Caso Silverinha

Caso Silverinha: auditor fiscal consegue liberdade no Supremo.

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16 de junho de 2004, 19h19

O auditor fiscal do Rio de Janeiro, Sérgio Jacome de Lucena, acusado de integrar a quadrilha liderada por Rodrigo Silverinha Côrrea, teve o pedido de Habeas Corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal.

Jacome de Lucena foi condenado por participar do esquema do propinoduto, que envolvia fiscais e auditores do Rio e teria enviado cerca de US$ 33,4 milhões ilegalmente para contas na Suíça. Ele estava preso desde abril de 2003, depois de ter sido condenado em primeira instância a 16 anos e 6 meses de prisão.

A liminar foi concedida pelo ministro do Supremo, Marco Aurélio, para que ele responda ao processo em liberdade. O ministro acatou as alegações da defesa do auditor, de que Jacome de Lucena é réu primário, tem bons antecedentes criminais e é membro de família estruturada.

Ainda segundo a defesa, Jacome de Lucena entregou o passaporte espontaneamente à Polícia Federal e determinou que o dinheiro mantido no exterior — US$ 317,8 mil — fosse devolvido aos cofres públicos brasileiros, o que é uma “prova inequívoca” de que ele não pretende ficar com os valores desviados.

O auditor foi condenado pelos crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, sonegação fiscal, corrupção passiva e falsidade ideológica. A Justiça condenou também outros 22 integrantes do esquema liderado por Silverinha, que foi subsecretário de Administração Tributária durante o governo Anthony Garotinho (1999 a 2003).

Leia a íntegra da decisão

HABEAS CORPUS 84.038-8 RIO DE JANEIRO

RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

PACIENTE(S) : SÉRGIO JACOME DE LUCENA

IMPETRANTE(S) : RICARDO PIERI NUNES

ADVOGADO(A/S) : JOÃO HENRIQUE CAMPOS FONSECA

COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO – LIMINAR

PRISÃO PREVENTIVA – FUNDAMENTOS.

DECRETO CONDENATÓRIO – RECURSO – LIBERDADE.

1. A inicial de folha 2 a 19 revela inconformismo com decisão proferida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento de habeas corpus. Eis os fatos narrados na inicial:

a) em 10 de abril de 2003, o Ministério Público Federal ajuizou ação cautelar de produção antecipada de provas, vindo a ser ouvida Valéria Gonçalves dos Santos, ex-companheira de Carlos Eduardo Pereira Ramos, um dos investigados;

b) após a audição, o Ministério Público requereu a prisão preventiva dos então investigados;

c) procedeu-se à custódia, deferida à luz da necessidade de garantir-se a ordem pública, a conveniência da instrução criminal e a manutenção de campo próprio à aplicação da lei;

d) o Ministério Público ofereceu denúncia contra o paciente, alegando a infringência aos artigos 288, 299, 316 do Código Penal; 22, parágrafo único, última parte, da Lei nº 7.492/86; 1º, incisos I e III, da Lei nº 8.137/90 e 1º, incisos V, VI e VII, da Lei nº 9.613/98;

e) não havendo prosperado habeas corpus ajuizado no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, impetrou-se substitutivamente recurso ordinário, indeferindo o Superior Tribunal de Justiça a ordem;

f) o paciente foi condenado pelos crimes dos artigos 299 e 316 do Código Penal; 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86; 1º, incisos I e III, da Lei nº 8.137/90 e 1º, inciso IV, da Lei nº 9.613/98, não tendo sido apenado considerada a imputação de integrar quadrilha – artigo 288 do Código Penal;

g) consignou-se a impossibilidade de o paciente recorrer em liberdade;

h) o habeas anteriormente interposto foi conhecido, ante circunstância alheia à vontade do beneficiário da impetração.

Argúi-se a ofensa ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, diante da ausência, na sentença proferida, dos motivos da condição imposta para a recorribilidade – a submissão à custódia do Estado. Assevera-se ser o paciente primário e portador de bons antecedentes, possuindo família estruturada. A imposição da custódia, para se ter como admissível o recurso, estaria a contrariar o princípio da não-culpabilidade, discrepando dos ares democráticos ora vividos e relembrando a época de exceção.

Refuta-se a óptica de ser a prisão efeito automático da sentença condenatória, afirmando-se que, quando da preventiva, partiu-se de suposições, no tocante à garantia da ordem pública, à conveniência da instrução criminal, ou à preservação de campo propício à aplicação da lei penal. Aponta-se que o paciente espontaneamente entregou o passaporte, havendo atendido à intimação da autoridade policial e acorrido à audiência de produção antecipada de provas. Requerera que a importância mantida no exterior fosse recambiada ao Brasil e recolhida aos cofres públicos, dando, assim, prova inequívoca de não pretender ficar com os valores.

Também se diz da improcedência de presumir-se que, solto, viesse o paciente a dar continuação à prática delituosa, isso em face de se haver decretado a perda do cargo público. No fecho da inicial, foi pleiteada a solicitação de informações ao Superior Tribunal de Justiça, com encaminhamento do acórdão prolatado, para, então, examinar-se o pedido de concessão da medida acauteladora, confirmando-se o direito à liberdade, já prejudicada nos últimos dez meses. Juntaram-se os documentos de folha 21 a 280. À folha 284, despachei:


Na forma requerida – folha 17 -, solicitem-se informações ao STJ, devendo vir cópia do acórdão proferido e, caso ainda não confeccionado, do voto condutor do julgamento, e dos demais votos, consideradas notas taquigráficas. Segue em fita magnética relatório parcial.

Brasília, 03.03.04.

Aos autos anexou-se o ofício de folha 495, do Superior Tribunal de Justiça, com os votos proferidos no julgamento do Habeas Corpus nº 29.684/RJ, contando as peças relativas ao acórdão com o carimbo de “sem revisão”. O processo veio-me para apreciação em 14 de junho de 2004, às 18:03h (folha 525).

2. O julgamento procedido no Superior Tribunal de Justiça ficou assim sintetizado, conforme peças enviadas a esta Corte, muito embora com a tarja de “sem revisão”:

HABEAS CORPUS. LAVAGEM DE DINHEIRO, EVASÃO DE DIVISAS, SONEGAÇÃO FISCAL, CORRUPÇÃO PASSIVA E FALSIDADE IDEOLÓGICA. PRISÃO PREVENTIVA. ADVENTO DE SENTENÇA CONDENANDO O PACIENTE A 16 ANOS E 6 MESES DE RECLUSÃO COMO INCURSO NOS ARTIGOS 1º, INCISO V, DA LEI Nº 9.613/98, 22, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 7.492/86, 1º, INCISO I, E 3º, INCISO II, AMBOS DA LEI Nº 8.137/90, E 299 DO CÓDIGO PENAL. MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA CAUTELAR PARA ASSEGURAR A APLICAÇÃO DA LEI PENAL E TAMBÉM COMO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. PRETENSÃO DE APELAR EM LIBERDADE. ORDEM DENEGADA.

1 – Não se mostra possível conferir o direito de apelar em liberdade a acusado que permaneceu preso durante o processo em virtude de provimento devidamente fundamentado, notadamente se agora se encontra condenado a 16 anos e 6 meses de reclusão, pela prática dos delitos descritos nos artigos 1º, inciso V, da Lei nº 9.613/98, 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, 1º, inciso I, e 3º, inciso II, ambos da Lei nº 8.137/90, e 299 do Código Penal, reconhecidas as necessidades da custódia para assegurar a aplicação da lei penal e como garantia da ordem pública.

2 – Habeas corpus denegado (folha 498).

No voto condutor do julgamento, assentou-se (folha 521):

Como visto, a sentença negou ao paciente o direito de apelar em liberdade, recomendando-o na prisão em que se encontra.

Evidente, assim, que modificou-se (sic) o título da custódia, agora decorrente de sentença condenatória.

No entanto, diante desse quadro, está claro que o magistrado, muito embora sem o dizer expressamente, manteve a prisão em face da anterior decretação da preventiva.

Não vejo, portanto, óbice a que se conheça do pedido.

Como bem posto na impetração, na verdade o habeas corpus está a desafiar o decreto de prisão cautelar do paciente, mantido no acórdão do Tribunal Federal da Segunda Região.

Compreenda-se o envolvimento, na espécie, quer da preventiva, quer do verdadeiro início de cumprimento da pena, no que houve a recomendação à prisão na sentença condenatória.

Ante qualquer controvérsia sobre o direito de ir e vir, há de abrir-se a Constituição Federal, observando-se normas que surgem como garantias maiores do cidadão. Extrai-se do artigo 5º nela contido:

a) ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal – inciso LIV;

b) ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança – inciso LXVI;

c) ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória – inciso LVII.

Neste exame preliminar, conclui-se pelo desatendimento a esses ditames constitucionais. A preventiva foi decretada consoante peça que se encontra às folhas 39 e 40. Aludiu-se à ordem pública e, aí, apontou-se a necessidade de prevenir a repetição de fatos criminosos. Mais do que isso, fez-se referência ao acautelamento do meio social e à credibilidade da Justiça, consignando-se a gravidade do crime e a repercussão. Pois bem, têm-se parâmetros reveladores, a princípio, de agentes episódicos – servidores públicos que teriam claudicado na arte de proceder, incidindo em práticas criminosas. Supor-se a continuidade dos delitos é passo demasiadamente largo, contrariando a ordem natural das coisas, o afastamento da atividade desenvolvida na Administração Pública, na fiscalização própria às relações jurídicas concernentes aos tributos. O objetivo de acautelar o meio social surge com dose maior de subjetivismo, servindo, na forma em que vazado, à prisão de todo aquele que seja acusado, simplesmente acusado, de um ato delituoso, invertendo-se, com isso, valores, presumindo-se não o que normalmente ocorre, mas o extravagante, o excepcional, a postura à margem do que se espera do homem médio. Sob o ângulo da credibilidade da Justiça, o que asseverado condiz com a punição, então, a ferro e fogo, tornando-a meio de justiçamento e não órgão que implique a eqüidistância desejada na atuação do próprio Estado. Pouco importa a gravidade do crime e a impressão no meio social. Quanto mais grave o crime e maior a reverberação, tem-se a conveniência de resguardar-se as prerrogativas do acusado, as franquias, a intangibilidade da ordem jurídica constitucional. Com esses enfoques é que a Justiça se impõe e se torna acreditada perante os concidadãos.


Relativamente à instrução penal, não fosse a particularidade de já achar-se encerrada com decreto condenatório devidamente formalizado, constata-se, no pronunciamento judicial atinente à preventiva, haver sido acionada capacidade intuitiva. Simplesmente supôs-se que o paciente em liberdade viria a “inutilizar, modificar, alterar ou mesmo impedir a obtenção de provas de seus crimes”. Em suma, o raciocínio desenvolvido convém para justificar a prisão em qualquer caso, mormente quando se trate de pessoa que, em passado recente, haja atuado no âmbito da Administração Pública. A problemática da instrução penal, sob o prisma da preventiva, deve ser inserida num contexto jurídico a partir de dados concretos, dados já existentes, imaginando-se, aí sim, a continuidade de procedimento visando a frustrar a apuração dos fatos. É certo que se remeteu à notícia, simples notícia, de que se procurara obstaculizar o cumprimento de carta rogatória. Todavia não se conta com uma linha sobre a imputação de ato dos acusados, muito menos do paciente. A inserção do trecho fez-se com generalidade imprópria, razão pela qual não se mostra idônea a alicerçar a prisão. Indispensável seria a menção de fato concreto e não de notícia, talvez mesmo por ouvir dizer.

Por último, na preventiva, cogitou-se da possibilidade de fuga. Ora, esta é sempre factível, consubstanciando até mesmo um direito natural do homem, no que se sinta injustiçado por certa determinação. Lançou-se, no procedimento mediante o qual foi formalizada a preventiva, serem os acusados primários, com profissão certa e endereço conhecido, mas se potencializou a posse de recursos e, então, partiu-se para a premissa de que, em liberdade, poderiam deixar o País. Vale registrar o que já decidido pela Corte sobre a fuga e a ausência de base para, via suposição, chegar-se à custódia.

HABEAS CORPUS – CUSTÓDIA PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO INCONVINCENTE.

Decreto de prisão preventiva fundamentado principalmente no temor da evasão do paciente. A custódia cautelar não pode se basear em conjecturas, mas na real necessidade de constrição que justifique a excepcionalidade da medida. Precedentes do STF.

Recurso provido (Recurso em Habeas Corpus nº 67.069-5, Segunda Turma, relator ministro Francisco Rezek, Diário da Justiça de 31.03.1989)

Vê-se que a preventiva, decretada em abril de 2003, o foi à margem do arcabouço normativo de regência.

Diante de novo título a respaldar a custódia, ao contrário da óptica externada no julgamento procedido no Superior Tribunal de Justiça, impossível é ter-se como implicitamente adotados os fundamentos do ato pretérito, da prisão no início do processo. Em jogo a liberdade de ir e vir, a formalização do pronunciamento, a clareza da deliberação é exigível, descabendo presumir-se, ou seja, conceber decisão implícita. Na longa e substanciosa sentença proferida, quanto à dosimetria da pena (folha 223 a 260), proclamou-se:

Nego aos réus o direito de apelar em liberdade, exceto com relação aqueles que tiveram sua pena privativa de liberdade substituída. Recomendem-se os réus na prisão em que se encontram e expeçam-se os mandados de prisão para os réus em liberdade, por força agora de sentença condenatória (folha 259).

O que consignado não se coaduna com os novos ares constitucionais. É próprio à quadra de exceção, como aquela vivenciada quando veio à balha, em penada única, via decreto-lei do então Presidente da República, o Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Neste, em textos não recepcionados pela Carta de 1988, encontra-se base para a negativa de viabilização do apelo em liberdade. O teor da sentença se coaduna com o artigo 393 do Código de Processo Penal:

Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível:

I- ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança;

II- ser o nome do réu lançado no rol dos culpados.

O teor da sentença é harmônico com o artigo 585 do Código de Processo Penal:

Art. 585. O réu não poderá recorrer da pronúncia senão depois de preso, salvo se prestar fiança, nos casos em que a lei a admitir.

O teor da sentença está condizente com o extravagante pressuposto de recorribilidade versado no artigo 594 do Código de Processo Penal:

Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.

O teor da sentença está afinado com o preceito do artigo 595, também do Código de Processo Penal:

Art. 595. Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação.

O teor da sentença também não discrepa da previsão óbvia do artigo 596 do Código de Processo Penal:

Art. 596. A apelação da sentença absolutória não impedirá que o réu seja posto imediatamente em liberdade.

Por último, o teor da sentença conforma-se com o artigo 669:

Art. 669. Só depois de passar em julgado, será exeqüível a sentença, salvo:

I- quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada a fiança;

II- quando absolutória, para o fim de imediata soltura do réu, desde que não proferida em processo por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a 8 (oito) anos.

A Carta da República, entretanto, está no ápice da pirâmide das normas jurídicas. Dotada de rigidez, a todos impõe-se e os dispositivos do Código de Processo Penal, pedagogicamente transcritos nesta decisão, não guardam harmonia com as garantias acima referidas. É hora de dar-se concretude aos ditames constitucionais, pagando-se, assim, o preço por viver-se em um Estado Democrático de Direito. Jamais é demasia frisar-se que, em Direito, o meio justifica o fim, mas não este aquele. A prisão, tal como formalizada, surge temporã.

3. Concedo a medida acauteladora, para determinar a expedição de alvará de soltura a ser cumprido com as cautelas legais, ou seja, caso o paciente não se encontre sob a custódia do Estado por motivo diverso do retratado na prisão preventiva formalizada no Processo nº 2003.5101505176.5, da Seção Judiciária do Rio de Janeiro da Justiça Federal, ou na sentença, ainda não coberta pela cláusula da irrecorribilidade, prolatada pela mesma 3ª Vara Federal.

4. Publique-se.

Brasília, 15 de junho de 2004.

Ministro MARCO AURÉLIO

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