No chão

Parte de prédio de SP embargado há quase 5 anos deve ser demolida

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16 de junho de 2004, 14h34

A construtora responsável pela construção do prédio Villa Europa, localizado na rua Tucumã, em São Paulo, foi condenada a demolir parte da construção. A obra está embargada desde 1999, quando a prefeitura constatou irregularidades na obra. A altura da obra seria, inclusive, prejudicial ao tráfego aéreo da cidade.

Segundo a decisão do juiz Rômulo Russo Júnior, da 5ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, o não cumprimento da determinação acarretará em multa de R$ 5 milhões, valor aproximado de uma unidade habitacional da construção. Ainda cabe recurso.

De acordo com o município de São Paulo, a construtora alterou a altura e a volumetria constante no projeto aprovado, aumentando o pé direito e acrescentando pavimento. A obra teria ganhado também nível de pé direito do pavimento térreo muito acima dos legais, “ampliando e modificando todos os terraços laterais, alterando a taxa de ocupação e invadindo os recuos laterais obrigatórios”.

O edifício Villa Europa exibia em seu projeto inicial a construção de 31 andares com 14 unidades, sendo 13 apartamentos duplex e 1 triplex, com área total de 10.499,19 m2. Num segundo plano de engenharia, a obra passou a ter 14 unidades — 13 duplex e 2 subsolos –, com apartamento de zelador, equipamentos sociais, garagem exclusiva e ático.

Ambos os projetos foram autorizados pela prefeitura, apesar de representar cerca do dobro do permitido pela lei paulistana. Em novembro de 1998, a construtora apresentou nova modificação, que foi negada. A obra foi então embargada administrativamente, em março de 1999.

A defesa da construtora alega que a administração municipal “agiu com abuso e é litigante de má-fé”. Sustenta que nada fez de ilegal, que a Prefeitura deixou de apreciar o projeto de modificação e que embargou a obra sem fundamentação legal. Diz também que a construção não atrapalha o tráfego aéreo, que as alterações são mínimas e que a obra é do proprietário e não é pública.

O argumento não foi acatado pelo juiz. Apesar de considerar que o poder público foi negligente, já que permitiu que a obra fosse erguida para só depois decidir embarga-la, Russo Júnior entendeu que “a propriedade privada, embora verdadeiro pilar da civilização ocidental, não é um direito absoluto, nem tampouco ilimitado”.

Para ele, a propriedade, deve possuir finalidade assinada pela respectiva função social. Ele cita o artigo 147 da Constituição de 1.946, que determina que o uso da propriedade está condicionado ao bem estar social.

“O direito de construir, que se completa com o direito de usar e ocupar o solo deve entrosar-se com uma finalidade economicamente útil, à luz do interesse do empresário, mas, ao mesmo tempo, sem se perder diante de um interesse socialmente ajustável ao interesse coletivo”, disse Russo Júnior.

Veja íntegra da decisão

VISTOS

Relatório

A MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO propôs ação de obrigação de fazer e não fazer contra a pessoa jurídica de direito privado MORAES SAMPAIO CONSTRUTORA LTDA., afirmando que aprovou, mediante contrapartida, proposta formulada pela ré, de operação interligada, por meio da qual a ré foi aprovada a adoção de índices urbanísticos especiais para a edificação idealizada pela referida construtora, o que se deu com base na Lei Municipal nº 10.209/86, seguindo-se a expedição de alvará de execução de edificação, com base na aludida operação interligada, autorizando-se a ré a construir um prédio residencial de 31 andares com 14 unidades, sendo 13 duplex e 01 triplex, com área total de 10.499,19 m2. sendo certo que o projeto original foi modificado, passando à construção de 14 unidades, sendo 13 duplex e 2 subsolos, com apartamento de zelador, equipamentos sociais garagem exclusiva e ático, o qual também foi aprovado pela municipalidade.

Assevera que em 20.11.98, a ré apresentou nova modificação, com aumento de área de 156m2, projeto esse que foi indeferido, seguindo-se, em 15.3.99, o embargo administrativo, em razão de a obra estar sendo executada em desacordo com o projeto aprovado, lavrando-se o auto de multa e intimando-se a ré a promover a regularização da edificação em construção, mas, debalde.

Esclarece que a ré executou a alteração da altura e da volumetria da obra, com aumento do pé direito e acréscimo de pavimento, além de desenvolver um nível do pé-direito do pavimento térreo muito acima dos parâmetros legais, ampliando e modificando todos os terraços laterais, alterando a taxa de ocupação e invadindo os recuos laterais obrigatórios.

Afirma, ainda, que a ré desvirtuou o alvará de execução da construção, tendo havido o embargado administrativo e a multa correspondente, tendo a ré persistido nas irregularidades no local da obra.

Requer a condenação da construtora na obrigação abster-se de qualquer obra no local em desconformidade com o projeto aprovado, bem como promover imediatamente a adequação da obra ao referido provado, formulando pedido de tutela antecipada.


Pede a demolição do quanto for necessário, com a fixação de multa por descumprimento, requerendo a concessão de tutela antecipada.

A tutela antecipada foi concedida (fls.186).

A ré foi citada e contestou a ação (fls.270/304, 2º volume), articulando as preliminares de falta de interesse de agir, do não esgotamento da via administrativa, da nulidade do ato de indeferimento do projeto modificativo, do cabimento de ação de nunciação de obra nova e não de pleito de obrigação de fazer e não fazer e da impossibilidade jurídica do pedido por falta de título para a execução específica.

No mérito, sustenta que a Prefeitura agiu com abuso e é litigante de má-fé e que nada fez de ilegal. Argumenta que a autora deixou de apreciar o projeto modificativo e embargou a obra praticamente sem fundamentação legal (sic. -fls. 292). Acrescenta que a obra é do proprietário e não é obra pública e que não houve o “comunique-se” acerca da decisão administrativa.

Destaca que a construção do edifício não atrapalha o tráfego aéreo e que as modificações são mínimas (sic. -fls. 300), ponderando que a obra pode se adequar às posturas públicas, com a supressão de pequenas partes da edificação (sic-fls. 300). Requer o julgamento de carência de ação, ou a sua improcedência.

Houve réplica (fls. 394/405, 2º volume), seguindo-se a intervenção da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo (fls.462/463, 3º volume).

O feito foi saneado, afastando-se as preliminares argüidas na contestação (fls. 471/473, 3º volume), deferindo-se a intervenção do Ministério Público, nomeando-se perito, facultando-se às partes a indicação de assistentes técnicos e quesitos.

A ré deduziu agravo retido da rejeição das preliminares (fls.478/494), a qual foi mantida (fls.504).

As partes apresentaram seus quesitos e assistentes técnicos e a autora interpôs agravo de instrumento da decisão de admissibilidade da intervenção do Ministério Público, ao qual foi dado provimento (Agravo de Instrumento, em apenso, na forma do V. Acórdão), facultando-se a eventual intervenção.

O expert apresentou seu laudo (de fls. 585, 4º volume a fls. 1.483, 8º volume), sobrevindo as observações dos assistentes técnicos (fls. 1520/1571 e 1576/1595, 1.602/1608(MP) e fls. 1627/1631, 8º volume).

O perito judicial manifestou-se acerca das divergências apontadas pelos assistentes técnicos (fls. 1650, 9º volume a fls. 1806, 10º volume), cientificando as partes, seguindo-se a manifestação concordante da assistente técnica da autora (fls. 1827/1835, 10º volume).

A ré requereu a realização de audiência conciliatória, a qual restou realizada (fls. 1845 e 1855, 10º volume), requerendo as partes o sobrestamento do feito, em prol de ajuste conciliatório, mas, debalde (fls.1858).

A instrução processual foi encerrada (fls. 1873), seguindo-se os memoriais, onde cada parte reiterara os termos de suas teses primitivas (fls. 1880/1888, 18901893, 10º volume), opinando o Ministério Público pela procedência do pedido inicial (fls. 1895/1896).

Fundamentação

Trata-se de equacionar uma ação especialíssima na atual conjuntura do direito urbanístico, mormente dentro de uma metrópole como a Capital de São Paulo, rica em força de trabalho, cultura, incongruências territoriais e onde pode se ver, com clareza, o espetáculo do capitalismo saudando a miséria, ao mesmo tempo em que se perde a vida por leptospirose e por previsíveis enchentes dos meses de Janeiro e Fevereiro de todo ano.

Fixada essa ressalva, averbe-se que o caso dos autos exalta, com dilatação, a negligência do poder público municipal, posto que é automático e patente reconhecer-se que não se pode admitir que uma obra da expressão construtiva daquela aqui discutida possa chegar aos seus estertores, para, a final, ser detectada a divergência entre o projeto arquitetônico autorizado e a respectiva ação construtiva, o que pontua o quebramento da seriedade e da eficiência a cargo do poder público municipal, elementos esses que são princípios constitucionais (art. 37, caput, da Constituição Federal), os quais também são normas jurídicas impositivas (1) e dos quais todos nós somos credores, posto que a Administração Pública deve estar a serviço do cidadão (2).

A esse propósito, faça-se uma pausa para recordar que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido, norma jurídica constitucional (art. 1º, parágrafo único, da CF de 5/10/88) e concreto valor que contém a razão de ser de todo o sistema jurídico. Essa lembrança firma-se para que não se esqueça que o direito faz a sociedade evoluir harmonicamente desde que a efetiva aplicação das leis não se traduza em mera quimera.

Posto isto, é de rigor registrar que na prática cotidiana, no dia-a-dia, o que se vê é que uma simples construção residencial, o chamado “puxadinho” existente no fundo de muitas das casas mais humildes, um muro de arrimo de pequenas dimensões, ou ainda em face pequeninas edificações, já são alvo dos olhos atentos do setor público correspondente, enquanto, ao contrário, uma obra de ponta, de bom gosto, construída para a classe “A”, ao contrário, acaba ficando vazia de concreta (e comprovada) fiscalização.


Trata-se de uma constatação que não suaviza o desvio de conduta dos agentes municipais e não endossa nenhuma explicação, ainda mais porque não lançada no processo, como deveria, e porquanto o dever de acompanhar cuidadosamente a obra era uma das obrigações especiais do Município Paulista, a qual foi destacada nas recomendações da comissão que aprovara a operação consorciada, notando-se a existência de pareceres emanados de setores do Município apontando a existência de irregularidades, falta de verdade e ilegalidades (fls. 32 e 34/37).

Outrossim, não se aceita, segundo a leitura do homem comum, que uma exuberante obra arquitetônica levada a cabo em local nobre na Capital Paulistana, com quase um quilômetro de altitude (842,35 m, segundo a perícia oficial-fls. 924), o quarto maior edifício de São Paulo (o 1º é o Edifício Abril, com 875,04m de altitude, situado na avenida Nações Unidas, nº 7.221, a uma distância de 2,00 km do prédio em estudo, de acordo com o expert – fls. 730, 4º volume), possa alcançar o seu cume sem nenhuma ação corretiva ou seriamente impeditiva, por ato da autoridade pública competente.

Tal circunstância precisa ser dita nesta sentença, posto que os olhos dos paulistanos percebem e sentem essa falta do serviço público, mesmo que se deva dizer que a omissão do agente público não exclui a dos interessados em sua incúria, como a vida nos ensina!

Firmadas essas observações, as quais marcam que o Juiz não está alheio à realidade que o rodeia, sendo viva “voz da sociedade”, conforme afirma o eminente Professor Doutor PLAUTO FARACCO DE AZEVEDO (3), avançar-se-á em torno do pedido formulado pelo Município de São Paulo, equacionando-o.

Com efeito, o direito de propriedade, assim como outros direitos relevantes à existência do homem (direito de contratar, direito à moradia, direito à reprodução artificial, direito à personalidade, direitos humanos, direitos sociais em geral), sofrem contínuas mudanças, nem sempre cumulativas. Recebe, neste século XXI, uma expressão adequada à transformação da vida em sociedade, de sorte que passa a assumir, de fato, um caráter funcional.

Superando-se a ilusão da coincidência dos interesses individual e coletivo, explica o eminente Professor JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENÇÃO (4), que a propriedade no direito moderno não pode e não deve ficar alheia ao benefício social dela decorrente.

Nessa linha, a propriedade privada, embora verdadeiro pilar da civilização ocidental, não é um direito absoluto, nem tampouco ilimitado, o que remonta ao direito romano, posto que o conteúdo da propriedade romana foi limitado juridicamente pelas relações de vizinhança e pelo direito público, consoante registra o insigne Professor EMILIO BETT (5).

O absolutismo do direito de propriedade, ausente mesmo na época mais primitiva de Roma, de acordo com a Professora MARIA CRISTINA CERESER PEZZELLA (6), é superado pela submissão do seu exercício ao interesse social, de forma que “A submissão do exercício da propriedade, inicialmente ao interesse de grupos aparentados e, posteriormente, à sociedade toda, evidencia o privilégio do princípio da humanidade sobre os demais princípios do direito, o que permite que se afaste também o individualismo como característica marcante da propriedade romana, como alguns romanistas o fizeram, pois mesmo quando exercida individualmente, a propriedade romana sempre esteve sujeita ao interesse social”.

A propriedade, enquanto direito subjetivo e dever social, deve ser empregada com a finalidade assinada pela respectiva função social, a qual, entre nós, já vinha anotada no art. 147 da Constituição de 1.946, onde ficara expresso que o uso da propriedade está condicionado ao bem estar social, o que é oportuno recordar.

O que se tem, portanto, é que a Lei vem progressivamente atenuando o ultrapassado individualismo inserido dentro do conteúdo do direito de propriedade, em prol de uma maior visibilidade do elemento social, re-configurando-o.

Essa é uma dicção que decorre da positivação do princípio constitucional da função social da propriedade dentro do rol dos direitos e garantias individuais (art. 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal), com fiel adequação aos princípios gerais da atividade econômica, na forma do art. 170, inciso III, da Carta Magna, tudo de molde que a Constituição da República tenha efetividade e real aplicação prática.

A efetividade da lei e da Lei Magna, a esse propósito, não pode ficar na simples ficção devendo haver a concreta aplicabilidade da norma constitucional, em prol de que seja afastada a doença da impunidade, tão presente nos dias que vivemos.

Nesse sentido, ALF ROSS mostra que pela vigência é “que temos que procurar a efetividade que constitui a vigência do direito” (7).

A esse respeito, KONRAD HESSE, assinala que: “Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A constituição transforma-se em força ativa se estas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar esta ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se se fizerem presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional – não só à vontade de poder, mas também à vontade da Constituição” (8).


Nesses moldes, não pode mais existir dominação por meio do direito de propriedade. As revoluções libertárias renderam, dentre outras visões, a humanização do direito de propriedade, o qual coloca-se no centro da evolução institucional de todos os direitos modernos, destacando-se que a complexidade do direito de propriedade não deve ser malbaratada por modelos econômicos estilizados e inadequados para orientar o jurista, consoante registra o Professor UGO MATTEI (9), da Universidade de Turim, o que merece reflexão e madureza no pensar.

Assim sendo e vencida a atual expressão jurídica e social do direito de propriedade, é fundamental entender-se que o direito de construir representa uma das vias de realização do conteúdo do direito de propriedade e de sua magnífica função social. Nem mais, nem menos.

Mesmo por isso, portanto, o direito de construir, que se completa com o direito de usar e ocupar o solo deve entrosar-se com uma finalidade economicamente útil, à luz do interesse do empresário, mas, ao mesmo tempo, sem se perder diante de um interesse socialmente ajustável ao interesse coletivo. Uma não pode e não deve se sobrepor à outra.

A propriedade privada, pois, há de ser útil a seu proprietário e à sociedade civil, especialmente no sistema capitalista, mas sem nenhum abuso de direito, de qualquer expressão, direta ou indireta, inclusive.

A terra, o solo, seu uso e sua ocupação, com outorga pública do direito de construir ao proprietário, hão de obedecer, ordinária e necessariamente, aos limites legais e sociais, afinando-se com os princípios jurídicos e com a ética da vida humana, tudo a ser encontrado tendo em vista a geografia social, a livre iniciativa, a geração de emprego, a justiça social inserida na ordem econômica constitucional (art. 170, caput, da CF) e a não submissão do interesse público pelo capital especulativo.

O direito do proprietário de construir em sua propriedade privada, tanto por tanto, inclusive conforme registra o V. Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ( RE 93.167/RJ), não é absoluto.

Por essa lente, o direito de construir no imóvel situado na rua Tucumã nºs 681, 693, 697, 707, 719 e 721 e na Rua Professor Vital Palma e Silva nºs 88, 96, 104 e 124, na Capital de São Paulo, é relativo.

Não é ilimitado como sustenta a ré, ao argumentar que “é possível a todo e qualquer tempo a alteração do projeto original”, porque isso “é inerente à própria construção”, aditando que “não é justo e nem juridicamente correto pretender-se atar, tal como se em camisa de força estivesse, a ré ao projeto original”, porquanto “ocorreria verdadeira violação do direito de propriedade” (sic-fls. 283).

A leitura da construtora, assim, transpira a superada idéia de que o direito de propriedade é imune ao interesse social, ou que tem marca absoluta, podendo o proprietário alterar seu projeto arquitetônico, a qualquer tempo, cabendo ao poder público apenas aprova-lo! Trata-se de visão coberta pelas cinzas do tempo.

Aliás, particularmente em caso como este, onde houve a concessão pública da exploração do terreno urbano em percentual muitíssimo superior ao permitido pela Lei local, não é juridicamente sustentável a liberdade imaginada pela ré, máxime porque o interesse coletivo, o interesse público e social, não pode ficar submetido ao livre arbítrio da construtora, o que, como é sabido, está na contra-mão do direito constitucional e infraconstitucional.

A baliza do direito de construir, por isso, é o interesse social, nunca o interesse do particular, do capital ou do empresário.

É necessária uma equilibrada comunhão, certo que tal não implica em exata convergência entre o objetivo da construtora e do Município Paulista, nem tampouco autoriza nenhum exagero, abuso ou desvio de fins, quer do poder público, quer do proprietário privado.

É verdade que a Capital de São Paulo já foi muito explorada pelo capital especulativo, leitura essa que é facilmente possível pela simples observação das mais variadas zonas de ocupação do território da capital bandeirante.

Assim sendo, se, na hipótese dos autos, a ré obteve, por meio de operação interligada, a ocupação do terreno de sua propriedade privada, podendo explorá-lo e ocupa-lo em 04 (quatro) vezes mais (cf. a prova pericial – fls. 616 e 742, 4º volume) que o percentual admitido, não é possível, juridicamente e humanamente, a nenhuma custa, a ampliação desse coeficiente, porquanto tal já representava cerca do dobro do permitido pela Lei Paulista.

Quando, portanto, o poder público autoriza a ocupação excepcional do solo e a construtora-ré, apesar dessa excepcionalidade, infringe a norma excepcional (o contrato de operação interligada), tem-se, na via reflexa, o uso abusivo do direito de construir, o que configura ato ilícito, posto que abusar é lesar, observando-se que o art. 187 do Novo Código Civil dispõe que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, sendo certo que a responsabilidade civil decorrente do referido abuso do direito é independente de dolo ou culpa (Enunciado 37 do CECJF- STJ), o que se aperfeiçoa à peculiaridade desta causa.


Esse uso anômalo é noviço à confiança e à lealdade depositadas em favor da construtora-ré, a quem se admitiu a ocupação do solo em coeficiente bem maior daquele permitido no solo paulistano. Aí reside a ilegalidade, quando, então, a obra passa à clandestinidade e suscetível de ser demolida.

Nesse sentido, o eminente HELY LOPES MEIRELLES (10), demonstra que a construção clandestina é assim considerada quando a obra é realizada sem licença, posto que a atividade construtiva está condicionada à licença prévia da Prefeitura local, sendo igualmente clandestina a construção por parte de quem se afasta do projeto aprovado na execução dos trabalhos construtivos e, por isso, também comete ilegalidade e torna a obra sujeito à clandestinidade e à demolição.

Ora, no instante em que houvera a aprovação do projeto arquitetônico apresentado pela construtora-ré à Municipalidade de São Paulo e diante da obtenção do aceite público, o que se deu por força de uma ação vinculada, traduzida em operação interligada (a qual foi realizada com base na Lei Municipal 100.209/86, sendo indiferente, para o caso dos autos, a existência de posterior ADIN) e objeto do Termo de Compromisso nº 10/94/SEMPLA, formalizado em 22 de setembro de 1.994, através da qual a construtora-ré tinha o dever legal de construir e entregar 237 casas populares, então denominadas Unidades Habitacionais de Interesse Social, de 26,00 m2 cada uma, (na forma da cláusula III – fls. 60, 1º volume) para, em compensação, ter o direito de construir dentro de padrões especiais e peculiares a esse mecanismo, formalizara-se, imediatamente, os exatos limites do direito relativo de construir da construtora-ré, entendendo o Município de São Paulo que a “recompensa”, a “compensação” do poder público era receber, em contrapartida, as 237 moradias populares, daí espalhando-se a função social do direito de propriedade, sob a lente da hipótese dos autos.

Crave-se, outrossim, que o poder público municipal, ao realizar a operação interligada, assim procede sempre com o raciocínio voltado para o interesse público.

Além disso, averbe-se que uma operação interligada pode ser executada desde que, ordinária e necessariamente, a comunidade, a sociedade civil, a coletividade “ganhe” com a exceção criada, sob pena de – ao revés – a referida mecânica representar desvio de finalidade, criando uma anômala figura de alforria à ordem urbanística legal.

A operação interligada visa ligar, modular e ajustar o interesse coletivo, eventualmente engessado por norma jurídica local que pode ser adequada em sua execução, à viabilidade econômica do empreendimento construtivo, sem que uma aniquile a outra.

A operação interligada é um excelente instrumento de realização, de pesquisa e de reflexão prática do interesse coletivo. É bem vinda para todos, de sorte que possa existir uma junção de objetivos, uma parceria, como tanto se fala nos dias que correm.

Deve, é certo, ser bem avaliada pelo administrador público, à luz das funções sociais da propriedade e da própria cidade governada, e executada com uma fiscalização específica e comprometida com o interesse social, cabendo ao Município atentar para essa situação especial, sob pena de descumprir o dever constitucional de agir com eficiência, moralidade, legalidade e impessoalidade (art. 37, caput, da CF) e autorizar ação de indenização para que o administrador indenize o cidadão, se restar lesado o erário (art. 37, § 4º, da CF), observando-se os ditames da Lei de Improbidade (Lei 8.429/92).

Essa comunhão, para bem ser alcançada, requer a presença de uma ética renovadora, verdadeiramente nova, sem tradução em postura vazia e molecularmente maliciosa, sendo certo que sua execução deve se dar dentro de uma conformidade harmonizada com a lealdade, a confiabilidade e a integridade, elementos humanos que não devem ser quebrantados por nenhum ato pouco escrupuloso.

Essa era a expectativa social.

A hipótese dos autos, no entanto, traz a tradução do descompasso entre a conduta da construtora-ré em face da legalidade estrita, bem como à luz do compromisso social atrelado à aludida operação interligada e, ademais, faz recordar uma cinzenta imagem de que se vive – ainda hoje – um capitalismo selvagem, sem ética, onde o poder da moeda é – em tese – o mais forte.

O descumprimento da letra legal da operação interligada admitida, bem como da confiança e da lealdade depositadas na construtora-ré, comprometeram, para débito do interesse público, a função social e o sentido ético do excepcional (porque autorizado acima do teto legal no Município de São Paulo) direito de construir.

Entenda-se, assim, que a ré jamais teria o direito de construir um prédio de quase um quilômetro de altura em relação ao nível do mar (842,35m – cf. perícia de fls. 924, 5º volume), composto de 31 andares, com 14 unidades habitacionais, sendo 13 duplex e uma triplex, com altitude de 118m em relação à Avenida das Nações Unidas (fls. 689 – 4º volume), sem realizar ao mesmo tempo a operação interligada.


Assim sendo, a Lei Paulista, descontada a operação interligada, não permitia esse elastério pela construtora.

A ofensa à Lei, propositada ou não, é negativa ao direito de construir.

A par disso, o Município de São Paulo também não andou bem.

Com efeito, sem prejuízo da incúria dos agentes públicos no vivo acompanhamento de uma obra tão extraordinária como a dos autos, a qual – é possível dizer – pode vir a orgulhar, por sua magnitude, o cenário da construção civil em São Paulo, a Municipalidade de São Paulo, sem nenhuma explicação e motivação no ato administrativo, como era seu dever legal, por ato aditivo, alterou, juntamente com a construtora-ré, o compromisso inicial de entrega de 237 moradias populares, reduzindo-as para 125 unidades habitacionais para pessoas carentes, o que assalta a alma e a presunção de legalidade e seriedade que se tem de quem está à frente do interesse público, o que está comprovado através do termo de início de obras nº 01/95, de 14 de fevereiro de 1.995 (fls. 63/64, 65/66 e 67/68).

Nessa quadra, marque-se que se houvesse impossibilidade material, (a qual já era capaz de revelar falta de planejamento por parte do poder público, sem nenhuma responsabilidade direta da construtora-ré), para a construção das 237 moradias populares, dever-se-ia abortar a operação interligada e não nela prosseguir reduzindo-se o número de unidades habitacionais, ainda que essas habitações tenham sido construídas, com área superior, inclusive considerando-se que o valor construtivo (não em pecúnia) doado pela construtora foi de 53.217,50 UFM, importância inexpressiva, ínfima mesmo, em face do resultado prático da mencionada operação interligada, tudo a revelar a ausência de probidade e zelo para com o interesse público.

Além disso, a aludida operação interligada, dentre as suas cláusulas, não trazia nenhuma sanção, pelo descumprimento, pela construtora-ré, da linha da especial concessão, o que não conta com nenhuma imagem saudável, plausível e racional, margeando a falta de correteza.

Ora, não é razoável, para ninguém, aceitar-se que a Prefeitura de São Paulo, uma das maiores do mundo, que conta com inúmeros homens de bem, com qualidade e espírito de servir o cidadão, conceda uma exploração especial de ocupação do solo urbano, autorizando o uso excepcional do solo paulista com amparo em lei própria, formalizando-se um contrato de operação interligada, mas, sem nenhuma sanção, sem nenhuma garantia para o Município de São Paulo, sem nenhuma caução!

Registre-se, por outro lado, que nos meses de Março, Junho e Julho de 1.996, conforme a prova documental demonstra (fls. 69 a 73), a construtora-ré fez a formal entrega das chaves de cento e vinte e cinco Unidades Habitacionais de Interesse Social, não existindo – no entanto — prova nos autos da qualidade e perfeição construtiva das referidas casas, as quais passaram a fazer parte do Conjunto Habitacional Recanto dos Humildes, no bairro de Perus, para atendimento da população carente de baixa renda das favelas da Boa Esperança, Águas Espraiadas, Complexo Cabuçu e Caixa DÁgua, como era oportuno que estivesse no conjunto da prova dos autos.

A operação interligada (hoje operação consorciada) tinha tudo para ativar a esperança na construção civil, como, aliás, ocorrera na renovação do bairro portuário de Fells Point, em Baltimore, ou do Píer 17 em Nova York, nos EUA, dentre outras ações na Europa, as quais são tidas por especialistas como exemplos de sucessos de operação consorciadas públicas-privadas, conforme anota VICENTE DEL RIO (11).

Induvidoso, portanto, que foi ferida a Lei e a ética, comprometendo-se a certeza do direito, a qual, como diz PIERO CALAMANDREI [12], é “específica eticidade do direito”.

Imoral a conduta do Município de São Paulo. Imoral a operação interligada. Imoral a conduta da construtora. Um feixe de imoralidades e ilegalidades, pois.

Dentro desse quadrante, anote-se que em julgamento análogo, outrossim, pronunciado pelo Eg. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, cabia ao poder público invalidar o alvará que autorizava a construção, ante o vício de desvio, não havendo nenhum direito líquido e certo da construtora (ROMS, 10.828-BA, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA), o que converge à doutrina do eminente Professora MARIA SYLVIA ZANELLA di PIETRO (13).

Exatamente nesse prisma, o Ministro Luiz FUX, em recentíssimo V. Acórdão (REsp. 448.216/SP), decidiu que “A Municipalidade tem o dever e não a faculdade de regularizar o uso, o parcelamento e a ocupação do solo para assegurar o respeito aos padrões urbanísticos e o bem-estar da população”, de tal sorte que sejam evitados abusos e irregularidades na atividade de construir.

Por essa ótica, quando a construção ultrapassa a altura máxima permitida e interfere na iluminação, ventilação e insolação do imóvel vizinho, como aqui ocorre, resta justificado o pedido de demolição, sendo nesse sentido o V. Aresto do Eg. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO (Ap. Cível 110.407-4, rel. Desembargador ELLIOT AKEL).


Nessa corrente, marque-se que a prova pericial, o excelente laudo do perito Dr. Luiz Paulo Gião de Campos, o qual veio distribuído em mais de 1.500 páginas (do 4º ao 10º volumes), com riqueza de análise, detalhamento, plantas, projeções, anexos e exame das várias conseqüências da obra em análise, comprovou que a construção pode ser adequada à legislação municipal, mas não poderia ser adequada ao projeto original.

Dessa forma, em primeiro lugar, crave-se que a altitude máxima do edifício encontra-se abaixo da cota de segurança mínima exigida pelo Ministério da Aeronáutica.

O perito judicial realizara a cuidadosa constatação de tal respeito à segurança pública por meio de fórmulas extraídas da Organização de Aviação Civil Internacional, bem como dentro efetivos levantamentos praticados juntamente com o quarto Comando Aéreo Regional – COMAR (cf. laudo pericial – fls. 718 a 729), constatando-se que no plano horizontal uma aeronave passa do prédio, dentro da zona de aproximação (cone de descida), a aproximadamente 321,50 m do edifício, em direção à avenida Faria Lima (fls. 730), enquanto no cone de chegada a aeronave passa a uma altura de 146,138m. (cf. laudo pericial – fls. 726), não havendo obstáculo, nem tampouco interferência, à navegação aérea (cf. laudo pericial -fls. 924, 5º volume).

Superada essa questão, mais adiante, o expert judicial, com zelo, clareza e didática, estabelece em seu trabalho técnico duas alternativas para a solução da construção levada a efeito pela construtora-ré em desacordo com o projeto arquitetônico e com a Lei Paulistana.

Na primeira delas, explica o engenheiro Luiz Paulo Gião de Campos, após desenvolver toda a análise da construção levantada pela Construtora Moraes Sampaio que “em diversas unidades habitacionais, o pé direito duplo foi subdividido e transformado em área útil de pavimento, alterando para mais o coeficiente de aproveitamento determinado na Operação Interligada”, tendo havido “aumento dos terraços laterais a partir do 2º piso”, além do “aumento do pé direito das unidades habitacionais, do térreo, mezanino, ático e subsolos”, elevando a altura do prédio, de tal modo que na comparação da planta aprovada com a obra construída, ao lado de haver a necessidade das adequações das subdivisões de pavimentos, nos terraços, nas faixas de aeração, há ainda a necessidade de que o pé direito dos pavimentos seja reduzido ao projeto original, “o que inviabiliza a adequação da obra, fazendo com que toda a construção esteja condenada” (laudo pericial – fls. 937, 5º volume).

No entanto, na opção remanescente, o técnico judicial declara que é possível adequar a construção existente à legislação municipal, desde que seja executada a demolição parcial da obra.

Descreve o perito judicial, portanto, que é necessário (cf. laudo pericial – fls. 940-941, 5º volume):

-demolir para criar recuos laterais do 27º andar ao 31º andar, do lado direito e esquerdo e nos fundos (em parte), a fim de que seja atendida a faixa livre A, definida em lei;

-demolir a escada lateral de acesso ao mezanino;

-demolir as lajes no mezanino que fecham o pé direito duplo do piso térreo;

-restabelecer, em várias unidades habitacionais, o pé direito duplo, eliminando a subdivisão dos pavimentos; e

-inverter a posição do apartamento do zelador;

Outrossim, as referidas alterações foram objeto de elaboração de várias plantas elucidativas, onde o perito demonstra qual o conjunto das áreas a serem demolidas (laudo pericial – fls. 942 a 983, 5º volume), marcando-as especifica e minuciosamente, tudo a revelar a possibilidade prática de segui-las para ajustar a obra à Lei do Município de São Paulo.

A referida prova pericial, aliás, não foi contrariada por nenhuma prova equivalente, tendo os assistentes técnicos das partes e do Ministério Público concordado com as conclusões periciais, seguindo-se apenas alguns reparos do assistente técnico da ré, sem afetar, em nenhum momento do processo, o valor da prova, tanto quanto o seu conteúdo técnico, bem como no que toca à imparcialidade do especialista nomeado judicialmente.

A prova pericial judicial é, portanto, real subsídio de convencimento para a equação da causa, bastando firmar qual a mais justa opção dentre as possibilidades apontadas pelo engenheiro Gião de Campos.

Após todas essas considerações, é fundamental dizer que o Juiz tem a liberdade para construir soluções próprias e específicas para as situações que se apresentam nos processos, mercê de sua peculiaridade. Nesse sentido, é o V. Acórdão oriundo do Eg. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, relatado pelo Ministro MILTON LUIZ PEREIRA (EDREsp 107.210-SP).

Com efeito, não atua com boa-fé aquele que prossegue a execução de projeto construtivo sabendo ou podendo saber que sua execução não se faz de acordo com aquele arquivado na Secretaria de Obras do Município, especialmente perante uma construtora, como a ré, com vasta experiência em seu ofício profissional, o que levanta a presença da presunção hominis de má-fé.


Além disso, o abusivo desvio praticado e consumado pela construtora-ré, na efetivação de sua tarefa construtiva, como o perito demonstrou, não foi tão mínimo assim, sendo certo que os recortes a serem feitos levam a mente a imaginar que o edifício da Rua Tucamã, após as correções e ajustes necessários, aproximar-se-á (na arquitetura visual) do prédio do Banespa, no centro de São Paulo.

Da mesma forma, não rende nenhuma homenagem verificar que a Prefeitura de São Paulo, por tudo que se verificou neste processo, tinha o dever legal de fazer uso do poder de polícia, a fim de coibir o avanço construtivo da construtora-ré, deixando, contudo, que o interesse social fosse comandado, ditado e orientado por sua ineficiência, ou por interesse outro não comprovado nos autos, ao arrepio do interesse da população, o que está na contramão da civilidade, da democracia, da Lei e do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da Constituição Federal).

O que se encontra, nesse oceano, é que houve maltrato, direto e real, do princípio clássico da supremacia do interesse público diante do interesse do particular, para débito da expectativa social.

Dentro desses moldes, a bem de fixar-se a melhor e a mais justa solução para esta causa, o caminho é buscar o encontro do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, os quais tem aplicação em todos os ramos do direito, conforme ELIMAR SZANIAWSKI [14], de forma tal que resulte uma coerência lógica entre os meios e os fins da Justiça.

Sua tradução prática impõe-se que se apóie na idéia formada pela Corte de Justiça da União Européia, no final da década de 80, conforme relata a eminente Professora ODETE MEDAUAR [15], de maneira que “quando uma escolha se oferece entre várias medidas apropriadas, é conveniente utilizar a menos gravosa, e os encargos impostos não devem ser excessivos em relação aos fins visados”.

Nessa linha, neste momento em que o prédio já está “em pé” e havendo condições técnicas de adequação do edifício ao regime legal do município de São Paulo, sendo certo que a completa demolição do prédio, (que poderia ser uma boa lição, mas não uma lição proporcional), não socorre ao interesse público, não existindo nada que justifique o extremo rigor, o qual não socorre o senso de Justiça, comprovando-se ainda que não há nenhum dano à segurança e à continuidade do tráfego aéreo, inclusive, o que pontua a plausibilidade da demolição parcial.

Assim sendo, o balanceamento de todas essas especiais circunstâncias faz com que se adote a opção pelo realinhamento do edifício dentro dos exatos limites contidos no laudo pericial.

O encontro do equilíbrio diante da norma jurídica descumprida – como recomenda PIETRO PERLINGIERI [16] – examinada a situação à luz do fato consumado e do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, os quais podem fundir-se num só, observando-se que a desproporção da ilegalidade praticada pela ré admite corrigenda técnica, cabendo o uso do redutor, confere juridicidade em admitir-se a mantença da obra, com a demolição parcial de acordo com os destaques constantes da perícia e que fazem parte integrante desta sentença.

Aliás, em questão que guarda semelhança com a destes autos, na qual discutia-se moradias de pessoas humildes, sem maiores recursos econômicos, o Eg. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, em igualdade, reconheceu que não deveria haver a demolição, consoante o V. Acórdão do i. Desembargador VIANA SANTOS (MS 155.234-5).

Solução diferente seria imperativa, em tese, se a construção causasse dano direto ou indireto à área de proteção ambiental (V. Acórdão, Ap. 164.061-5, Relator o i. Desembargador GERALDO LUCENA), sendo de verificar-se que não há comprometimento do plano urbanístico ou do paisagismo do local onde está construído o edifício (V. Acórdão, Ap. Cível 12.092-4, Relator o i. Desembargador ROBERTO STUCHI), destacando-se que não sobreveio outra norma jurídica superveniente favorável à construtora-ré, o que poderia render decisão diversa, conforme também o recente V. Acórdão do

Eg. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (REsp. 445.905/DF, Relatado pelo eminente Ministro FRANCIULLI NETTO), o que fica apenas anotado para constar, por cautela.

Por outro lado, diante de tudo que está no processo, certo que nem tudo que ocorrera veio para os autos, determino que sejam encaminhadas à Promotoria Pública da Cidadania de São Paulo, cópia das principais peças do processo, a fim de que seja avaliada a eventual improbidade administrativa decorrente do desvio de finalidade da Lei, e do eventual dano moral coletivo, bem como para que os cofres públicos sejam ressarcidos pela mutação admitida na operação interligada, a juízo do culto Promotor a que couber.

Noutro extremo, marque-se que o Município de São Paulo, nesta ação, de acordo com a petição inicial, apenas pediu que a ré se abstenha de prosseguir na obra e realize a demolição do prédio, sem descrevê-la, não formalizando nenhum outro pedido de indenização, em favor da compensação, para o erário municipal, em razão da inexistência de sanção pelo desvio, pela ré, da estrita observância da operação interligada, o que seria de admitir-se em razão da gravidade e magnitude da hipótese e fica, assim, por igual, ressalvado.


Por último, neste século, no momento em que vivemos o desabrochar de uma constituição democrática, dispondo-se a praticar um real “Estado Democrático de Direito”, onde a ordenação urbana da cidade passa a dar-se no interesse da coletividade, sem danificar o investimento do empresariado, tudo em harmonia com o art. 1299, última parte, do novo Código Civil, com o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) e com a Constituição Federal (arts. 5º, XXIII e 170, III, CF), sem prejuízo dos elementos inspiradores do art. 186 da CF (embora ditados para a terra rural), são fundamentais redefinir a velha ótica de um direito de construir manipulado pelo interesse de poucos, ou quase ilimitado.

O aproveitamento racional e adequado do solo urbano, com a utilização não abusiva dos recursos naturais e a observância das relações de trabalho e de emprego, com a natural exploração da riqueza em prol do respectivo titular e em favor do bem comum, é a dicção que se deve ter no mundo de hoje.

Dentro de todo esse mosaico jurídico e tendo em conta o processo cultural da humanidade, a função social da propriedade representa uma bússola favorável ao equilíbrio dos interesses do cidadão e da economia, sendo direito de construir uma das expressões dessa utilidade social e econômica da propriedade, margeando-se que aí residem às finalidades econômicas e sociais desse direito (artigo 1.228, § 1º do Novo Código Civil).

O direito de construir conforma-se de acordo com essa influência positiva sobre o urbanismo, respeitando-se o plano diretor da capital, sendo certo que a política urbana é política pública e também está tratada na Carta Magna (artigos 182 e 183), embora não dispomos de nenhuma legislação coerente com o urbanismo, como ocorre com a Espanha (Lei de Regimen Del Suelo y Ordenación Urbana, de 1956, reformulada em 1998), Itália (Legge Urbanística, de 1942, alterada em 1977) e França (Code de l’Urbanisme et de l’Habitation, de 1954, modificada em 1973), dentre outros países, apesar do Estatuto da Cidade já trazer uma enorme contribuição para a evolução do trato de tais temáticas.

Na busca dessa efetividade, marque-se que não existe uma fórmula legal ou sociológica suficiente para ditar como se identifica concretamente o elemento social, ou a função social do direito de propriedade. Tal dificuldade, ademais, tem o condão de elevar a responsabilidade dos juristas e julgadores em não divorciá-la da realidade e da boa-fé social, à luz do caso concreto.

Outrossim, não é demais registrar que o papel da imprensa foi decisivo na causa, posto que transpira do processo que a partir da ação da imprensa deu-se um rumo favorável ao interesse coletivo, o que também fica enaltecido.

Com todas essas ressalvas e tendo havido concordância da ré quanto ao laudo, correlata confissão do pedido (fls. 1.858/1.859 – 11º volume), a ação é justa e merece a procedência.

Dispositivo

Em harmonia com o exposto, JULGO PROCEDENTE a ação e, em conseqüência, para determinar a demolição de parte da construção realizada no imóvel situado à Rua Tucumã nºs 681, 693, 697, 707, 719 e 721 e Rua Professor Vital Palma e Silva nºs 98, 96, 104 e 124, observando-se todo o diagrama desenvolvido pelo operoso e diligente expert judicial, de acordo com as especificidades contidas no laudo técnico (cf. laudo pericial – fls. 940/941 – 5º volume), ficando constituída a obrigação de fazer da ré, ficando vedada qualquer outra mutação, de qualquer espécie, firmando-se, pois, a respectiva obrigação de não-fazer, sendo certo que o seu eventual descumprimento implicará na multa cominatória (astreinte) global, a qual fixo na quantia de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais), o valor aproximado de uma unidade habitacional do aludido prédio, conforme a perícia, quantia essa que reverterá para o erário público, com destinação específica à moradia popular, comprovando-se oportunamente.

A fixação do prazo para execução da obra dar-se-á após o trânsito em julgado, por estimativa do perito, ouvindo-se as partes.

Declaro levantado o embargo da obra ficando a construtora-ré autorizada a iniciar os levantamentos necessários para execução de seu mister corretivo, no dia imediatamente posterior ao trânsito em julgado.

O início das obras será definido após o trânsito em julgado.

Por força do princípio da sucumbência condeno a ré a pagar as custas processuais e a verba honorária, a qual arbitro em R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), o que faço considerando todo o porte jurídico e fático desta causa (artigo 20, § 4º do Código de Processo Civil).

P.R.I.

São Paulo, 14 de junho de 2.004.

RÔMOLO RUSSO JÚNIOR

Juiz de Direito

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