Regime aberto

PM acusado de desviar recursos é condenado por peculato em SC

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2 de maio de 2004, 5h40

Um sargento da Polícia Militar do pelotão da Polícia Ambiental em Laguna foi condenado pela 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina a quatro anos de reclusão, em regime aberto, pela prática de peculato. Ainda cabe recurso.

De acordo com os autos, o sargento dirigiu-se cinco vezes à padaria Paraíso, conveniada com a PM para o fornecimento de pães ao pelotão. Ele é acusado de sacar dinheiro na condição de vale que seria abatido da cota de pães posteriormente paga pela instituição. No total, o militar apoderou-se de R$ 66, segundo o processo.

O Conselho Especial de Justiça condenou o militar por estelionato, com pena de reclusão de dois anos, com direito a sursis pelo período de três anos. A 2ª Câmara Criminal do TJ-SC, em apelação relatada pelo desembargador Sérgio Paladino, contudo, reclassificou o delito para peculato.

A defesa do militar tentou obter sua absolvição sob dois argumentos. Inicialmente, disse que os valores desviados da cota de pães da padaria foram empregados na aquisição de materiais para o próprio pelotão da Polícia Ambiental. Por fim, alternativamente, pediu a aplicação do princípio da insignificância, diante do exíguo valor desviado.

O relator da matéria não entendeu desta forma. Para ele, o policial não comprovou, como lhe competia, que o montante desviado tenha sido utilizado em proveito da própria corporação. Em relação ao pleito da insignificância, o desembargador também rejeitou sua aplicação, uma vez que no crime de peculato, importam tanto a lesão patrimonial sofrida pela administração quanto o dever de fidelidade do funcionário em relação à instituição. A decisão da 2ª Câmara foi por maioria de votos. (TJ-SC)

Leia a íntegra da decisão:

Apelação criminal nº 2003.029653-0, da Capital (Auditoria Militar).

Relator: Des. Sérgio Paladino.

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO MILITAR. ADVOGADO CONSTITUÍDO. INTIMAÇÃO REGULAR PARA CONTRA-ARRAZOAR O RECURSO INTENTADO PELO REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. NÃO APRESENTAÇÃO. AUSÊNCIA DE AFRONTA AO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA.

Não impede o conhecimento do apelo a circunstância do advogado constituído pelo acusado não apresentar contra-razões ao recurso do intentado pelo representante do Ministério Público, apesar de regulamente intimado (Precedente: HC n. 77994-RJ, rel. Min. Maurício Corrêa, DJU de 27.04.01. Disponível em: acesso em 6 abr. 2004).

CRIME MILITAR. AGENTE QUE, NA CONDIÇÃO DE SARGENTO DA POLÍCIA MILITAR, SOLICITAVA DINHEIRO À PROPRIETÁRIA DA PADARIA, DETERMINANDO QUE DESCONTASSE DA COTA DE PÃES DO PELOTÃO. RÉU DENUNCIADO POR PECULATO. APLICAÇÃO DA EMENDATIO LIBELLI, PELO CONSELHO ESPECIAL DE JUSTIÇA, DESCLASSIFICANDO, NA SENTENÇA, O CRIME PARA ESTELIONATO. ERRÔNEA CLASSIFICAÇÃO JURÍDICA DO FATO CONFIGURADA. NARRATIVA DA QUAL EMERGE A OCORRÊNCIA DA INFRAÇÃO CAPITULADA NO ART. 303 DO CÓDIGO PENAL MILITAR, E NÃO O DESCRITO NO ART. 251, DO MESMO DIPLOMA.

Pratica peculato o agente que desvia dinheiro público de que tem a posse em razão do cargo — sargento da Polícia Militar —, empregando-o em fim diverso daquele a que se destinava.

Para a configuração do peculato não se faz mister a posse direta, bastando a posse administração, que consiste na faculdade do funcionário público dispor do bem.

CRIME CONTINUADO. RECONHECIMENTO EM FACE DA PRESENÇA DE TODOS OS REQUISITOS OBJETIVOS CONTEMPLADOS NO ART. 80 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. RECURSO PROVIDO.

Verificadas a pluralidade de crimes da mesma espécie — peculatos — e a homogeneidade das condições de tempo, lugar e modo de execução, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, a teor do disposto no art. 80 do Código Penal Militar.

RECURSO DO RÉU. PECULATO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO, AO ARGUMENTO DE QUE EMPREGAVA O DINHEIRO EM BENEFÍCIO DO PRÓPRIO PELOTÃO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ART. 156 DO CPP. INOCÊNCIA NÃO DEMONSTRADA. CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE.

Se o conjunto probatório aponta, com segurança, tanto a autoria, quanto a materialidade do crime, revela-se incabível a absolvição.

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. PRETENDIDA APLICAÇÃO AO CRIME DE PECULATO, EM RAZÃO DO PEQUENO MONTANTE DESVIADO. IMPOSSIBILIDADE, HAJA VISTA QUE O TIPO PENAL TUTELA TANTO O PATRIMÔNIO PÚBLICO, QUANTO O DEVER DE FIDELIDADE DO FUNCIONÁRIO PARA COM A ADMINISTRAÇÃO MILITAR. RECURSO DESPROVIDO.

“‘Não se aplica o princípio da insignificância à prática do delito de peculato, ainda que o valor do prejuízo seja irrisório, pois o bem jurídico tutelado, que se traduz na Administração Pública, em seu aspecto patrimonial e moral, já foi ferido’ (TRF – Rec. – Rel. Gilson Dipp – RT 749/779)” (Franco, Alberto Silva; Silva Júnior, José; Betanho, Luiz Carlos; Stoco, Rui; Feltrin, Sebastião Oscar; Guastini, Vicente Celso da Rocha, e Ninno, Wilson, Código penal e sua interpretação jurisprudencial, volume 2: parte especial, 7ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2001, p. 3834).


Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação criminal n. 2003.029653-0, da comarca da Capital (Auditoria Militar), em que são apelantes e apelados a Justiça, por seu Promotor, e Jair Neves:

ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por maioria de votos, dar provimento ao recurso do órgão do Ministério Público e desprover o do réu.

Custas na forma da lei.

O representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra Jean Koehler e Jair Neves, dando-os como incursos nas sanções do art. 303, combinado com os arts. 53 e 79, todos do Código Penal Militar, pelos fatos assim descritos, ipsis verbis:

“Infere-se do material cognitivo anexo que o Tenente Jean Koehler, com a colaboração do Sgt. Jair Neves, em data não precisamente apurada do ano de 1998, valendo-se de sua superioridade hierárquica, constituiu um grupo de policiais para prestar-lhe serviços de natureza particular, composto pelo Sgt. Odemir Machado Gutterres, Sd. Márcio Nunes, Sd. Jair Martins, Sd. Luiz Paulo David, Sd. Claudi Roberto Correa e Sd. Marcos Antonio Navarro Monteiro. Em data previamente ajustada, dia útil, estando vários policiais em serviço. Partiu o grupo da cidade de Laguna em direção à Florianópolis, local onde executaram ser.viços de concretagem de laje na residência em construção do Tenente Jean Koehler, situada na Costeira do Pirajubaé. A operação foi repetida em outra data, desta feita sem a participação dos Sds. Jair Martins e Márcio Nunes, Como contraprestação pelos serviços prestados, como não havia efetuado qualquer pagamento, o Tenente Jean Koehler, sempre com a colaboração do Sgt. Jair Neves, montou uma operação no Sul do Estado, escalando referidos policiais, a fim de beneficiá-los com a percepção de diárias, horas extras e adicionais noturnos que foram efetivamente pagos aos componentes do privilegiado grupo, fato que causou indignação e revolta na Corporação.

O Tenente Jean Koehler, em várias oportunidades, durante o ano de 1998, abastecia seu veículo particular, Fiat pálio cor branca, no Auto Posto Bela Iguaba, em Laguna, utilizando-se de combustível do Estado (cota do Pelotão de Polícia Ambiental), ocasião em que assinava vales (doc. de fls. 124/125), cujos valores mais tarde eram abatidos da cota do pelotão da Polícia Ambiental, importando assim em prejuízo ao patrimônio público. Fazia-o sob a alegação de que, autorizado por seu superior, visava ressarcir-se de gastos com curso de pós-graduação em gestão ambiental, realizado em Criciúma/SC.

O 2º Sgt. Jair Neves, segundo restou apurado, de fato, administrava internamente o pelotão. Durante o ano de 1998, visando a percepção de vantagem indevida em benefício próprio e de favorecidos em prejuízo do Estado manipulava livremente a escala de serviços, tendo ainda controlado e inserido horas extras e gratificações (adicionais noturnos) na Ficha Financeira do Sistema Integrado de Recursos Humanos do Estado, através do sistema informatizado, assim recebendo e patrocinado o recebimento de gratificações totalmente indevidas, eis que ausente qualquer contraprestação efetiva de trabalho que pudesse respaldá-las. Embora não fizesse jus às horas extras e adicionais noturnos, visto que não executava serviços que lhe permitissem auferir aquelas vantagens, a ação fraudulenta rendeu-lhe a posição de policial mais aquinhoado com tais benefícios, sendo também beneficiários da manobra ilícita que empreendeu o Sgt. Guterres, Sd. Jair, Sd. Claudi e Sd. Márcio Nunes, exatamente àqueles que compunham o grupo de protegidos do Tenente Jean Koehler, sem que, no entanto, também fizessem jus aos benefícios, visto que não executaram os serviços que geram direito à sua percepção.

O 2º Sgt. Jair Neves, segundo se apurou, utilizava-se constantemente da viatura policial militar identificada pelo nº 14-964 para fins exclusivamente particulares, com ela realizando viagens para outras cidades como Florianópolis/SC. Vários deslocamentos foram efetuados com a viatura no ano de 1998 para atender interesses particulares do 2º Sgt. Jair Neves. Em certa data não precisamente apurada daquele ano, o 2º Sgt. Jair Neves ordenou o Sd. Marcos Antônio Navarro Monteiro a conduzir a referida viatura policial a Oficina Auto Elétrica pertencente a Adão Gonçalves da Luz, conhecido por ‘Dão’, a fim de proceder-se a alteração do hodômetro da viatura que marcava 85.000 Km. Realizado o serviço, passou o hodômetro a registrar a marca de 35.000 Km, mascarando assim a alta quilometragem da viatura policial, decorrente dos constantes deslocamentos para fins particulares de interesses do 2º Sgt. Jair Neves. Posteriormente, com a sindicância já em curso, tratou o citado denunciado de desfazer a operação, ordenando ao Sd. Monteiro que retornasse àquela Oficina e modificasse novamente o hodômetro. Utilizando-se da viatura para fins particulares, constantemente abastecia o veículo no Posto Bela Iguaba, em Laguna, assinando vales que posteriormente eram abatidos da cota de combustível do Pelotão, obtendo assim vantagem indevida em prejuízo do patrimônio público.


Consta ainda que, desde maio de 1998, a Padaria Paraíso, pertencente a Janete Luz Laureano, fornecia pães para o Pelotão de Polícia Ambiental em Laguna/SC, sendo que normalmente os soldados apanhavam os pães no estabelecimento e levavam ao Pelotão. Por vezes, o próprio Sgt. Jair Neves dirigia-se ao estabelecimento, sempre, porém, para apanhar dinheiro em espécie, na condição de ‘vale’, a ser abatido da cota de pães do Pelotão da Polícia Ambiental, tendo retirado a quantia de R$ 79,00 (setenta e nove reais), conforme anotação constante da caderneta anexada às fls. 126, fazendo-o, no dia 08.07.98, através do Sd. Carlos, obtendo assim vantagem indevida em prejuízo do Estado” (fls. 02/06). ueles ” (fls. 02/04).

Recebida a denúncia (fl. 694), foi realizado o sorteio dos oficiais para a composição do Conselho Especial de Justiça, em conformidade com o disposto no art. 20 da Lei n. 8.457/92 (fl. 695).

Compromissados e empossados os membros do Conselho Especial de Justiça (fl. 713), os réus foram interrogados (fls. 706/709 e 710/712).

Na seqüência, o Dr. Juiz Auditor determinou a expedição de carta precatória para a inquirição de testemunhas, intimando as partes para que apresentassem quesitos, na forma do preceituado no art. 359 do Código de Processo Penal Militar (fls. 713 verso, 714 e 716 verso).

Inquiridas as testemunhas arroladas pelo dominus litis (fls. 723/734, 762/763, 774 e 775), as partes foram intimadas da juntada da carta precatória aos autos, tendo requerido o prosseguimento do feito (fls. 783 e verso).

O Dr. Juiz Auditor intimou os procuradores judiciais dos acusados para que apresentassem o rol de testemunhas, atendendo ao estatuído no art. 417, § 2º, do Código de Processo Penal Militar (fls. 784), providência executada (fls. 785/786 e 787).

Ouvidas as testemunhas indicadas pelos acusados (fls. 797/802, 818 e 836), os quais desistiram das remanescentes (fls. 803, 817, 843 e 845), as partes foram intimadas da juntada das cartas precatórias aos autos, requerendo o prosseguimento do feito (fls. 820 e verso, 846 e 847) e, em seguida para os fins a que alude o art. 427 do Código de Processo Penal Militar, porém, não pleitearam quaisquer diligências (fls. 847 verso, 848 e verso).

Ofertadas as derradeiras alegações (fls. 849 verso, 853 e 854), o Conselho Especial de Justiça reputou procedente em parte a denúncia e condenou os réus à pena de 2 (dois) anos de reclusão, por infração ao art. 251, caput, combinado com o art. 253 do Código Penal Militar, concedendo-lhes sursis pelo período de 3 (três) anos (fls. 873/880).

Na audiência designada para a leitura da sentença (fls. 884/910), constatou-se o falecimento de Jean Koehler, por meio da respectiva certidão de óbito, juntada à fl. 883, razão pela qual foi declarada extinta a sua punibilidade, com fundamento no art. 123, inciso I, do Código Penal Militar (fls. 911).

Inconformados, o representante do Ministério Público e Jair Neves apelaram.

O primeiro insurge-se contra a desclassificação do crime operada pelo Conselho Especial de Justiça, pretendendo a condenação do acusado pelo crime capitulado no art. 303 do Código Penal Militar, combinado com o art. 71 do Código Penal — peculato em continuidade delitiva —, ao argumento de que o estelionato serviu apenas de meio para aquele, que deve prevalecer, de acordo com o princípio da consunção.

Jair, por seu turno, objetiva a absolvição, à consideração de que os valores desviados da cota de pães da padaria foram empregados na aquisição de materiais para o próprio Pelotão da Polícia Ambiental, restando, por isso, descaracterizado o crime de estelionato pelo qual foi condenado.

Postulou, alternativamente, a aplicação do princípio da insignificância, diante do exíguo montante desviado.

Contra-arrazoado o recurso pelo órgão do Ministério Público (fls. 925/930), o escrivão certificou nos autos que o procurador do réu, apesar de intimado, deixou de apresentar as contra-razões (fls. 931).

Ato contínuo, os autos ascenderam a esta Corte, opinando a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. Luiz Fernando Sirydakis, pelo desprovimento do recurso do réu e provimento do apelo do órgão do Ministério Público (fls. 935/940).

É o relatório.

Primeiramente, saliente-se que a circunstância do advogado constituído pelo réu não ter apresentado contra-razões ao recurso intentado pelo representante do Ministério Público, apesar de regulamente intimado (fl. 931), não impede o conhecimento do apelo, visto que, consoante precedente do Supremo Tribunal Federal, não constitui violação ao princípio da ampla defesa, ipsis verbis:

“Não implica em nulidade a não apresentação de razões de apelação, ou contra-razões a ela, por advogado constituído pelo réu” (HC n. 77994-RJ, rel. Min. Maurício Corrêa, DJU de 27.04.01. Disponível em: acesso em 6 abr. 2004).


No mérito, procede o inconformismo do dominus litis.

Com efeito, extrai-se dos autos que no dia 19.05.98, Jair, na condição de 2º sargento da Polícia Militar, dirigiu-se à padaria Paraíso — na qual o Pelotão da Polícia Ambiental possuía uma cota de pães — e solicitou à respectiva proprietária, Janete Luz Laureano, R$ 20,00 (vinte reais) em espécie, dizendo-lhe que a importância seria empregada na compra de material de expediente para sua unidade de lotação, razão pela qual deveria ser anotada na caderneta de débitos da Polícia Ambiental, para posterior cobrança do Estado de Santa Catarina.

No dia 08.07.98, o sargento Jair determinou que o soldado Carlos fosse à padaria e retirasse R$ 16,00 (dezesseis reais), em espécie, para a compra de um carimbo, tendo sido o montante novamente anotado na caderneta de débitos da Polícia Ambiental.

Nos dias 16.07.98, 12.08.98 e 21.09.98, Jair retornou à padaria Paraíso, retirando, em cada uma das datas referidas, a quantia de R$ 10,00 (dez reais) — valores anotados na caderneta de débitos do Pelotão da Polícia Ambiental.

Os valores entregues a Jair pela proprietária da Padaria Paraíso, mediante anotação na caderneta de débitos do Pelotão da Polícia Ambiental, totalizaram R$ 66,00 (sessenta e seis reais) — cujo total foi pago pelo Estado de Santa Catarina.

Em razão desses fatos, Jair foi denunciado por peculato, crime capitulado no art. 303 do Código Penal Militar. Todavia, o Conselho Especial de Justiça desclassificou a infração para a prevista no art. 251 do mesmo digesto, a saber, estelionato, condenando-o nas penas deste.

Entendeu o Conselho de Justiça que Jair não detinha a posse, tampouco a detenção dos valores desviados, tendo estes sido voluntariamente entregues por particular que mantinha relação negocial com o Estado — proprietária da Padaria Paraíso —, a qual foi induzida em erro pelo réu.

Contudo, embora o acusado não tivesse a posse direta do dinheiro destinado à compra de pães na Padaria Paraíso, detinha a posse administração, visto que dele podia dispor, retirando pães ou, até mesmo, determinando que algum soldado o fizesse.

A respeito da posse, sublinha Heleno Cláudio Fragoso, verbis:

“A posse aqui deve ser entendida em sentido amplo, compreendendo não só o poder material de disposição sobre a coisa, como também a chamada disponibilidade jurídica, isto é, a possibilidade de livre disposição que ao agente faculta (legalmente) o cargo que desempenha” (Fragoso, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, parte especial, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1981, pp. 398/399).

No mesmo sentido, disserta Ramagem Badaró:

“Importante é fixar-se que, tem significação penal de posse, qualquer condição de posse de coisa alheia em razão de cargo, comissão ou função, com ou sem detenção material da coisa. Sendo suficiente para moldar a figura do peculato a posse de administração independente de detenção da mesma” (Comentários ao Código Penal Militar de 1969, vol. 2, São Paulo, Ed. Juriscrédi Lt.da, p. 219).

O Superior Tribunal Militar, por seu turno, assentou:

“A posse, a que se refere o texto legal, deve ser entendida em sentido amplo, compreendendo a simples detenção, bem como a posse indireta, como leciona a doutrina” (STM, HC n. 1994.01.033055-0-PA, rel. Min. Luiz Leal Ferreira, DJU de 09.01095. Disponível em: acesso em 6 abr. 2004).

Na mesma trilha: Mirabete, Júlio Fabbrini, Manual de Direito Penal, 15ª ed., São Paulo, Atlas, 2001, p. 302; STM, Apelação n. 2002.01.049046-9-SP, rel. Min. José Júlio Pedrosa, DJU de 28.11.03. Disponível em: acesso em 6 abr. 2004; TJSC, APR n. 28.068, da Capital, rel. Des. Souza Varella; TJSC, Representação n. 33, da Capital, rel. Des. Álvaro Wandelli.

A propósito, como bem ponderou o Dr. Procurador de Justiça, o estelionato serviu apenas de meio à prática do peculato, na medida em que o réu, na condição de sargento da Polícia Militar, ludibriou a proprietária da Padaria Paraíso, para que esta lhe entregasse os R$ 66,00 (sessenta e seis reais), que seriam descontados da cota de pães do Pelotão da Polícia Ambiental e, posteriormente, pagos pelo Estado. O estelionato é, portanto, antefactum não punível, devendo ser aplicado, ao caso concreto, o princípio da consunção, no rumo da lição de Damásio E. de Jesus, verbis:

“Ocorre a relação consuntiva, ou de absorção, quando um fato definido por uma norma incriminadora é meio necessário ou normal fase de preparação ou execução de outro crime, bem como quando constitui conduta anterior ou posterior do agente, cometida com a mesma finalidade prática atinente àquele crime” (Jesus, Damásio E. de, Direito Penal, vol. I, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 112).

Com efeito, o crime realmente cometido pelo réu está descrito no art. 303, in fine, do Código Penal Militar, nestes termos:


“Apropriar-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular de que tem a posse ou detenção, em razão do cargo ou comissão ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio”.

Diante disso, ao contrário do que entendeu o Conselho Especial de Justiça, encontram-se presentes todos os requisitos do crime capitulado no art. 303 do Código Penal, a saber, o desvio de dinheiro público — ou seja, o respectivo emprego em fim diverso de sua destinação específica — de que o acusado dispunha em razão do cargo que exercia — sargento da Polícia Militar.

A respeito do peculato-desvio, assinala Júlio Fabbrini Mirabete:

Desviar é mudar de direção, alterar o destino ou a aplicação, deslocar, desencaminhar. O agente dá à coisa destinação diversa da exigida em proveito próprio ou de outrem” (Mirabete, Júlio Fabbrini, Manual de Direito Penal, vol. 1, 15ª ed., São Paulo, Atlas, 2001, p. 303).

De outra banda, atendidos os pressupostos exigidos pelo art. 80 do Código Penal Militar, a saber, pluralidade de crimes da mesma espécie e homogeneidade das condições de tempo, lugar e modo de execução, faz-se mister o reconhecimento da continuidade delitiva entre os crimes perpetrados pelo réu.

As infrações eram todas da mesma espécie — peculato —; foram cometidas nas mesmas condições de espaço, a saber, na Padaria Paraíso; da mesma maneira, qual seja, solicitando o réu à proprietária da Padaria que lhe entregasse determinado valor, o qual seria, posteriormente, pago pelo Estado, juntamente com os pães fornecidos ao Pelotão da Polícia Ambiental, e, por fim, os eventos delituosos foram executados em datas próximas — 19.05.98, 08.07.98, 16.07.98, 12.08.98 e 21.08.98 — conjunto de fatores que permite o reconhecimento do crime continuado, acerca de cujos requisitos, assentou a jurisprudência:

“‘Em se tratando de continuidade delitiva, nosso Código Penal adotou a teoria objetiva pura, portanto, o que se exige para considerar o crime como continuado, além de ser da mesma espécie, é que, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhanças, possa se considerar ou subseqüentes como mera condição do anterior, não se exigindo a presença do elemento subjetivo’ (TACRIM-SP – RA – Voto vencido: João Morenghi – j. 24.06.1996 – RJTACrim 31/26)” (Franco, Alberto Silva; Silva Júnior, José; Betanho, Luiz Carlos; Stoco, Rui; Feltrin, Sebastião Oscar; Guastini, Vicente Celso da Rocha, e Ninno, Wilson, Código penal e sua interpretação jurisprudencial, volume 1, parte geral, 7ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2001, p. 1288).

De outra banda, não procede a insurreição do réu, eis que comprovadas, à saciedade, tanto a materialidade, quanto a autoria do crime de peculato, avultando a primeira da caderneta de débitos da Polícia Ambiental na Padaria Paraíso (fl. 139), e a segunda dos depoimentos prestados pela respectiva proprietária Janete Luz Laureano (fls. 67 e 775), pela confissão do acusado (fls. 710/712) e pelas declarações do soldado Carlos Roberto da Silva no processo administrativo (fls. 40/41).

Ora, conquanto confesse que retirou numerário pertencente à cota de pães da Padaria Paraíso, argumenta que o empregou na compra de material de limpeza e no pagamento da mão de obra de um carpinteiro que construiu a cobertura da sala de gestão ambiental do pelotão de Laguna (fl. 712) — empregando, portanto, todo o montante em proveito da própria Polícia Militar. Contudo, não demonstrou a veracidade da alegação, como lhe competia, a teor do art. 156 do Código de Processo Penal.

Com efeito, o ônus da prova incumbe a quem alega, segundo a dicção do art. 156 do Código de Processo Penal, sublinhando Júlio Fabbrini Mirabete, no concernente ao detalhe, que “é a faculdade que tem a parte de demonstrar no processo a real ocorrência de um fato que alegou em seu interesse. Dispõe a lei que a prova da alegação incube a quem a fizer, princípio que decorre inclusive na paridade de tratamento das partes” (Código de processo penal interpretado, 8ª ed. atual., São Paulo, Atlas, 2001, p. 412).

Além disso, o réu estranhamente negou, no processo administrativo, que tivesse retirado dinheiro em espécie na Padaria Paraíso (fl. 68), afirmando que o pegou e o empregou em proveito da Polícia Militar somente em juízo.

Ademais, mostra-se irrelevante, no caso concreto, a declaração prestada pelo soldado Carlos Roberto da Silva no processo administrativo, segundo a qual, na oportunidade em que o Sargento Jair determinou que retirasse os R$ 16,00 (dezesseis reais) na Padaria Paraíso, aplicou-o na compra de um carimbo com o próprio nome (fls. 40/41), quer porque não há prova acerca do destino dos R$ 50,00 (cinqüenta reais) restantes (fl. 139), quer porque, de qualquer sorte, não poderia o acusado dar ao dinheiro público finalidade diversa daquela a que se destinava, configurando-se, portanto, o peculato-desvio.


Igualmente não há ensejo à aplicação do princípio da insignificância, visto que, no crime descrito no art. 303 do Código Penal Militar, importam, tanto a lesão patrimonial sofrida pela Administração, quanto o dever de fidelidade do funcionário em relação a esta.

Nessa trilha, proclamou a jurisprudência:

“‘Não se aplica o princípio da insignificância à prática do delito de peculato, ainda que o valor do prejuízo seja irrisório, pois o bem jurídico tutelado, que se traduz na Administração Pública, em seu aspecto patrimonial e moral, já foi ferido’ (TRF – Rec. – Rel. Gilson Dipp – RT 749/779)” (Franco, Alberto Silva; Silva Júnior, José; Betanho, Luiz Carlos; Stoco, Rui; Feltrin, Sebastião Oscar; Guastini, Vicente Celso da Rocha, e Ninno, Wilson, Código penal e sua interpretação jurisprudencial, volume 2: parte especial, 7ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2001, p. 3834).

Diante do provimento do recurso do órgão do Ministério Público, passa-se à adequação da reprimenda.

A análise das circunstâncias judiciais de cujo elenco se ocupa o art. 69 do Código Penal Militar indica, no tocante à culpabilidade, que o réu agiu com dolo inerente ao crime que perpetrou. Não possui antecedentes criminais (fls. 869), nada constando dos autos que desabone sua personalidade, inexistindo, igualmente, no que concerne ao motivo, indicativo capaz de distanciá-lo das causas que determinam o cometimento dos crimes contra a Administração Militar. No que concerne ao meio de execução, o acusado se utilizou do cargo que ocupava para ludibriar a proprietária da Padaria Paraíso e, assim, desviar dinheiro público, que deveria ser empregado exclusivamente na compra de pães para o Pelotão. As circunstâncias do delito afiguram-se normais, não tendo sido o dano de grande monta, razão pela qual o delito não se revestiu de especial gravidade.

Portanto, fixa-se a pena-base no mínimo legal, ou seja, 3 (três) anos de reclusão.

Ausentes agravantes ou atenuantes, tampouco circunstâncias especiais de aumento ou diminuição. Porém, caracterizada a continuidade delitiva, cumpre observar que, conquanto o Código Penal Militar tenha disposição específica acerca da fixação da pena nessas hipóteses — art. 80 —, a jurisprudência do Superior Tribunal Militar pacificou-se no sentido de que se aplica o art. 71 do Código Penal, evitando-se, assim, que se inflijam penas cumuladas ao agente que comete vários delitos da mesma espécie, em momentos diversos, mas em iguais condições de espaço e modo de execução.

Nesse sentido, colhe-se da jurisprudência daquela Corte:

“Tratando-se de crime continuado, como é a hipótese caracterizada neste processo, a Jurisprudência do Superior Tribunal adota os princípios norteadores do Direito Penal comum (artigo 71), em detrimento do Código Penal Militar (artigo 80), por entender que a legislação comum atende melhor aos anseios de uma boa política criminal. Com isso, busca-se evitar que se apliquem aos condenados na Justiça Militar penas cumulativas a um a gente que comete vários atos criminosos da mesma espécie, em momentos diversos e contra um mesmo sujeito passivo, para unificá-las numa só, com os acréscimos recomendados na caso concreto” (STM, Apelação n. 2001.01.048715-8-SP, rel. Min. Sérgio Xavier Ferolla, DJU de 25.01.02. Disponível em: acesso em 6 abr. 2004).

A respeito do acréscimo decorrente do reconhecimento da continuidade delitiva, os tribunais têm entendido que quando duas forem as infrações, o aumento da pena será o menor, correspondendo a um sexto; na hipótese de três delitos, a majoração importará em um quinto; praticadas quatro infrações, o aumento será de um quarto; se forem cinco os crimes, a majoração consistirá em um terço; no caso de seis infrações, o aumento resultará em metade, e em se tratando de sete ou mais delitos, a majoração eqüivalerá ao máximo, ou seja, dois terços (vide Franco, Alberto Silva; Silva Júnior, José; Betanho, Luiz Carlos; Stoco, Rui; Feltrin, Sebastião Oscar; Guastini, Vicente Celso da Rocha, e Ninno, Wilson, Código penal e sua interpretação jurisprudencial, volume 1, parte geral, 7ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2001, pp. 1319/1320).

Na espécie, como foram cometidos cinco crimes, aplica-se sobre a reprimenda a fração, correspondente a um terço, restando a pena definitivamente quantificada em 4 (quatro) anos de reclusão, para cujo cumprimento fixa-se o regime aberto, ex vi do art. 33, § 2º, “c”, do Código Penal.

Ante o exposto, deu-se provimento ao recurso do órgão do Ministério Público e desproveu-se o apelo do réu.

Participaram do julgamento, com voto vencido, o Exmo. Sr. Des. Maurílio Moreira Leite e, com voto vencedor, o Exmo. Sr. Des. Irineu João da Silva, emitindo parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Dr. Luiz Fernando Sirydakis.

Florianópolis, 6 de abril de 2004.

SÉRGIO PALADINO

Presidente e relator

Declaração de voto vencido do Exmo Sr. Des. Maurílio Moreira Leite:

Dissenti da douta maioria apenas quanto ao recurso ministerial, por concordar integralmente com a capitulação procedida na sentença de primeiro grau.

Florianópolis, 12 de abril de 2004.

Maurílio Moreira Leiete.

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