Órfão da ditadura

Anistiado político reclama da demora no pagamento de indenização

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28 de junho de 2004, 18h38

O ex-preso político, jornalista Celso Lungaretti, enviou representação ao Ministério Público para pedir a intervenção no processo de indenização a anistiados políticos. Ele também encaminhou cartas à Ordem dos Advogados do Brasil e à Anistia Internacional em que relata sua situação.

Lungaretti se inscreveu no programa em outubro de 2001, mas, afirma, até agora não conseguiu receber os valores a que tem direito. Alega que o critério de ordem cronológica não está sendo respeitado, já que processos com números mais altos que o seu já foram julgados.

O jornalista critica a demora, a falta de recursos do programa e o fato de que os atrasados — referentes ao período da ditadura até o ingresso das ações — só serão pagos pela próxima administração. Ele reclama, ainda, o descumprimento da prioridade aos desempregados expressos em portaria.

Lungaretti afirma ter ficado 11 meses e meio preso em quartéis do Exército e ter sofrido lesão permanente decorrente da tortura — teve o tímpano estourado, a audição prejudicada e tendência à labirintite. Ele diz estar desempregado desde outubro de 2003 e sem dinheiro para sustento próprio e de familiares.

Representação ao Ministério Público Federal

Prezados senhores,

Como ex-preso político que passei 11,5 meses detido em quartéis do Exército e sofri lesão permanente por causa de tortura (tímpano estourado, audição prejudicada e tendência à labirintite, obrigando-me a passar por três cirurgias sem obter melhora significativa), inscrevi-me em 29/10/2001 no programa federal de indenização a vítimas da ditadura — Comissão de Anistia do Ministério da Justiça –, sob número 2001/01 02552.

Quando o programa foi instituído, nenhum texto divulgado pelas autoridades informava da possibilidade de adotarem uma ordem de prioridade para o julgamento dos pedidos que não fosse a cronológica. Nem a Lei nº 10.559, finalmente promulgada em 13/11/2002, contempla tal possibilidade. Somente a portaria interministerial nº 447, de 06/05/2002, se refere a este assunto, da seguinte forma:

Art. 4º terão assegurada prioridade na análise dos processos

I – os desempregados;

II – os inválidos ou portadores de doenças graves;

III – os mais idosos; e

IV – os que, embora empregados, percebam remuneração ou salário inferior a cinco salários mínimos.

Ora, conforme se pode verificar na pauta dos julgamentos realizados, não estão sendo priorizados os desempregados. As justificativas mais fortes de prioridade, na prática, estão sendo as de idade avançada e doença, que deveriam vir em terceiro e segundo lugares.

E o terceiro critério vem sendo o de número baixo, mas também não cumprido à risca, pois na 1ª Câmara ainda estão entrando em pauta processos de números inferiores a 500 e em março/2004, sob a única justificativa de prioridade de número baixo, foram pautados para julgamento os processos de nº 8.498, 7.749, 5.805, 4.268 e 2.798.

Tudo isto pode ser facilmente constatado no site www.mj.gov.br/anistia.

Conforme pedido de prioridade por mim apresentado em dezembro/2003, que a Comissão de Anistia apenas protocolou sem atender, estou desempregado desde 17/12/2003, com pensões judiciais em atraso, dívidas na praça e dependentes desatendidos. Além disso, já foram julgados muito mais do que 2.551 processos, de forma que, se tivesse sido respeitada a ordem cronológica, a minha vez teria chegado há muito tempo.

Como a situação que descrevo acima afronta inclusive o art. 5º da Constituição e tipifica claramente preterição em meu detrimento, peço que o Ministério Público intervenha para garantir o respeito a meus direitos legais.

Representação à Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB

Prezados representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos da OAB,

Peço formalmente que esse colegiado desenvolva gestões junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça no sentido de que tal programa seja agilizado e adote procedimentos mais transparentes e idôneos.

Entre outras irregularidades e distorções, o programa:

– vem sendo implementado com tal morosidade e falta de recursos que grande parte dos anistiandos tende a morrer antes do recebimento da indenização;

– adotou recentemente o critério de não honrar na atual administração o pagamento dos valores atrasados (as pensões acumuladas do ingresso até a concessão do pedido), deixando a conta para o governo seguinte;

– está estruturando a pauta dos julgamentos a partir de critérios de prioridade definidos a posteriori, como “idade avançada” e “doença”, quando o certo seria haver estabelecido isso quando do lançamento do programa. Já que não o fez, deveria adotar agora a ordem cronológica;

Se o critério de “idade avançada” é compreensível e equânime, o mesmo não se pode dizer do de “doença”, que possibilita todo tipo de burlas, bem como absurdos do tipo do tratamento privilegiado outorgado ao escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, cujo processo (nº 31.858) entrou na pauta de 21/06/2004, à frente de milhares de anistiandos verdadeiramente necessitados, sendo público e notório que o beneficiário aufere vultosos rendimentos do jornalismo e dos direitos autorais de obras literárias, podendo perfeitamente custear eventuais tratamentos de saúde.

Além disso, mesmo quando segue o critério de “número baixo”, a Comissão está privilegiando alguns e preterindo outros, como se nota, por exemplo, na pauta de março/2004 da 1ª Câmara, quando os processos de nº 8.498, 7.749, 5.805, 4.268 e 2.798 passaram à frente de centenas, talvez milhares, de pedidos com número mais baixo e cuja precedência deveria ter sido respeitada.

Além de atingido como cidadão pelo encaminhamento injusto e arbitrário que vem sendo dado ao programa, eu estou sendo prejudicado como anistiando pela preterição de que estou sendo vítima, pois meus processo é o de nº 2.552. Peço, neste sentido, uma posição da OAB.

Atenciosamente,

CELSO LUNGARETTI

Representação à Anistia Internacional

Prezados Senhores,

Peço a intervenção da Anistia Internacional no sentido de oferecer alguma esperança aos milhares de ex-presos políticos inscritos nos programas de indenização às vítimas da ditadura instituídos pelo Ministério da Justiça e por Secretarias estaduais de Justiça — muitos dos quais estão passando por situações aflitivas e até dramáticas.

Pessoas que, como eu, arriscaram a vida, a saúde mental e a integridade física na luta contra o regime militar, são agora tratadas como indigentes por burocracias insensíveis. Eis alguns fatos:

– o programa federal foi instituído em 28/08/2001, com a expectativa de receber entre 30 mil e 40 mil pedidos de anistia;

– recebeu dotações orçamentárias irrisórias no Governo FHC e no 1º ano do Governo Lula;

– em novembro/2003, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu destinar-lhe R$ 200 milhões em 2004, R$ 300 milhões em 2005 e R$ 400 milhões em 2006. No entanto, o Ministério da Justiça depois informou depois que o orçamento de 2004 já estava fechado e só contemplava R$ 52 milhões para o programa de anistia, dependendo os restantes R$ 148 milhões de suplementação orçamentária;

– muitos anistiandos já morreram e mais ainda morrerão antes de receber o benefício, se o programa não for agilizado. As indenizações, no ritmo atual, só acabarão de ser pagas lá por 2020;

– o Ministério da Justiça decidiu que só serão pagas no atual governo as pensões mensais, ficando os atrasados (o valor referente ao período transcorrido entre a entrada do pedido de anistia e seu deferimento) para o governo seguinte pagar. Trata-se de uma decisão sem nenhum respaldo legal;

Vale lembrar, ainda, que muitos ex-presos políticos preferiram a via administrativa porque, acreditando nas promessas dos governos, supunham que seria mais rápida do que a via judicial (embora nesta última pudessem ser obtidas indenizações de montante mais elevado).

Na prática, está acontecendo o contrário, de forma que os programas governamentais de anistia acabaram sendo quase um engodo;

não sei de idênticas injustiças e distorções no programa da Secretaria da Justiça do Estado de São Paulo, mas a morosidade é a mesma.

Estão sendo julgados apenas cerca de 10 casos por semana.

Afora as mazelas que afetam indistintamente as dezenas de milhares de anistiandos, há uma possibilidade de discriminação pessoal contra mim.

Meu processo é o de nº 2.552 e tramita na 1ª Câmara do Programa de Anistia do Ministério da Justiça. Como resultado das torturas sofridas em 1970, fiquei com lesão permanente (surdez parcial no ouvido direito, que sempre me impediu de exercer minha profissão de jornalista em rádio e TV, limitando em muito o meu mercado de trabalho), além de labirintose. Já passei por três cirurgias, sem que o mal fosse sanado.

Em dezembro último, pedi formalmente que meu pedido de anistia fosse priorizado por estar desempregado, ter um histórico real e comprovado de perseguido político e número de inscrição baixo.

Nada resultou desse pedido e, nos últimos meses, têm sido julgados processos de numeração bem superior, cuja única justificativa de prioridade exposta no site do Ministério da Justiça é a de “número baixo”.

No mês de março/2004, por exemplo, a pauta da 1ª Câmara registra um verdadeiro “trem da alegria”, com vários “penetras” passando à frente de quem tem realmente numeração baixa (nos outros meses também esses casos pipocam, mas com menor intensidade).

Em termos legais, segundo me informaram advogados, a preterição é arbitrária, não tendo os responsáveis pelo programa o direito de privilegiar pessoas a partir de critérios definidos a posteriori, como idade avançada ou doença, muito menos o de passar na minha frente pessoas com número de inscrição bem mais alto, sob a mesma alegação de “número baixo” que caberia muito mais no meu caso.

Será favorecimento a quem tem bons padrinhos ou perseguição específica contra mim, por conta de antigos ressentimentos? Muito jovem e barbaramente torturado, fui um dos presos que consentiram em serem usados pela propaganda do regime militar como “arrependidos”, o que até hoje é objeto de animosidade por parte, principalmente, de quem não passou por agruras semelhantes. Já me alertaram que os encarregados de tocar esses programas não são imparciais, tomando atitudes em função dos preconceitos que ainda têm contra ex-militantes que sucumbiram às sevícias.

É impossível provar, mas se pode constatar facilmente que meu processo já deveria ter sido julgado e ainda não foi. Nem me dão satisfação quando peço explicações pelo endereço de e-mail que a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça mantém exatamente para atender aos anistiandos.

Estou em situação desesperadora, desempregado desde dezembro e impossibilitado de prestar a assistência que gostaria à minha mãe septuagenária, às minhas duas filhas (uma com dois anos de idade), à minha ex-esposa e a dois netinhos.

Não sei mais o que fazer ou a quem recorrer. É um triste final de vida para quem, aos 17 anos, aceitou correr os riscos de uma luta tão justa quanto desigual, enquanto tantos outros brasileiros sabiam dos crimes que estavam sendo cometidos pela ditadura e optaram pela auto-preservação.

Suplicando que a Anistia Internacional, com sua autoridade moral, desenvolva gestões no sentido de que os programas sejam agilizados e passem a ser encaminhados com justiça e transparência, subscrevo-me,

Atenciosamente,

CELSO LUNGARETTI

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