Preço da mentira

Crime de falso testemunho dá mais de dois anos de prisão

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21 de junho de 2004, 10h38

O crime de falso testemunho em processo sobre homicídio duplamente qualificado gerou a condenação de um réu a dois anos e oito meses de reclusão, em regime fechado. A pena superior ao mínimo previsto no Código Penal foi aplicada pelo juiz da 3ª Vara de Botucatu (SP), Ítalo Morelle. O réu aguarda preso o julgamento do recurso.

Sérgio Jurandir da Silva “fez afirmação falsa e calou a verdade no curso de sua oitiva como testemunha” em prol de um dos réus. O motivo do homicídio teria sido o fato de a vítima ter exibido o pênis para a filha de um dos autores do crime.

Morelle levou em consideração que o réu tem maus antecedentes e duas condenações definitivas. “Sua conduta no processo foi reprovável, demonstrando menoscabo para com a Justiça, sequer comparecendo a audiência designada para seu interrogatório. O perjúrio foi feito em processo que versava sobre homicídio qualificado, ou seja, o crime que atinge o bem mais relevante: a vida”, afirmou o juiz.

O crime de falso testemunho está previsto no artigo 342 do Código Penal. Tem pena mínima de um ano. Cabe sursis processual por conta da Lei nº 10.268/01 — que modificou o artigo 342 — tornando a punição mais branda, segundo Morelle. O juiz disse à revista Consultor Jurídico que, com outras leis novas, “é quase impossível punir o réu com prisão ou obrigá-lo a cumprir pena alternativa”. Entretanto, ele teve uma interpretação pouco comum na Justiça brasileira e condenou o réu a prisão em regime fechado.

Leia a sentença:

JUÍZO DE DIREITO DA COMARCA DE BOTUCATU

3a. Vara – Competência Cumulativa

Processo n. 153 / 00

V I S T O S et cetera

SÉRGIO JURANDIR DA SILVA, quantum satis qualificado e identificado no caderno dos autos a f. 28, foi denunciado e vê-se criminalmente processado pela prática do delito nomen juris falso testemunho (artigo 342, parágrafo 1o., do Código Penal).

Historia a exordial acusatória que em fevereiro de 2.000, nas dependências do Fórum desta comarca, o réu fez afirmação falsa e calou a verdade no curso de sua oitiva como testemunha, com o fito de produzir efeito em processo penal em prol dos réus Aparecido Pires e João Batista Camargo, autores de homicídio duplamente qualificado.

Prossegue dando conta que o réu, ao prestar depoimento na fase anteprocessual, afirmou para a autoridade policial que Aparecido Pires, alcunhado “Cidinho”, confidenciou-lhe que teria matado David de Oliveira em concurso com João Batista de Camargo, alcunhado “Índio”. A razão do homicídio seria pelo fato de a vítima ter exibido o pênis para a filha de Aparecido. Disse que mataram a vítima mediante pedradas.

Em juízo, objetivando beneficiar os réus, falseou com a verdade, na medida em que disse que tomou conhecimento dos fatos pelo rádio e que Aparecido nada teria lhe dito. Disse, também, que não se recordava de ter apontado João como co-responsável pela morte de David a pedradas.

O despacho inaugural de cunho positivo, encetador desta actio criminalis foi proferido a f. 47.

O réu foi citado e intimado in faciem cônsone certidão lançada no dorso de f. 50.

Não compareceu à audiência designada para o seu interrogatório e, nem tampouco ofertou justificativa. Observou-se a sua revelia (f. 51).

Prévia in opportuno tempore ofertada a f. 59.

Inquiridas duas testemunhas (f. 76 e 97).

Encerrada a instrução a f. 98.

Observada a fase de diligências complementares a f. 99 e 102.

Alfim e ao cabo, manifestaram-se as partes (f. 116/8 e 121/2). O Ministério Público obsecrou a condenação do réu nos precisos termos vazados na denúncia. A Defesa bateu-se pela absolvição.

Procedi a leitura dos autos.

Sinopse ex lege.

DECIDO.

Procede a proposição acusatória.

Deveras e ver-se-á linhas avante.

Compromissado na fase indiciária (f. 10), prestando-se como testemunha, afirmou o réu que “Cidinho” contou-lhe que em companhia de um tal “Índio”, haviam matado um rapaz com pedradas na cabeça. Disse que o crime ocorreu no pátio da estação ferroviária e o motivo prendeu-se ao fato de a vítima ter mostrado o pênis para a filha de “Cidinho”, uma garotinha de quatro anos. Em princípio não acreditou mas, ao ouvir pelo rádio que uma pessoa teria sido assassinada no pátio da Fepasa, deu-se conta que ele não estava mentindo. Disse que em Bauru foram detidos e conduzidos para esta cidade e “Cidinho”confirmou-lhe toda a história, dizendo que “Cidinho” deu um empurrão na vítima e uma única pedrada e “Índio” foi o responsável pela agressão mais violenta e morte da vítima. Finalizou, informando que “Cidinho”conduziu os policiais ao local do crime, onde foram localizadas pedras com manchas de sangue.

Na fase processual, surpreendentemente, modificou completamente a sua versão (f.12). Igualmente compromissado, disse que tomou conhecimento da morte da vítima através do rádio. Disse que não se lembrava de “Cidinho”, juntamente com “Índio” ter-lhe dito que haviam matado um rapaz a pedradas. Justificou o seu estado amnético pela ingestão freqüente de aguardente. Disse que estava ébrio na fase policial, não se recordando do que disse. Afirmou que sofreu coação na polícia.

Estes os fatos.

O cotejo dos dois depoimentos, demonstra, sem ensancha à dúvidas e de forma hialina, a existência do perjúrio e sobre fato relevante.

Na polícia, narrou com detalhes. Em juízo, foi tomado por estado amnético.

O réu sequer compareceu em juízo para ofertar a sua versão. Regularmente citado e intimado optou por faltar a audiência para seu interrogatório.

Embora o réu seja o árbitro da conveniência ou não de responder ao interrogatório, é evidente que o seu silêncio (ou ausência injustificada) causa uma impressão negativa no julgador, possível de constituir um elemento altamente desfavorável na formação do convencimento do juiz (1)

Não é só.

As testemunhas inquiridas foram firmes e coerentes ao afirmarem que o réu prestou o seu depoimento na fase policial com clareza, detalhes e sóbrio.

A escrivã Liliana (f. 76) ratificou em contraditório o que disse no administrativo (f. 18). Nesta oportunidade, esclareceu que secretariou o Delegado Seccional, Dr. Tadeu Campos, na oitiva do réu. Disse que o réu estava sóbrio, prestou o depoimento com muita presteza e segurança, bem como, com riqueza de detalhes. Em nenhum momento foi o acusado constrangido, ameaçado, agredido ou induzido pelos policiais da delegacia especializada. Disse que em nenhum momento voltou atrás no que disse, dando outra versão.

O Delegado Doutor Tadeu (f. 97) ratificou em contraditório o que disse no administrativo (f. 22). Afirmou ter presidido a inquirição do réu quanto a um homicídio ocorrido no pátio da Fepasa. Deu conta que o depoimento foi tomado em observância aos ditames legais. Aduziu que o réu estava sóbrio e prestou um depoimento sem contradições, demonstrando conhecimento dos fatos. Assertou que o réu, ao mudar a sua versão na fase judicial, certamente mentiu, pois quando os homicidas foram presos em Bauru, os acompanhava e portanto, conhecia-os.

Tais testemunhas não possuíam qualquer razão plausível para mentir e prejudiciar um inocente. Até porque, não é o réu um pacato cidadão, de sorte a vigir em seu prol, com toda a sua pujança, o princípio da presunção da inocência. Ao reverso, ante sua extensa folha de antecedentes como se vê a f. 62/5. É o réu, presumivelmente, afeito e experiente às lidas criminais, conhecedor dos ardis e subterfúgios para iludir a Justiça.

Se alcoolista, ou não, isto é irrelevante. Soa desarrazoado que a autoridade policial fosse tomar o depoimento de alguém que estivesse ébrio. Da mesma forma, o MM. Juiz não iria inquiri-lo em tais condições.

Depreende-se, pois, que a conduta do réu foi típica e amoldou-se com justeza ao preceito primário da norma penal incriminadora lançada na denúncia. Em sua conduta o elemento subjetivo (dolo genérico) consistente na vontade consciente dirigida à afirmação falsa (“Cidinho não chegou a comentar nada com o depoente” – f. 12) ou ao silêncio em relação ao que sabe (“Não se lembra de Cidinho ter-lhe dito juntamente com Índio que haviam matado um rapaz desconhecido a pedradas” – f. 12).

Ainda que o desate no processo em que prestou o perjúrio tenha sido em desacordo com a acusação (f. 113/4), não há qualquer reflexo para esta ação. Por oportuno:

“Sendo o delito de falso testemunho de natureza instantânea, que se aperfeiçoa com a assinatura do respectivo termo, a providência recomendada pelo art. 40 do CPP independe de solução do processo civil em que foi prestado” (2)

“O delito de falso testemunho consuma-se no instante em que a pessoa chamada a depor em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral, faz afirmação inverídica, nega ou cala a verdade sobre fato juridicamente relevante. Encerrado o depoimento, o crime está aperfeiçoado, independentemente de qualquer indagação a respeito da possível influência que ele venha a ter no desfecho da causa em que foi prestado. Por isso mesmo, nada impede a apuração da responsabilidade da testemunha antes de finda a causa” (3)

“O crime de falso testemunho se caracteriza pela simples potencialidade de dano para a Administração da Justiça, não ficando condicionado à decisão judicial condenatória no processo, em que se verificou. Recurso de habeas corpus denegado” (4).

Procede, pois, a pretensão punitiva do Estado-acusador.

Passa-se a dosimetria.

O réu apresenta maus antecedentes. Além dos vários processos constantes em sua folha de antecedentes, apresenta duas condenações definitivas (f. 65 e 81), conquanto não gerem reincidência. Sua conduta no processo foi reprovável, demonstrando menoscabo para com a Justiça, sequer comparecendo a audiência designada para seu interrogatório.

O perjúrio foi feito em processo que versava sobre homicídio qualificado, ou seja, o crime que atinge o bem mais relevante: a vida. “O homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinqüência violenta ou sanguinária, que representa como uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso anormal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada.” (5). Imperioso, portanto, considerar que o falso testemunho foi obrado em crime tão grave e, dest’arte, a reprimenda deve guardar correlação. Fixo a pena-base no dobro do mínimo legal, i.e., em 02 anos de reclusão e 20 dias-multa. Acresço a pena em 1/3, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 342, montando, a reprimenda, em definitivo, à míngua de outras causas ou circunstâncias de oscilação, em 02 anos e 08 meses de reclusão e 26 dias-multa.

O valor unitário da diária, fixo no piso.

O regime inicial de cumprimento da corporal deve ser o mais gravoso. Assim, pelos motivos encimados, tecidos para a fixação da pena-base, bem como, nos termos do artigo 33, parágrafo 3o., do Código Penal. Cometeu o perjúrio em feito que versava sobre brutal homicídio. Não olvida-se, ademais, que o réu apresenta forte desajuste social e personalidade voltada ao crime, sem que até o momento tenha recebido sanção efetiva (multa – sequer paga – e prestação de serviços à comunidade – não cumprida – convolada em regime aberto – não cumprido por falta de casa de albergado- alterado para Prisão Albergue Domiciliar que, por total falta de estrutura para fiscalização representa a mais desabrida impunidade, f. 65 e 81) de sorte a inibir sua trajetória na senda criminosa. É o laxismo penal dominante em nosso ordenamento jurídico, conducente e incentivador a criminalidade e recidiva (o mal corta-se pela raiz, conforme o adágio e assim deveria ser). O regime inicial de cumprimento de pena será o fechado.

Não possui a pertinência subjetiva para o disposto no artigo 44 do Código Penal.

Dispõe o art. 594 do CPP óbice para o réu apelar em liberdade, salvo se primário e de bons antecedentes. O réu não ostenta bons antecedentes.

“A exigência de que o réu condenado em primeiro grau se recolha à prisão para apelar não fere a Constituição. É compatível com a Carta da República o artigo 594 do CP. Precedentes do STF” (6).

Nestes termos:

JULGO PROCEDENTE a presente ação penal e o faço para CONDENAR o réu SÉRGIO JURANDIR DA SILVA, RG n. xxxxxxx-SP, natural de Botucatu-SP, nascido no dia 07/03/1.976, filho de xxxxx e xxxxxxxx, à pena de 02 (dois) anos e 08 (oito) meses de reclusão e 26 (vinte e seis) dias-multa, como incurso nas regras do artigo 342, parágrafo 1o., do Código Penal.

Expeça-se mandado de prisão.

Oportunamente, lancem-se-lhe o nome no rol dos culpados.

Custas na forma da Lei.

P.R.I.C.

Botucatu, 05 de março de 2.004.

ITALO MORELLE

Juiz de Direito

Notas de rodapé:

1- Da Prova No Processo Penal – Adalberto José Q.T. de Camargo Aranha – Saraiva – 3a. Ed. – 1.994 – p. 78

2 – TJSP – HC – Rel. Des. Italo Galli – RT 531/294

3 – TJSP – HC – Rel. Des. Fernando Prado – RT 553/346

4 – STF – RHC – Rel. Min. Rafael Mayer – RTJ 95/573

5 – Nelson Hungria – Comentários ao Código Penal – Vol. V – Forense Rio, 1958, p. 25.

6 – STF – HC – Rel. Min. Francisco Rezek – JSTF-LEX 232/257.

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