Trabalho escravo

Senador João Ribeiro é denunciado ao STF por trabalho escravo

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18 de junho de 2004, 12h36

O procurador-geral da República, Claudio Fonteles, ofereceu denúncia ao Supremo Tribunal Federal contra o senador João Batista de Jesus Ribeiro (PFL-TO) e o administrador da fazenda dele, Osvaldo Brito Filho. Eles são acusados de aliciar 38 trabalhadores rurais e reduzi-los à condição análoga a de escravo.

O crime foi constatado pelo grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho, entre os dias 10 e 13 de fevereiro de 2004, durante visita à fazenda Ouro Verde, de propriedade do senador, no município de Piçarra, no Pará. A investigação foi motivada por denúncia de um trabalhador e da Comissão Pastoral da Terra da Diocese de Araguaína (TO).

Os trabalhadores dormiam em ranchos cobertos por folhas de palmeiras, abertos nas laterais e construídos sobre brejos, o que provocava mau cheiro e umidade excessiva. Não havia acesso à água potável, nem instalação sanitária, cozinha ou refeitório.

Segundo Fonteles, “a repugnante e arcaica forma de escravidão por dívidas foi o meio empregado pelos denunciados para impedir os trabalhadores de se desligarem do serviço”. Eram descontados de suas diárias os valores gastos com alimentação e até com equipamentos de trabalho, como botina e chapéu. Em razão da longa distância entre a fazenda e a cidade, os empregados eram obrigados a fazer compras na “cantina”, onde os preços das mercadorias eram bem superiores aos dos mercados locais.

O relatório dos fiscais do Ministério do Trabalho aponta que, além das condições degradantes a que os trabalhadores eram submetidos, ficou configurada a escravidão pelos trabalhos forçados “realizados aos sábados completos e aos domingos até o meio dia, sem nenhuma folga semanal, bem como pelas jornadas exaustivas (de até doze horas) e a restrição de locomoção por omissão do pagamento dos salários”.

Segundo o site da Procuradoria-Geral da República, os acusados incorreram nas penas dos artigos 207, § 1º; 203, § 1º, I e 149 do Código Penal, o que poderá acarretar reclusão de até 8 anos.

O senador já apresentou defesa contestando a denúncia do MP. De acordo com a assessoria de imprensa, os depoimentos dos próprios empregados contradizem a denúncia. Além disso, segundo a assessoria, ele é um dos senadores que vem lutando contra o trabalho escravo.

Leia a defesa do senador:

À

Egrégia Procuradoria-Geral da República.

Processo nº MPF/PGR nº 1.00.000.001861/2004-91

EXMO. SR. PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA PROF. CLÁUDIO FONTELES,

JOÃO BATISTA DE JESUS RIBEIRO, Senador da República, vem a ilustre presença de Vossa Excelência, por meio do Advogado signatário, expor e requerer o seguinte:

PRELIMINARMENTE

Cada uma das condutas descritas no Relatório de fls. 9-42 justificou os Autos de Infração de fls. 258-292 impugnados na via administrativa, por meio de recurso interposto perante a Delegacia Regional do Trabalho do Estado do Pará, nos termos da Certidão anexa.

Por enquanto, não houve desfecho do citado processo administrativo, ficando claro que a decisão administrativa influenciará na estrutura do crime, ou seja, no caso concreto, a punibilidade da conduta do agente está subordinada à decisão administrativa. A toda evidência, o provimento do recurso administrativo afastará, entre outras, as considerações feitas pelos signatários do citado Relatório, quanto à existência da suposta jornada de trabalho exaustiva que deu ensejo ao Auto de Infração de fl. 168.

In casu, todas as informações constantes às fls. 9-42 que justificaram os Autos de Infração de fls. 258-292 e o efetivo pagamento das verbas rescisórias (fls. 186-256) basearam-se nas afirmativas feitas pelos integrantes do Grupo de Fiscalização Móvel, à revelia do contraditório mínimo e de qualquer início de prova material, com base em supostas declarações prestadas pelos empregados, sem qualquer indicação precisa sobre o nome de quem ouviu e o que ouviu e em quais circunstâncias.

Apenas 7 trabalhadores prestaram depoimentos às fls. 297-310. No recurso administrativo, a se desenvolver sob o crivo do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º LV), as afirmativas feitas pelos integrantes do Grupo de Fiscalização Móvel, em nome dos trabalhadores, sofrerão a devida impugnação, podendo, inclusive, haver desconstituição dos respectivos autos de infração, bem como das afirmativas referidas.

Mutatis mutandis, no sentido de que o processo penal deve aguardar o desfecho do processo administrativo, aliás, decidiu a Suprema Corte nos julgamentos do HC 81.611 e do RHC 82.390.

CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS

A soma das três glebas de terras de propriedade do Requerente corresponde a 222,92 hectares (fls. 49 e 57), caracterizando uma média propriedade rural, segundo o art. 4º III da Lei nº 8.629/93. A fazenda de propriedade do Requerente está localizada no Município de Piçarra (PA), a aproximadamente 6 quilômetros do povoado de Boa Vista (PA).


De acordo com o Censo IBGE/2000, dos 232 distritos do Estado do Pará, em 178 (76%) deles a água não recebe qualquer tipo de tratamento. No Município de Piçarra (PA), onde se encontra a fazenda do Requerente, dos 2.846 domicílios particulares apenas 1 (0,035%) possui banheiro ou sanitário com esgotamento sanitário; em 1.606 (56,4%) há banheiro ou sanitário, porém sem esgotamento sanitário; em 1.239 (43,5%) não foram encontrados sanitários ou banheiros. Dos 2.846 domicílios particulares, em apenas 14 (0,49%) há rede geral de abastecimento de água; em 2.699, o abastecimento de água é feito por meio de poço ou nascente, e em 133 deles, é feito de outras formas. Dos domicílios existentes no Município de Piçarra, em 2.648 (93%) não há coleta de lixo.

Observe-se que o IBGE emprega a palavra domicílio (no sentido de morada) em vez da palavra casa, possivelmente porque em muitos casos a moradia não apresenta condições mínimas para ser chamada de casa (no sentido de edificação).

Considerando os dados estatísticos referidos, não é difícil encontrar no Estado do Pará e nos Estados mais pobres do Brasil, tanto na zona rural como na urbana, um cidadão (e às vezes toda uma família) morando em ranchos de palha sem parede ou com parede de pau-a-pique, necessidades fisiológicas feitas no mato ou a céu aberto, contando apenas com uma refeição por dia, enfim, vivendo abaixo da linha da pobreza. Há, nesses casos, violação à dignidade humana, pelas condições degradantes de vida. Porém, tal falha não pode ser imputada a esta ou àquela pessoa, já que se trata de uma situação generalizada, conforme se denota dos dados do IBGE citados.

Entende-se que o Estado não vem cumprindo sua função social nessas áreas, uma vez que ainda não conseguiu implementar políticas públicas necessárias ao combate às desigualdades sociais e regionais. E esse estado de indiferença, miséria e fome, deve ser objeto de soluções por meios políticos, sociais e econômicos. Com certeza, o braço armado do Direito Penal não corrigirá a desigualdade lá existente, nem em qualquer outro lugar.

O sofrimento e a miséria do homem do campo não serão erradicados com a prisão de fazendeiros. E ao que parece, essa não foi – nem poderia ser – a vontade do legislador, ao aprovar a Lei nº 10.803/2003 e alterar o art. 149 do Código Penal. O objetivo da Lei nº 10.803/2003 não é usar Juízes Criminais para combater irregularidades de cunho trabalhista, sob pena de se chegar à prisão por dívida vedada constitucionalmente (CF, art. 5º, LXVI). Também não foi fazer com que verbas rescisórias sejam substituídas por sanções de índole penal, sob pena de visível lesão aos direitos dos trabalhadores. Nem tampouco foi transformar o Direito Penal em instrumento de política pública, no combate à miséria que assola o país, às desigualdades sociais e regionais.

Inegavelmente, a Lei nº 10.803/2003 visou erradicar o trabalho escravo e não a pobreza, a miséria, as desigualdades regionais e sociais. E por trabalho escravo deve-se considerar aquele marcado pela restrição à liberdade do trabalhador, pela retenção, redução a valor ínfimo ou gratuidade salarial, pela coação, ameaça ou violência do empregador contra o trabalhador. No trabalho escravo, há a submissão total e involuntária da vítima ao poder do empregador-dominador.

Enfim, trabalho escravo é aquele no qual o dolo (vontade livre e consciente) do empregador visa, precipuamente, subjugar o empregado de forma total, impedindo que esse procure melhores condições de vida e qualquer tipo de ajuda ou socorro público ou privado; obriga e coage o empregado a trabalhar e a cumprir jornada exaustiva, em condições degradantes de trabalho, isto é, condições nas quais há um rebaixamento aviltante ou ignomioso do trabalhador, decorrente de ato comissivo (não se admite a forma omissiva) do empregador, devendo tal rebaixamento ter como parâmetro o nível social vivido no dia-a-dia pelo empregado.

A prisão e condenação pública de fazendeiros sob a pecha de escravocratas não combatem irregularidades trabalhistas no meio rural, tampouco asseguram os direitos trabalhistas ao homem do campo. Esses direitos devem ser precedidos de campanhas que visem esclarecer, ensinar e conscientizar o povo, por meio de campanhas educativas, similares àquelas feitas em Brasília, com relação ao uso obrigatório de cinto de segurança. Na verdade, iniciativas desse tipo, durante muito tempo, destinaram-se basicamente ao empregador e ao trabalhador urbano, deixando o meio rural sem informação e à deriva.

É preciso que o Estado crie formas especiais de crédito, para que os fazendeiros – que passam por uma situação econômico-financeira difícil, com crescente empobrecimento – possam implementar os investimentos necessários, visando melhorar as condições de vida e de trabalho no campo.


DA ATUAÇÃO DO GRUPO DE FISCALIZAÇÃO MÓVEL

Sabe-se que o seguro-desemprego é um benefício previdenciário pago pelo Ministério do Trabalho e Emprego (CF, art. 201, III) ao trabalhador urbano ou rural dispensado sem justa causa ou em decorrência de rescisão indireta. O prazo de carência é de 6 meses, variando apenas o momento do início de sua contagem.

As parcelas do seguro-desemprego são pagas da seguinte forma: 3 parcelas, se o empregado comprovar o vínculo empregatício de no mínimo 6 e no máximo 11, dos últimos 36 meses; 4 parcelas, se comprovar que trabalhou no mínimo 12 e no máximo 23 meses; 5 parcelas, se provar que trabalhou no mínimo 24 meses no período referência.

Excepcionalmente, o seguro-desemprego é pago ao trabalhador reduzido à condição de escravo, por força do disposto no art. 2º da Lei nº 10.608/2002. Segundo esse artigo, ele terá direito a 3 parcelas de um salário mínimo cada uma a título de seguro-desemprego. A carência do seguro-desemprego – de 6 meses, para os demais trabalhadores rurais ou urbanos – é eliminada para o trabalhador-escravo. Não bastasse, o trabalhador-escravo não sofre a limitação imposta aos demais trabalhadores rurais ou urbanos, relativa ao período aquisitivo de 16 meses. Ou seja, nada impede que um trabalhador receba sucessivos seguros-desemprego, caso seja, em mais de uma oportunidade, qualificado como trabalhador-escravo.

No caso concreto, o documento de fls. 291 comprova que os 12 trabalhadores listados nos números de 20 a 31 (Delso, Sidnei, Manoel, Luiz, Sebastião, José, Dionézio, Lindon, Edvaldo, Lino, Jairo e José Ribamar) começaram a trabalhar no dia 04/02/2004, tendo o Grupo de Fiscalização Móvel chegado à fazenda do Requerente 7 dias depois, às 17h do dia 11/02/2004 (fl. 14), quando interrompeu a atividade laboral, ou seja, esses empregados trabalharam somente 7 (sete) dias. Apesar do curto período trabalhado, cada um deles recebeu R$ 911,00 (novecentos e onze reais) e mais 3 (três) parcelas de R$ 240,00 cada uma, a título de seguro-desemprego. Em suma, cada um desses trabalhadores recebeu R$ 1.631,00 (fls. 196, 197, 202, 204, 208, 210, 211, 212, 214, 215, 219, 220, 223, 224, 226, 229, 230, 232, 240, 242, 246 e 249). Não se pode perder de vista que, para o homem do campo, R$ 1.631,00 representa um valor razoável, em função da precariedade regional acima descrita, especialmente para trabalhar 7 dias.

Segundo o documento de fls. 291 dos 38 trabalhadores, 34 ainda não havia completado um mês de trabalho, sendo que 12 deles trabalhavam a apenas 7 dias; dos três restantes, 2 estavam trabalhando há 1 mês e 2 dias, pois foram contratados no dia 09/01/2004, e um há 4 meses e 10 dias. Todas as informações que embasaram as rescisões contratuais (aviso prévio, salários, 13º salário proporcional, etc) foram conseguidas com base, exclusivamente, em informações obtidas unilateralmente pelo Grupo de Fiscalização Móvel.

No termo de rescisão do contrato de trabalho de fl. 187, consta que o empregado Joilton Martins Costa (ali equivocamente chamado de Jailton), começou a trabalhar no dia 1º/10/2003, e que percebia R$ 30,00 por dia. Já à fl. 299, esse trabalhador confessou ao Delegado de Polícia Federal que integrava o Grupo de Fiscalização Móvel, que “estava recebendo o salário em dia”. Não obstante essa confissão, à fls. 187, esse empregado percebeu R$ 3.385,64 pelas verbas rescisórias (incluindo salários não pagos) e mais 3 parcelas de seguro-desemprego, totalizando R$ 4.105,64.

Sabe-se que, em regra, no contrato por prazo determinado verbal ou tácito (CLT, art. 443), por questões óbvias, o empregado não tem direito a aviso prévio. Como exceção a essa regra, tem-se a hipótese do art. 481 da CLT que é inaplicável in casu. No caso concreto, nos termos de rescisão do contrato de trabalho de fls. 186-220 constou que o contrato de trabalho era por tempo indeterminado. Tal iniciativa fez com que os trabalhadores tivessem direito ao aviso prévio.

Contudo, vários trabalhadores registraram a transitoriedade do serviço ao afirmar que o trabalho consistia na roçada de pastos (“roço de juquira”), a qual duraria cerca de 30 dias, bem como que a previsão do término era o final de fevereiro de 2004. Então, receberiam o restante dos salários, uma vez que houve adiantamentos na fase de contratação (fls. 70, 84, 85, 88, 94, 98 e 100).

Não há dúvida, que o término do prazo do contrato de trabalho estava condicionado à realização de certo acontecimento suscetível de previsão aproximada (CLT, art. 443, § 1º). Sabe-se que o termo final do contrato por prazo determinado “pode ser o advento de um acontecimento suscetível de previsão aproximada, em razão do qual o contrato haja sido celebrado (o término da colheita, o término da temporada de verão, etc.).”


A toda evidência, o contrato de trabalho, firmado verbalmente, era por tempo determinado, dada a sua transitoriedade. Contudo, tal circunstância também foi desconsiderada pelo Grupo de Fiscalização Móvel, o que aumentou significativamente o valor das verbas rescisórias.

Praticamente, todos os empregados confessaram ter recebido adiantamentos antes de ir para a fazenda e de iniciar o serviço (fls. 61, 63, 65, 67, 69, 71, 73, 75, 70, 79, 81, 85, 90, 92, 93, 96 e 100). Os adiantamentos de salários, como ocorre com freqüência no meio rural, são feitos para que o trabalhador possa deixar certa quantia em dinheiro para o sustento da família que permanece na cidade. Assim, entende-se que os adiantamentos referidos demonstram a boa-fé do trabalhador e do empregador: desse, porque confiou naquele que poderia receber o adiantamento, gastá-lo e não ir para a fazenda; do trabalhador, porque mesmo podendo não comparecer ao local do serviço, para lá se dirige espontaneamente, dando início ao contrato de trabalho firmado verbalmente.

Não obstante isso, o Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho demonstrou certa dose de má-fé ou de ausência de conhecimento, ao não descontar os valores de tais adiantamentos, amplamente confessados pelos empregados nas verbas rescisórias pagas às fls. 186-220, em que pese constar campo específico no formulário respectivo (item 49).

Verifica-se que qualificar o trabalhador como escravo e o contrato de trabalho como de prazo indeterminado e, ainda, não descontar os valores recebidos como adiantamento terminaram por conceder aos trabalhadores, mesmo àqueles que só trabalharam sete dias, o direito a 3 salários-mínimos a título de seguro-desemprego, a um mês de aviso prévio, à multa rescisória e à possibilidade de não ver descontados os valores adiantados no início da contratação.

Por tudo isso, as declarações dos trabalhadores qualificados com escravos pelo Ministério do Trabalho, quando contrárias ao empregador, devem ser analisadas com moderação e cautela redobrada, porque uma sutil mudança em suas declarações (espontânea ou provocada por alguém) poderá colocá-los numa situação financeira extremamente vantajosa, ainda que isso represente a incriminação do empregador. Nas hipóteses em que a palavra da parte ou da testemunha possa lhe conferir algum tipo de ganho financeiro, o ideal é que ela venha sempre acompanhada de algum tipo de prova material.

DADOS ESPECÍFICOS DESTE CASO

De acordo com o Relatório de fl. 22, a co-responsabilidade penal do Requerente se baseia na outorga da procuração de fl. 46, no dia 13/04/2004. Relembre-se que a fiscalização ingressou do referido imóvel no dia 11/04/2004, às 17h (fl. 14), dois dias antes da outorga da procuração citada, portanto:

Quem dirigia os trabalhadores era o Senhor Osvaldo Brito Filho, pessoa que goza da inteira confiança do fazendeiro, e que tudo faz em nome deste (Conforme Procuração, Cópia Anexa). (Grifos nosso)

Os poderes outorgados na procuração de fl. 46 eram específicos para resolver as questões relativas à responsabilidade trabalhista dos empregados. Sabe-se que a participação e a co-autoria no Direito Penal exigem os requisitos específicos do caput do art. 29 do Código Penal. Na espécie, dois deles ganham relevo: o nexo de causalidade entre condutas e resultado e o vínculo subjetivo entre os agentes.

No caso concreto, sequer há registro da existência de, pelos menos, uma ordem do Requerente, no sentido de que seu administrador agisse assim ou assado, ou que o Requerente tenha, de forma dolosa, concorrido para qualquer uma das irregularidades encontradas na Fazenda de sua propriedade, que fica a mais de 1300 quilômetros de Brasília. As fotografias anexas mostram a sede da Fazenda e, de forma específica, a casa, a cama, o banheiro, enfim, as instalações usadas pelo Requerente sempre que vai a sua Fazenda. Os trabalhadores, entretanto, não disseram que o Requerente tenha ido à Fazenda no período que ali estiveram trabalhando, ou que, de alguma forma, ele tivesse conhecimento do que estava acontecendo.

Todos os empregados sabiam o valor dos respectivos salários. Vários afirmaram que recebiam R$ 18,00 por dia, “livre de almoço, jantar e café da manhã” (fls. 69 e 71); um deles disse que percebia R$ 30,00 por dia. Tais afirmativas indicam que eles faziam três refeições diárias, diferente de boa parte dos brasileiros que só fazem uma. Todos afirmaram ser a comida boa ou razoável (fls. 84, 96 e 98), e que essa era feita na sede da fazenda. No Relatório de fls. 29, os signatários do citado Relatório afirmaram que a alimentação dos trabalhadores era feita com “arroz, feijão, com pouca carne e sem verduras, ou seja, não era servida alimentação balanceada”. Em síntese: arroz, feijão e carne.


O empregado Edvaldo Dantas Oliveira fez questão de esclarecer que “podia sair para comer em outro lugar”. Os empregados, à unanimidade, afirmaram que as refeições (café da manhã, almoço e jantar) não eram cobradas, ou seja, “sem desconto nas diárias” (fls. 309).

Vários empregados também afirmaram que iriam receber seus salários ao término do serviço, o que ocorreria até o fim de fevereiro de 2004, com o término da roçada de pasto. Deles, 34 ainda não haviam completado um mês de trabalho, ou seja, nada corrobora (ou comprova) a afirmativa de que eles não iriam receber seus salários antes de completar um mês de serviço. Desses trabalhadores, doze (12) começaram a trabalhar sete (7) dias antes do início da fiscalização.

O único trabalhador com mais de um mês e dois dias de trabalho (fls. 291, item 1), Joilton Martins Costa, confessou às fls. 299 o seguinte: que seus salários estavam em dia; que trabalhava de 6h às 11h30min e das 13h até 18h; que não trabalhava aos domingos; que a água para beber era retirada do córrego; que há um banheiro de tábua para tomar banho e que, para as necessidades fisiológicas, era utilizada uma privada de tábua sem vaso sanitário.

Não há notícia, nem mesmo uma letra sequer, capaz de comprovar que o Requerente, em algum momento de sua vida, tivesse deixado de pagar a qualquer um de seus empregados, parcial o integralmente.

O Grupo de Fiscalização Móvel sinalizou para o fato de que o esclarecimento do empregador pode mudar o quadro fático atual no campo, quando consignou à fl. 39:

“Esclarecimento ao empregador, por meio do seu preposto, quanto à forma correta de organizar o ambiente de trabalho e quanto ao modo legal de contratar trabalhadores rurais.” (Grifos nosso)

Tendo o Grupo de Fiscalização Móvel entendido que era válido – tanto que adotou essa iniciativa – o esclarecimento feito ao empregador, por meio de seu preposto, quanto à forma correta de organizar o ambiente de trabalhado e quanto ao modo legal de contratar trabalhadores rurais, não há qualquer dúvida que a melhor conclusão é aquela segundo a qual tais esclarecimentos eram suficientes à alteração do quadro encontrado na fazenda do Requerente, pondo fim às irregularidades ali identificadas. Com isso, não se pode negar que a ausência de esclarecimentos foi decisiva na prática dessas irregularidades de índole não-penal. Porém, dita ausência pode, em tese, até traduzir a ocorrência de culpa decorrente de negligência ou, de outro lado, até mesmo de omissão, mas jamais indicará a prática do dolo exigido no art. 149 do Código Penal.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A TIPICIDADE

(Primeira Parte)

As disposições do art. 149 do Código Penal podem ser subdivididas da seguinte forma: condutas criminosas correspondentes ao tipo penal, descritas no caput do artigo; formas equiparadas descritas no § 1º e por fim, causas de aumento de pena do § 2º que, não sendo autônomas, dependem da ocorrência de uma das condutas descritas no caput ou no § 1º do artigo em estudo.

A tipificação do crime previsto no art. 149 do Código Penal – redução a condição análoga à de escravo – ou das formas equiparadas do § 1º deste artigo está condicionada à presença de dolo específico. Para alguns, esse dolo pode ser genérico, e o crime comissivo. Porém, em nenhuma hipótese se admite a modalidade culposa ou omissiva e, muito menos, a responsabilidade objetiva (sem culpa).

Os verbos do tipo penal do caput do art. 149 do Código Penal são os seguintes: submeter o empregado a trabalhos forçados; submeter o empregado à jornada exaustiva; sujeitar o empregado a condições degradantes de trabalho; restringir, por qualquer meio, a locomoção do empregado em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Os verbos-tipo que definem as formas equiparadas do § 1º do art 149 do Código Penal são os seguintes: cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; manter vigilância ostensiva no local de trabalho, com o fim de retê-lo no local de trabalho; apoderar-se de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

Observa-se que dos sete (7) verbos-tipo elencados no caput e no § 1º do art. 149 do Código Penal, quatro (4) deles (restringir, cercear, manter e apoderar-se) se referem à restrição imposta pelo empregador-dominador à liberdade de locomoção do empregado, impedindo-o de sair do local de trabalho.

No caso em exame, os 38 trabalhadores ouvidos às fls. 61-100 e às fls. 297-310 foram unânimes ao afirmar que não eram proibidos de sair da fazenda, que podiam ir embora a qualquer momento e que jamais sofreram qualquer tipo de coação ou ameaça (fls. 70, 74, 80, 298, 300, 302, 304, 306, 308 e 310).


Nenhum dos trabalhadores expressou sua vontade de sair da fazenda por qualquer motivo, nem também que tivesse havido uma vontade sua frustrada por iniciativa do Requerente, ou por eventual falta de recebimento de salários, por exemplo. Diante disso, não há por que se falar nas formas equiparadas do § 1º do art. 149 do Código Penal.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A TIPICIDADE

(Segunda Parte)

Resta analisar, por fim, os três verbos-tipo restantes, elencados no citado caput do art. 149 do Código Penal: submeter o empregado a trabalhos forçados; submeter o empregado a jornada exaustiva; sujeitar o empregado a condições degradantes de trabalho.

Antes de iniciar, um alerta: Os verbos submeter e sujeitar do caput art. 149 do Código Penal não podem ser confundidos com a subordinação jurídica que integra o conceito de empregado (CLT, art. 3º). Esta é jurídica, enquanto aqueles necessitam ser dolosos.

Os verbos submeter e sujeitar são tratados no “Novo Dicionário Aurélio” como sinônimos, significando subjugar (submeter pela força, inclusive de armas), obrigar ou coagir.

O empregado Antônio Alves da Silva, ouvido à fl. 297, deixou claro que seu filho mora no povoado de Boa Vista, mais ou menos a 6 quilômetros da fazenda. Já Evandro Marinho dos Santos afirmou, à fl. 301, que ele e a ajudante da cozinheira da fazenda iam, diariamente, para a fazenda de bicicleta, percorrendo um trecho de 12 quilômetros (ida e volta).

Essa informação torna indiscutível que os trabalhadores não precisavam pernoitar na fazenda e que podiam ir para o distrito de Boa Vista em busca de melhores acomodações. Com isso, cai por terra a afirmativa constante à fl. 29 que procura insinuar a presença de “recrutamento fraudulento”, ao afirmar que o empregador, para conduzir os trabalhadores ao local do serviço, “prometia boas acomodações, boa alimentação e um bom ambiente de trabalho, além de garantir outros direitos trabalhistas”. Essa afirmativa não encontra amparo mínimo na prova destes autos, muito menos nas declarações de fls. 297-310. Trata-se de lamentável bravata sensacionalista e de inaceitável má-fé praticadas pelos signatários do citado Relatório (fl. 40).

Se é certo que as condições dos alojamentos existentes na fazenda não eram boas, tendo sido consideradas ruins pelos empregados, não é menos certo que os empregados não eram obrigados a dormir ali, tanto que dois deles preferiam dormir e morar na cidade, retornando à fazenda na manhã do dia seguinte. Já o empregado Antônio Alves da Silva, ouvido às fls. 297, asseverou que ele, juntamente com mais sete (7) trabalhadores, preferiram se transferir por contra própria para o alojamento de uma das fazendas vizinhas, de propriedade do Deputado Palmeri, demonstrando o grau de liberdade (e de opção) assegurado aos empregados.

Por ouro lado, o empregado Antônio Alves da Silva (fl. 297), embora tivesse um filho morando no povoado de Boa Vista, preferia permanecer na fazenda, em vez de ir dormir na casa do filho. Tal constatação deixa claro que as acomodações encontradas na casa de seu filho não eram melhores que aquelas oferecidas gratuitamente na fazenda, não justificando uma caminhada de 6 quilômetros. Tal constatação dá sustentação aos dados divulgados pelo IBGE, mencionados no início desta petição.

O Relatório do Grupo Móvel, à fl. 31, admite que mesmo sem qualquer dinheiro, os trabalhadores poderiam ir até o povoado de Boa Vista, a cerca de 6 quilômetros do local de trabalho:

“Sem o pagamento das “diárias” eles só poderiam ir até o povoado mais próximo, Boa Vista. Este era o limite do real direito de ir e vir dos trabalhadores que estavam na Fazenda Ouro Verde, por nós inspecionada”.

A afirmativa feita à fl. 31, segundo a qual o povoado de Boa Vista era o real direito de ir e vir dos trabalhadores, é de cunho subjetivo, sensacionalista e desprovido de qualquer base fática, até porque nesse povoado tem posto policial e de saúde, telefone público, grupo escolar e rodoviária, de onde partem ônibus para outras cidades.

Diferente do que consta no Relatório de fls. 14-40, o Requerente não tem armazém em sua fazenda; tem, na verdade, uma pequena despensa. Os cadernos apreendidos às fls. 102 comprovam que as poucas coisas adquiridas pelos empregados, individualizadas às fls. 303 e 305 (fumo, cigarro, caderno, pasta de dente, isqueiros, pilhas e botina), eram insuficientes para torná-los reféns do empregador. Tanto que vários empregados disseram que não compraram nada na fazenda (fls. 297, 300 e 301).

Tomando por base a situação de José Sena (fl. 106) e Sebastião Gomes (fl. 107), verifica-se que tudo que eles pegaram na despensa da fazenda chegou, respectivamente, somente a R$ 8,95 e R$ 17,00 (aquisição de uma botina). Esses valores afastam, peremptoriamente, as idéias de “servidão por dívida” ou de “dívida impagável”, citadas no Relatório de fl. 26, principalmente porque a diária de trabalho era de R$ 18,00 e R$ 30,00 (fls. 299), ou seja, toda a dívida era inferior a um dia de serviço. Quanto à afirmativa segundo a qual a botina vendida na fazenda por R$ 17,00 (a prazo) era vendida em Araguaína por R$ 12,00 (à vista), não se sabe se a qualidade era a mesma, se dita informação era verdadeira ou quando ocorreu a referida compra. Sabe-se que o preço de uma botina pode variar de R$ 10,00 a mais R$ 100,00, dependendo de fatores como o dia da compra, qualidade, marca, se a compra foi à vista ou a prazo, se foi feita em loja ou na feira, etc.


O Relatório de fl. 50 foi preciso ao consignar, no item D (segurança armada), que não foi encontrada qualquer arma na fazenda. Essa afirmativa foi corroborada pelas declarações dos trabalhadores Antônio Alves da Silva (fl. 298), Evandro Marinho dos Santos (fl. 302), Joel Barros da Silva (fl. 304), Josivaldo dos Santos Miranda (fl. 305), José Elkys de Almeida Coelho (fl. 304) e Edvaldo Dantas de Oliveira (fl. 310), entre outros, que afirmaram nunca ter visto “alguém armado na fazenda”.

Nesses depoimentos, os empregados referidos também foram unânimes em afirmar que “não havia fiscal e nem gato’’ (uma espécie de fiscal rural). Se não existiam fiscal nem gato e não houve qualquer divergência nesse sentido, quem subjugava, obrigava ou coagia os empregados? E em nome de quem agia? Sem essa resposta, não é possível atender a qualquer dos requisitos da participação ou da co-autoria, principalmente o nexo de causalidade entre condutas e resultado e o vínculo subjetivo entre os agentes.

A Constituição Federal na alínea “c” do inciso XVLII do art. 5º impediu o trabalho forçado como pena, assim considerado o trabalho coercitivo e sem remuneração, no qual o Estado obrigaria o preso a laborar contra a sua vontade. No caso concreto, não há qualquer registro assinalando que os trabalhadores eram forçados a trabalhar ou que trabalhavam contra a sua vontade. Todos os trabalhadores informaram o valor que receberiam pelos serviços prestados: em regra, R$ 18,00 por dia. Ainda não havia chegado a data acordada para o pagamento dos trabalhadores, que era o fim de fevereiro de 2004, não se podendo falar em mora ou inadimplência do empregador. Muitos receberam adiantamentos salariais.

In casu, vários trabalhadores se deslocaram espontaneamente para a fazenda, utilizando-se de transporte público interestadual que sai de Araguaína (TO) com destino a Boa Vista (PA) (fls. 67, 77, 86, 88, 89, 92, 93 e 95). Alguns foram em uma “Van” fretada pelo encarregado da fazenda, “Sr. Osvaldo”.

Quanto à eventual jornada exaustiva de 12 horas diárias, o Relatório de fl. 18 e 36 a imputa ao Requerente a título de culpa (“o patrão era negligente”), porque ele teria deixado de consignar em registro mecânico, manual ou sistema eletrônico horários de entrada, saída e período de repouso efetivamente praticados pelo empregado. Reportando-se a esse ponto específico, a fl. 36 do dito Relatório reporta-se aos Autos de Infração de fls. 011316683 e 011316691 juntados, respectivamente, às fls. 260 e 168:

“Esta infração era facilitada porque o patrão era negligente quanto ao controle das jornadas.

(…)

Autos de Infração Lavrados (Cópias Anexas): 011316683, por deixar de consignar em registro mecânico, manual ou sistema eletrônico, os horários de entrada, saída e período de repouso efetivamente praticados pelo empregado, nos estabelecimentos com mais de 10 (dez) empregados (art. 74, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho) e 011316691, por exceder de 8 (oito) horas diárias a duração normal do trabalho (Art. 58 da Consolidação das Leis do Trabalho).

O Auto de Infração da fl. 166 é preciso quando assevera que não havia qualquer controle dos horários efetivamente laborados pelos trabalhadores:

“Em ação fiscal realizada em 11 de fevereiro de 2004 pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel na Fazenda supracitada, foi constatada que não há qualquer controle dos horários efetivamente laborados pelos trabalhadores, nos moldes e com as informações necessárias impostas, por expressa disposição legal.”

Nesse ponto, não havendo qualquer controle dos horários efetivamente laborados pelos trabalhadores, não se pode afirmar, com a segurança que exige o tipo penal do art. 149 do CP, ter havido jornada exaustiva. Sequer há registro de uso de relógios pelos trabalhadores ou do instrumento empregado por eles para, de forma precisa, marcar o horário de início e término da jornada. Isso porque foi afirmado, em nome de alguns trabalhadores, que a jornada de trabalho era de 6h às 12h30 e de 12h50 às 18h. Qual foi o critério usado pelo Grupo de Fiscalização Móvel para afirmar que a jornada de trabalho reiniciava às 12h50 (só faltou indicar os segundos) e que terminava às 18h?

O descontrole do empregador com relação ao período trabalhado gera a sua responsabilidade trabalhista, mas, por si só, não indica a prática de crime ou de conduta dolosa. Essa está condicionada à prática de ato comissivo, isto é, exigindo um agir coativo por parte do empregador, não bastando simples omissão ou irregularidade trabalhista.

Observa-se que um dos trabalhadores preferiu não declarar o prazo da jornada de trabalho (fl. 99). O empregado Raimundo Pereira da Rocha afirmou que tinha intervalo de duas horas para o almoço (fl. 84). Esse trabalhador também afirmou que a jornada de trabalho era de 6h30min às 17h. De acordo com esse trabalhador, a jornada era de 8 horas e meia, o que justifica um simples acréscimo a título de hora extra. Também esclareceu que aos domingos, “se decidisse trabalhar até 12hs, ganhava a jornada diária completa”. De acordo com os empregados, o trabalho no domingo não era obrigatório; porém, se o empregado decidisse trabalhar nesse dia, trabalharia até o meio dia e ganharia o dia integralmente.


O trabalhador Dionézio Lima de Souza afirmou que trabalhava de 6h às 18h, mas que tinha 2 horas de intervalo (fl. 91). De acordo com esse empregado, a jornada era de 10 horas, o que justifica o acréscimo permitido em lei a título de hora extra. Este mesmo horário, inclusive com 2 horas de intervalo, foi confirmado por Sidnei Souza Miranda, às fls. 95.

O trabalhador Raimundo Pereira disse que trabalhava de 6h30 às 17h (fl. 83); já o trabalhador Jairo Fernando Silva asseverou que a jornada de trabalho era de 7h às 17 horas, com intervalo de 11h às 13 horas para o almoço (fl. 97). O trabalhador Lindo Jonson afirmou que a jornada de trabalho era de 6h às 17h (fl. 77); José Elkys disse que trabalhava de 6h às 17h30min (fl. 71); Joel Barros disse que o horário era de 6h30 às 18h e que aos domingos seria de 7h às 12h (fls. 79-80).

No caso sub judice, não há unanimidade quanto à existência de uma jornada de 12 horas de trabalhos; em nenhum momento, qualquer empregado disse que o Requerente (ou o gerente da fazenda) o obrigava ou o submetia à essa jornada. A hipótese não é de jornada exaustiva, portanto: primeiro, porque não existiam fiscais ou gatos agindo em nome do empregador, cabendo aos trabalhadores decidirem o horário de começar e terminar a jornada de trabalho; segundo, porque sequer há registro de uso de relógios pelos trabalhadores ou de qualquer forma empregada por eles para marcar, de forma precisa, o horário do início e término da jornada de trabalho; terceiro, porque há consideráveis divergências nas declarações dos trabalhadores quanto aos horários de início e término da jornada de trabalho; quarto, porque o respectivo Auto de Infração sofreu a cabível impugnação na via administrativa; quinto, porque não há indícios mínimos em condições de comprovar que o Requerente (ou alguém agindo sob sua orientação), livre e conscientemente, tenha imposto eventual jornada exaustiva a seus empregados.

Inegável é que a configuração do crime tipificado no art. 149 do Código Penal exige a presença de dolo em vez de culpa. O Relatório de fl. 31 (item F) lança mão do dolo do Código Civil para tentar qualificar a conduta descrita no art. 149 do Código Penal, o que não deixa de causar inegável perplexidade.

Por fim, o verbo-tipo contido na frase “sujeitar o empregado a condições degradantes”, para fins do disposto no art. 149 do Código Penal, impõe que o empregador obrigue (por meio de força ou coação) o empregado a trabalhar em condições radicalmente diferentes daquelas existentes no meio social onde ele vive, ou em condições opostas às que lhe são oferecidas pelo Estado. O rebaixamento aqui deve ter como parâmetro as condições encontradas no meio social onde vive o trabalhador, levando em conta as políticas públicas implementadas pelo Estado ou as conquistas feitas pelo próprio trabalhador; do contrário, o Estado seria o maior dos escravocratas. Caso a ineficiência do Estado pudesse ser transferida para o fazendeiro, teríamos a seguinte situação: se ao Estado cabe o julgamento dos fazendeiros, a quem caberá o julgamento do Estado?

Toma-se a liberdade de citar o seguinte exemplo: tirar um adolescente criado em uma bela mansão no Lago Sul, em Brasília, e levá-lo para trabalhar no interior do Pará, fazendo-o dormir em uma rede num rancho de palha sem parede, a tomar banho no rio, a beber água corrente do córrego, a urinar e defecar no mato, sem dúvida é expô-lo a uma situação degradante e à condição análoga à de escravo. Se, contudo, o mesmo adolescente fizer tudo isso espontaneamente, movido pela proposta de salário que irá receber, a conclusão é outra. Porém, a primeira hipótese, caso seja protagonizada por um sertanejo paraense ou por um índio não é condição degradante, podendo, porém, caracterizar trabalho escravo, mas por outro motivo.

Os resultados divulgados pelo Censo do IBGE/2000 e citados no início desta petição, segundo os quais 76% dos distritos paraense não têm água tratada e que mais da metade da população do Município de Piçarra (PA) vive em domicílios sem banheiro ou sanitário demonstram bem o que se pretende dizer.

No caso concreto, não há qualquer notícia de que a água existente na fazenda do Requerente tenha causado qualquer problema de saúde aos trabalhadores, ou que fosse, de alguma forma, imprópria para o consumo. Vários trabalhadores disseram que a água para beber era retirada do “Córrego Caiano” (fls. 298, 300 e 302), que tem água corrente. Contudo, ninguém disse que era obrigado a beber água dessa ou de outra fonte de pior qualidade, nem que estava impedido de buscar outra fonte ou de ir à sede da Fazenda pegar água do filtro.

Insiste-se: as irregularidades trabalhistas, isoladamente, por mais graves que sejam, não tipificam o crime do art. 149 do Código Penal, embora justifiquem a imediata reparação e pronto pagamento, o que, aliás, já foi feito (fls. 186-220). Do contrário, a Consolidação das Leis do Trabalho seria substituída pelo Direito Penal, a Justiça Trabalhista pela Justiça Comum-Penal e o Estado Democrático de Direito pela ditadura.

A miséria e a precariedade da vida no campo são inegáveis. Tanto que alguns trabalhadores afirmaram que, apesar de trabalhar há mais de 14 anos na roça, alguns deles, desde criança, nunca chegaram a tirar suas CTPS. Já outros afirmaram que, embora tivessem CTPS, jamais chegaram a ser registrados (fl. 82, 84, 86, 92, 94 e 98). Contudo, tais irregularidades trabalhistas não motivaram qualquer acusação contra os patrões anteriores pelo crime do art. 149 do Código Penal.

Ante o exposto, requer a Vossa Excelência se digne em:

– Deferir o arquivamento deste inquérito policial, ou, alternativamente, suspendê-lo até o exaurimento das vias administrativas, bem com a prescrição do crime.

P.D.

Brasília-DF, 24 de maio de 2004.

João Costa Ribeiro Filho

OAB DF N. 9958

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