Reforma do Judiciário

Demora na aprovação da reforma do Judiciário reflete prioridades

Autor

  • Grijalbo Fernandes Coutinho

    é desembargador no TRT-10 (DF e TO) mestre em Direito e Justiça pela UFMG autor da pesquisa e do livro Terceirização: Máquina de Moer Gente Trabalhadora – A inexorável relação entre a nova marchandage e degradação laboral as mortes e mutilações no trabalho (LTR 2015) ex-presidente da Anamatra.

29 de junho de 2004, 13h24

Depois de doze anos de tramitação no Congresso Nacional, a PEC que trata da reforma do Poder Judiciário pode ser votada e promulgada ainda no primeiro semestre de 2004, pelo menos no que se refere ao conjunto do texto da Câmara ratificado pelo Senado. A razoável demora guarda estreita relação com a prioridade real dada pelos poderes Legislativo e Executivo ao tema.

A proposta foi lançada e retirada da pauta segundo a intensidade das denúncias lançadas contra membros do Judiciário e do Ministério Público, perdendo o seu alegado efeito transformador com a saída de cena dos escândalos isolados produzidos por referidos personagens.

Abstraindo a nobreza ou não dos verdadeiros propósitos perseguidos, o fato é que a máquina judiciária não consegue realizar a contento a tarefa para a qual foi primordialmente concebida, qual seja, a de distribuir justiça com celeridade. Mesmo sendo a mais notória mazela, a morosidade se faz acompanhar de outras marcas, internas e externas, que comprometem de modo inarredável o desempenho do Poder Judiciário.

Paira reduzida controvérsia entre os operadores do direito sobre a imprescindibilidade de uma reforma processual capaz de diminuir o número de recursos e de atos meramente protelatórios, propiciadora de maior efetividade das decisões primárias, seguida de rigorosa alteração de todo o sistema, para lhe dar harmonia e consistência.

Várias são as sugestões apresentadas pela Anamatra, destacando-se a criação da certidão negativa de débitos trabalhistas na Justiça do Trabalho, o fim do agravo de petição, a extinção do efeito suspensivo no recurso ordinário, a elevação da taxa de juros, a substituição processual ampla e irrestrita, como, de resto, o apoio ao incremento da coletivização das demandas.

O direito processual adquiriu importância ao longo dos anos, em face do reconhecimento de sua autonomia científica como ramo do ordenamento jurídico. Entretanto, a supervalorização da forma, indiscutivelmente, compromete o que se busca conferir a alguém. Não se trata de se lhe atribuir papel secundário e de mera regra adjetiva, conotações tão repugnadas pelos estudiosos da matéria. O equilíbrio deve ser buscado na interpretação das normas, competindo ao legislador fixar balizamentos que levem em consideração outras premissas.

Nessa perspectiva, impõe-se a tarefa urgente de mudança, mediante a simplificação dos códigos processuais e da legislação processual trabalhista, sem nenhuma violação aos princípios e garantias constitucionais.

A deficiência estrutural do Poder Judiciário também colabora com o caótico quadro de espera na entrega da prestação jurisdicional. O problema aqui, mais uma vez, está fora do alcance dos juízes, cabendo aos outros poderes dotar a justiça de instrumentos materiais hábeis ao seu funcionamento de maneira mais eficaz. O Brasil possui um quadro reduzido de juízes e servidores, quando comparado com a proporcionalidade em relação aos habitantes observada em outros paises. Investimentos nas áreas de informática e capacitação são necessários.

Enfim, é preciso fornecer elementos até hoje não disponíveis ao judiciário, ausentes em razão da própria crise do Estado brasileiro e do poder público, cada vez mais preocupado com os afazeres impostos pelo “deus mercado” e pelos insaciáveis credores internacionais.

Até agora a proposta não difere de modo substancial do discurso verbalizado pelos setores hegemônicos do Poder Judiciário, bem posicionados no topo piramidal da estrutura hoje vigente. Mas as nossas convergências limitam-se ao objeto antes anunciado. A subsunção de todos os males ao mundo exterior é por demais simplista, prestando-se essa tática como esquiva ao implemento da revolução indispensável para o sistema, encampada pelo judiciário-conservador, na precisa definição do professor Andrei Koerner.

É evidente que na reforma constitucional se faz necessário repensar elementos que isolam os juízes, concentram poderes nas cúpulas, não permitem a transparência dos seus atos, autorizam a interferência do poder político nas indicações dos cargos das instâncias superiores e inviabilizam o acesso à justiça.

A longa trajetória da reforma em curso não conseguiu romper com os falsos paradigmas eleitos para melhorar o desempenho da justiça brasileira. E assim o é porque o núcleo do texto, por um lado, consagra símbolos arraigados pelas elites nacionais, como a malsinada súmula vinculante, a extensão do foro privilegiado para ações de natureza cível e o período posterior à ocupação da função pública, a escolha do Procurador Geral da República pelo Chefe do Executivo sem a participação dos procuradores, e o arremedo míope de conselho nacional de justiça. Por outro, deixa de enfrentar temas como o verdadeiro acesso à justiça, a democratização interna do Poder Judiciário, a acessibilidade democrática aos cargos da magistratura nos tribunais, a extinção da reserva de mercado representada pelo quinto constitucional.

Mesmo que restrita ao âmbito do Supremo Tribunal Federal, a adoção da súmula vinculante importará em grave ofensa ao princípio do juiz natural da causa, com evidente cerceio da atividade jurisdicional, concentrando poderes nas mãos de poucos magistrados. As conseqüências serão extremamente negativas para os setores dominados da sociedade brasileira.

O quadro se agrava com a subtração do debate em torno da escolha bonapartista dos ministros do STF pelo Presidente da República, nuance que, em menor extensão, também se faz presente na nomeação dos magistrados da segunda instância da justiça da União e dos ministros dos tribunais superiores, forma de interferência direta do Poder Executivo federal, competência que deveria estar ser reservada aos próprios tribunais, como já ocorre na justiça dos estados.

Os juízes do trabalho, abolindo dogmas e preconceitos reverberados durante anos, aprovaram a proposta de criação de um órgão capaz de garantir maior racionalidade às ações políticas e estratégicas do Poder Judiciário, composto por magistrados eleitos e representantes da sociedade civil organizada, com atribuições administrativas, orçamentárias, de formulação de políticas estratégicas e disciplinares em grau recursal. Zelar pela independência jurisdicional é a principal função do autogoverno do judiciário, como ocorre em vários países da Europa.

O modelo inserido na PEC 29/2000 e acolhido pelo atual Governo Federal foi pensado, no entanto, como mecanismo centralizador e autoritário, o que se depreende de suas próprias características: competências voltadas primordialmente para o campo disciplinar, composição baseada nas cúpulas e seus indicados, vagas reservadas para entidades que possuem interesses corporativos nos destinos do judiciário e falta de previsão das necessárias cláusulas de barreiras quanto aos representantes da sociedade civil nomeados pelo Congresso Nacional. Sob o fundamento da urgência, o Executivo não mede esforços para aprovar um arremedo de conselho nacional de justiça, antidemocrático e distante do modelo que permitiria real interação com a sociedade.

Os três poderes da República são impermeáveis, não obstante o sufrágio universal a que estão submetidos os integrantes do Executivo e do Legislativo a cada 4 ou 8 anos. Entretanto, nenhum deles deveria estar imune ao controle permanente da sociedade sobre os atos que não são próprios de cada atividade. Despindo-se de interesses corporativos ou de retaliação contra os possíveis incômodos, somente a defesa da instituição de conselhos diversos em cada esfera de poder revelaria a grandeza dos agentes políticos.

Episódios lamentáveis e isolados, como o da emenda da reeleição em 1997 e o recente caso que envolveu funcionário da Casa Civil da Presidência da República, seriam resolvidos e superados de modo mais transparente se houvesse órgão de controle social do Executivo, com a participação democrática da sociedade civil.

Em que pese a autonomia orçamentária dada aos órgãos da Defensoria Pública, o acesso à justiça somente pode se materializar de maneira mais efetiva com o fim do pagamento de taxas e serviços pelos cidadãos que não podem prover as despesas judiciárias. A concessão dos benefícios da justiça gratuita, prevista em lei, deveria eliminar a dificuldade, mas não é o que sucede na prática. A existência de cartórios explorados pela iniciativa privada, absorvendo atividade essencialmente pública, será sempre propiciadora de obstáculos ao desenvolvimento célere dos processos daqueles que mais têm sede de justiça.

A falta de democracia interna nos tribunais, do mesmo modo, passou ao largo das discussões parlamentares. Eleições diretas para os cargos de dirigentes dos tribunais e a definição de outros contornos nos processos de promoção, remoção e disciplinares, são medidas que poderiam minimizar o grau de dependência hierárquica funcional entre os juízes das diversas instâncias.

Se o eixo da reforma é conservador, até mesmo com alguns retrocessos em relação ao regime vigente, considero que, pontualmente, existem alguns aspectos merecedores de apoio, destacando-se a criação obrigatória de ouvidorias, a proibição de nepotismo e, ainda, o estabelecimento da quarentena para o exercício da advocacia e a autonomia das defensorias públicas.

No que se refere à Justiça do Trabalho, é louvável a ampliação de sua competência, para abranger todas as demandas oriundas do trabalho humano, apenas excetuadas as dos servidores públicos estatutários, incluindo-se, ademais, os litígios intra e intersindicais, o habeas corpus e a execução das multas administrativas. Também é relevante o restabelecimento do número de 27 ministros no TST. Os juízes do trabalho terão a importante missão de não abdicar das novas competências, construindo jurisprudência favorável ao fortalecimento deste ramo especializado do judiciário brasileiro.

Fecha-se um ciclo no processo de reforma constitucional do Poder Judiciário, mas não se encerrará a luta pelas transformações que realmente são imprescindíveis para torná-lo acessível, democrático, transparente, ético e vocacionado para o mister de dizimar injustiças sociais perpetradas pelos detentores dos meios materiais para tanto. Individualmente, o juiz continuará velando pelo respeito aos princípios constitucionais que dão ao Estado brasileiro a qualidade de nação soberana e democrática, fundada no respeito à dignidade da pessoa humana. De modo coletivo, a tarefa será das associações de magistrados, pautando qualquer conduta na atenção, em primeiro plano, aos interesses da sociedade.

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