Risco de retrocesso

Konder Comparato propõe campanha em defesa da democracia

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30 de junho de 2004, 16h40

O professor Fábio Konder Comparato apresentou nesta quarta-feira (30/06) ao presidente nacional da OAB, Roberto Busato, uma proposta para que a entidade inicie, junto com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), uma campanha para, segundo suas próprias palavras “salvar a República e a democracia.”

Considerado um dos mais importantes constitucionalistas do país, Comparato afirma que, diante da frustração da sociedade com os rumos da política, o país corre “sério risco” de sofrer um retrocesso, com “descalabro nas políticas econômicas e sociais”. Para ele, “isto já está acontecendo”.

“Há uma frustração no Brasil em relação ao próprio funcionamento do regime democrático”, afirmou o professor. Para ele, a campanha proposta deve organizar a sociedade civil para que ela exerça permanente poder de controle sobre os governantes. Comparato observou que o Brasil é o país mais descrente da democracia entre todos os países da América Latina, conforme revelou o instituto chileno Latino Barômetro, que desde 1996 vem fazendo sistematicamente esse levantamento.

O professor disse estar convicto de que os problemas econômicos e sociais do país só serão resolvidos, antes de mais nada, com uma reforma política. “Se nós não conseguimos retomar o desenvolvimento econômico é exatamente porque o nosso sistema político tem apresentado falhas graves. Para resolver isto é preciso voltar ao princípio, e o princípio é a instauração de um verdadeiro regime republicano e democrático”, afirmou.

Leia a entrevista com Comparato e em sguida a carta encaminhada para Busato

O que o trouxe a essa audiência com o presidente nacional da OAB?

Apresentei ao presidente Busato a sugestão de uma campanha para defesa da República e da democracia. Nós temos que organizar a sociedade civil para que ela exerça um permanente poder de controle sobre os nossos governantes. Essa organização da sociedade civil só pode ser feita por entidades que ponham o interesse nacional acima do interesse da categoria, que consigam superar os constrangimentos corporativos. Por entidades que tenham presença em todo o território nacional e que gozem de prestígio junto à população. Ora, a OAB preenche esses três requisitos. Nós, advogados, sentimos que estamos num momento de grande responsabilidade perante a história nacional.

Qual a importância de uma campanha dessa natureza para o país?

Se os poderes constituídos não conseguem desbloquear a reforma política, é preciso que a OAB lance essa campanha para a instauração de uma verdadeira República e uma verdadeira democracia. Quero lembrar que a República significa antes de mais nada a supremacia do bem comum sobre os interesses particulares e a prevalência do interesse nacional sobre o interesse estrangeiro. E a democracia é, antes de mais nada, é a soberania popular efetiva, e não meramente simbólica, e a defesa integral do sistema de direitos humanos.Tenho certeza de que a diretoria da OAB está consciente da importância deste momento na nossa história política e atenderá a essas exigências fundamentais para a defesa da nossa independência e para a defesa do bem comum de todo o povo.

O que o leva a propor essa campanha uma campanha como essa?

Há uma frustração em relação ao próprio funcionamento do regime democrático. Quero lembrar o fato de que um instituto de pesquisas latino-americano, situado no Chile, chamado Latino Barômetro, vem desde 1996 fazendo levantamentos sistemáticos da opinião popular em relação à democracia. Vem perguntando, por exemplo, se um regime autoritário seria preferível, em qualquer circunstância, a um regime democrático. As respostas que dadas mostram que de todos os países da América Latina aquele em que o povo é mais cético quanto ao funcionamento do regime democrático é o Brasil. E esta desconfiança em relação à democracia vem se aprofundando no Brasil.

Além da campanha, o que pode ser feito concretamente para reverter o quadro?

Se o povo não encontra mais saídas políticas normais e acha que é preferível um regime de força, contando que resolva os nossos problemas sócio-econômicos, e se a classe política não manifesta nenhuma preocupação com essa situação — e é sabido que entre nós os partidos políticos são as entidades que gozam de menos confiança da população -, nós estamos correndo um sério risco. Já não digo o risco de instauração de um regime autoritário, mas simplesmente de um descalabro nas políticas econômicas e sociais. E é isso exatamente o que está acontecendo. O nosso pressuposto, nossa convicção é que os problemas econômicos e sociais do País são resolvidos, antes de mais nada, com o desbloqueamento da situação política, e não o contrário. Se nós não conseguimos retomar o desenvolvimento econômico é exatamente porque o nosso sistema político tem apresentado falhas graves. Para resolver isto é preciso voltar ao princípio, e o princípio é a instauração de um verdadeiro regime republicano e democrático.


Outras entidades poderiam participar dessa campanha?

Tive a ocasião de apresentar ao presidente Roberto Busato uma modesta sugestão nesse sentido, de uma campanha nacional pela defesa da República e da democracia. E acho que, além da OAB, outra entidade que goza de grande prestígio no nosso país, tem colaborado muito com a Ordem e pode vir a participar dessa campanha é a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Carta

Objetivos

1. Defesa da república: Impedir a subordinação do bem comum do povo ao interesse particular, bem como a subserviência da nação ao interesse estrangeiro.

2. Defesa da democracia: Instituir uma soberania popular efetiva e não meramente simbólica.

Principais meios de atuação

Quanto ao objetivo republicano

1. Criar um secretariado nacional de acompanhamento da vida pública,para denunciar prontamente as violações do bem comum do povo e do interesse nacional, por parte dos Poderes Públicos da União.

2. Instituir ouvidorias no plano local (Estados e Municípios), para acolher denúncias do povo contra o mau funcionamento dos serviços públicos.

3. Rever a legislação concernente aos meios de comunicação de massa, de modo a evitar que eles sejam utilizados para a defesa de interesses particulares contra o bem comum do povo ou a independência nacional. Em especial, propugnar a criação do chamado “direito de antena” do povo no rádio e na televisão, a imposição a todas as emissoras de rádio e televisão, com base no disposto no art. 221 – I da Constitição Federal, de uma programação diária mínima com conteúdo educativo, cultural, artístico e jornalístico, bem como a ampliação do âmbito de operação das rádios comunitárias.

Quanto ao objetivo democrático

A – Defender uma ampla revisão constitucional, objetivando:

1. Submeter toda e qualquer emenda constitucional ao referendo popular.

2. Suprimir da competência exclusiva do Congresso Nacional o poder de autorizar referendo e convocar plebiscito (art. 49 – XV da Constituição Federal). A convocação de referendo ou plebiscito, nas três esferas da federação, deveria ser feita pela Justiça Eleitoral, mediante iniciativa popular, ou de parlamentares que representem a maioria absoluta da respectiva Casa Legislativa.

3. Precisar que as leis oriundas de iniciativa popular somente poderão ser alteradas ou revogadas mediante iniciativa popular.

4. Tornar obrigatória a participação popular na elaboração do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias, na União e nos Estados. Nos Municípios e no Distrito Federal, essa participação ativa do povo deveria estender-se também ao orçamento anual.

5. Instituir o poder de destituição pelo voto popular de Chefes do Poder Executivo, bem como o poder de dissolução de Câmaras Legislativas, na segunda metade do mandato ou da legislatura, mediante iniciativa popular.

B – Propugnar mudanças legislativas para:

1. Dar legitimidade a associações civis e a fundações, na propositura de ações populares civis, bern como legitimidade a qualquer do povo na propositura de ações de improbidade administrativa, revogando-se a Lei n° 10.628, de 2002, a qual estendeu o privilégio de foro aos réus em tais ações.

2. Criar a ação popular penal contra quaisquer agentes públicos, por crimes contra a Administração Publica e a Administração da Justiça.

Justificativa

A república e a democracia sempre foram realidades estranhas a vida nacional.

Já na primeira metade do século XVII, Frei Vicente do Salvador pôde testemunhar o pouco caso que os colonizadores aqui demonstravam pelo bern comum do povo e a prosperidade do país.

Os povoadores, disse ele, “por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pertendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam e: papagaio real pera Portugal, porque tudo querem para lá.

E isto não tern sb os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, sb para a desfrutarem e a deixarem destruída”. Dal sua inferência: “Donde nasce também que nem um homem nesta terra é repúblico nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. Ilustrou esse asserto com o episódio de um bispo dominicano, que passou algum tempo entre nós. Toda vez que mandava alguém a cidade para comprar mantimentos, o enviado voltava de mãos abanando.

Mas, assim que recorria para tanto a alguma casa particular, seus desejos eram pronta e fartamente satisfeitos. 0 que levou dito bispo a concluir: “verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa” (História do Brasil, livro primeiro, capítulo segundo).


Inútil acrescentar que essa mentalidade doméstica e privatista continua a reinar no país e a alimentar coronelismos, caciquismos e privatismos de toda sorte. Os bens públicos consideram-se livremente apropriáveis pelo que primeiro deles se aposse; disto, a longa história de grilagem de terras devolutas a apenas urn exemplo.

Quanto aos serviços públicos, o seu funcionamento em proveito da coletividade sempre foi a última das preocupações dos nossos governantes, de ontem e de hoje (“O que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas”, denunciou o mesmo Frei Vicente do Salvador, “é uma piedade”).

Hoje, na verdade, o bom funcionamento dos serviços públicos não consiste em fazer com que eles sirvam ao povo, a quem na realidade pertencem (res publica, res populi, advertiam os romanos), mas sim em que eles onerem o mínimo possível as finanças do Estado, organizadas prioritariamente para atender o pontual pagamento dos juros de empréstimos aos capitalistas, nacionais e estrangeiros.

Para concluir este triste assunto, o de se lembrar que a ideologia do liberal-capitalismo, largamente difundida nos anos 90, do século passado, patrocinou a liquidação mercantil de grandes empresas estatais, que faziam parte do patrimônio nacional e tinham importância estratégiaca na política de supremacia do bem comum do povo e de independência nacional. Elas foram entregues, na maioria dos casos, a grupos multinacionais.

Quanto à prática democrática, é bem conhecido o juízo desconsolado que dela fez Sérgio Buarque de Holanda:

“A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas.

E assim puderam incorporar a situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos” (Raízes do Brasil, capitulo VI).

Quando essas linhas foram escritas, na década de 30 do século XX, o país ainda não havia conhecido a substituição completa da “aristocracia rural e semifeudal” pela burguesia industrial como classe dominante.

Depois disso, o empresariado industrial e o grupo ascendente dos banqueiros mostraram sobejamente que a soberania popular, a independência nacional e a proteção dos direitos humanos, mormente os de natureza econômica e social, representam, para as chamadas elites, meras figuras de retórica constitucional, a serem prontamente afastadas, quando põem em risco a realidade do govern oligárquico.

Ora, sem a instauração de um autêntico regime republicano, será impossível impedir a supremacia tradicional dos interesses particulares sobre o bem comum do povo, ou defender a independência nacional contra o avanço da globalização capitalista.

Da mesma forma, sem a instituição de um autêntico regime democrático, com soberania popular efetiva e respeito integral aos direitos humanos, não seremos jamais capazes de extinguir o sistema de irresponsabilidade geral dos governantes, que sempre existiu entre nós.

Em suma, o pressuposto para a solução dos grandes problemas econômicos e sociais do país tem natureza política: e a refundação do Estado brasileiro, com base nos princípios cardeais da república e da democracia.

São Paulo, 28 de junho de 2004.

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