em geral, em especial, a organizada.

Os jogos ilegais existem porquanto as autoridades são omissas perante a lei: ou não podem, ou não querem fazer nada a respeito. Se não podem é porque estão impedidas ou desencorajadas, por ameaças ou falta de apoio decorrentes da influência do poder das organizações; se não querem é porque não lhes é conveniente, e estão comprometidas com interesses alheios aos das funções que exercem, mas sim motivadas por interesses pessoais ou comuns aos da jogatina ilegal. Em qualquer dessas hipóteses, a omissão é nociva ao país.

Num momento em que o Poder Político diz-se focado nas questões de segurança pública, que ganharam espaço invejado na mídia e visibilidade nacional, priorizar o combate à exploração de jogos ilegais, sejam eles praticados através de máquinas eletrônicas (caça-níqueis) ou do Bicho é fundamental para o Estado.

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