Seleção natural

A estatal Furnas é proibida de contratar servidores não concursados

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15 de junho de 2004, 19h07

A juíza Renata Jiquiriçá, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, Rio de Janeiro, concedeu antecipação de tutela solicitada pelo Ministério Público do Trabalho determinando que Furnas – Centrais Elétricas S.A. se abstenha de efetivar 380 prestadores de serviço contratados sem concurso público no período entre 5 de outubro de 1980 e 8 de junho de 1990.

Furnas realizou concurso público no ano passado no qual foram aprovados 9 mil candidatos. Nenhum deles foi contratado. Em março deste ano, o presidente da estatal, José Pedro Rodrigues de Oliveira, informou a pretensão de contratar os prestadores de serviço não concursados, ignorando os aprovados no concurso. O Ministério Público do Trabalho interveio.

“A contratação de aproximadamente 380 empregados ou mais, livremente escolhidos pela administração de Furnas, sem a necessária aprovação prévia em concurso público, somada ao fato de que há 9 mil candidatos aprovados no último concurso público, aptos e ávidos para nomeação e posse em seus cargos demonstra de maneira irrefutável o total desrespeito por parte da Ré à Carta Magna”, argumentam os Procuradores do Trabalho da 1ª Região (RJ) que assinam a ação.

A inicial apresentada à Justiça do Trabalho lembra que a necessidade de aprovação em concurso para investidura em cargo ou emprego público está prevista no artigo nº 37 da Constituição Federal. Lembra também que o princípio se aplica às empresas públicas e sociedades de economia mista.

De acordo com o presidente de Furnas, a decisão de contratar os não-concursados se baseou em decisão do Tribunal de Contas da União, de novembro de 2003. De acordo com o TCU, a exigência de concurso público para contratação de pessoal na administração pública só é aplicável a partir de decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em junho de 1990, entendendo que as empresas públicas e sociedades de economia mista também estavam incluídos no dispositivo constitucional.

O entendimento do Ministério Público do Trabalho é diverso. “A se entender que a decisão do TCU permita a contratação de empregados pela Administração Pública Indireta, sem prévio concurso público, até 06.06.90, estar-se-ia dizendo que o referido Tribunal acabara de legitimar a violação expressa ao artigo nº 37, inciso II, da Constituição da República, promulgada no dia 05 de outubro de 1988”, diz o texto da Ação Civil Pública ajuizada no dia 7 de maio.

A juiza determinou em sua decisão que a empresa apresente a relação dos 9 mil aprovados no concurso realizado 2003. Além disso, ordenou que a empresa informe se já efetivou algum servidor não concursado. A multa para o descumprimento da tutela antecipada é de R$ 10 mil por dia e por trabalhador contratado.

Leia o pedido dos procuradores:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DA 26ª VARA DO TRABALHO RIO DE JANEIRO

DISTRIBUIÇÃO POR DEPENDÊNCIA AOS AUTOS N.º 364.2004-026-01-00-9

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, por seus órgãos, Procuradores do Trabalho que esta subscrevem, lotados na Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, com sede na Av. Churchill, 94, 11º andar, Castelo, Rio de Janeiro/RJ, CEP 20020-50, vêm à presença de Vossa Excelência, com fulcro nos arts. 1º, II, III e IV; 5º, 6º, 7º e 127, “caput”, todos da CRFB/88; art. 6º, VIII e XIV, da LC 75/93, e na Lei 7347/85, propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido de antecipação de tutela

em face de FURNAS – CENTRAIS ELÉTRICAS S.A., sociedade de economia mista, inscrita no CNPJ sob o n.° 23.274.194/0001-19, com endereço na Rua Real Grandeza, n.° 219, Botafogo, CEP 22281-431, pelas razões de fato e de direito a seguir expendidas:

I – PRELIMINARMENTE – DISTRIBUIIÇÃO POR DEPENDÊNCIA

Requer, inicialmente, o Ministério Público do Trabalho a distribuição da presente ação por dependência aos autos em epígrafe, nos termos do art. 253 do CPC, em virtude do relacionamento dessa – por conexão – com a Ação Civil Pública já ajuizada em face de FURNAS – CENTRAIS ELÉTRICAS S.A.

Tal conexão é decorrente da identidade entre as causas de pedir e pedido das ações em foco.

A causa de pedir remota da primeira Ação ajuizada repousa no fato de FURNAS utilizar empresas prestadoras de serviços e/ou cooperativas como “testas de ferro” para manter 2500 trabalhadores em seu quadro sem concurso público; enquanto que na Ação em tela, a causa de pedir remota está no fato da Ré investir em cargo público trabalhadores contratados pela Empresa após a Constituição da República, sem prévia aprovação em concurso público.

No que tange às causas de pedir próximas, a identidade das ações em foco reside na exigência constitucional da realização de concurso público para a admissão de pessoal na administração pública indireta.


Por fim, no tocante aos pedidos formulados a identidade baseia-se na obtenção de um provimento jurisdicional que determine o afastamento imediato dos trabalhadores não-concursados que prestam serviços à FURNAS, bem como, a observância do art. 37, II, da CRFB.

II – DOS FATOS

O Ministério Público do Trabalho, no âmbito da Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, no curso da investigação instaurada em face das Empresas CRT – Serviços e Construções Ltda. e CTM – Consultoria Assessoria Ltda., constatou que a Empresa FURNAS – CENTRAIS ELÉTRICAS S.A. estava delegando a terceiros a execução dos serviços próprios dos cargos integrantes da sua estrutura organizacional, em evidente burla ao artigo 37, inciso II, da Constituição da República.

Diante desses veementes indícios, o Ministério Público do Trabalho instaurou o Procedimento Preparatório de Inquérito Civil Público (PPICP) n.° 1351/2001 em face de FURNAS – CENTRAIS ELÉTRICAS S.A.

No curso do referido Procedimento, o Ministério Público do Trabalho constatou inúmeras irregularidades, tais como, utilização de empresas prestadoras de serviços e/ou cooperativas como “testas de ferro” para manter 2500 trabalhadores em seu quadro sem concurso público e contratação de empregados sem concurso público.

A terceirização ilícita das atividades da Ré foi objeto da Ação Civil Pública n.° 364.2004-026-01-00-9, em trâmite na 26ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, restando para a presente ação as irregularidades relativas à permanência de aposentados na Empresa sem a aprovação em concurso público e à contratação de empregados sem concurso público (docs. n.°01 a 06).

Quanto à contratação de empregados sem a prévia aprovação em concurso público, no mês de novembro de 2003, o Ministério Público do Trabalho tomou conhecimento da decisão do Pleno do Tribunal de Contas da União de Contas, que julgou o recurso interposto por FURNAS (doc. n.° 07). Da leitura do referido Acórdão do TCU verifica-se que FURNAS recorreu contra os prazos estabelecidos na decisão n.º 1465/2002, visando à reforma da sentença da seguinte forma: para aqueles que prestam serviços à Empresa desde 1993, integração automática no quadro da Ré; para os empregados contratados de 1994 até dezembro de 2002 – manutenção das respectivas situações junto a FURNAS – mediante a criação de um quadro suplementar, enquanto não se concretiza a substituição gradual proposta.

Ao julgar, o Plenário do Tribunal de Contas deu provimento parcial ao recurso interposto, de modo a admitir a efetivação dos empregados contratados por FURNAS até 06.06.90 e a colocação em quadro suplementar temporário dos contratados entre 07.06.90 e 04.10.02, os quais deverão ser paulatinamente substituídos por empregados concursados até o esvaziamento completo desse quadro. O TCU estabeleceu este “marco temporal” simplesmente por entender que foi somente nesta data que o STF firmou precedente de que o disposto no inc. II, do art. 37 da Constituição é aplicável às empresas públicas e sociedades de economia mista, isto é, de que os empregados da administração pública indireta estão sujeitos a concurso público.

Diante dessa absurda decisão administrativa, totalmente contrária aos ditames constitucionais, a Ré ao ser instada pelo Ministério Público do Trabalho a seguir o art. 37, II, da CRBF, coligiu aos autos cópia do Edital do Concurso n.º 01/2002, informando que as provas objetivas seriam realizadas no dia 18/01/2004 e que a irregularidade seria sanada.

Em 18/02/2004, a relação dos 9.000 (nove mil) candidatos aprovados no concurso público foi publicada .

Não obstante a realização do concurso público e a aparente observância ao ditame constitucional por FURNAS, o Ministério Público do Trabalho tomou conhecimento por meio de denúncias formuladas por candidatos aprovados no certame e pelo próprio Presidente da Empresa que: a Ré já investiu e está em vias de investir em seus quadros os trabalhadores(1), sem concurso público, inclusive, tendo já expedido telegramas convocando-os a apresentar documentos para contratação no início do mês de maio de 2004.

Assim que imprensa tomou conhecimento dessa fraude, o Jornal do Brasil publicou, nos dias 02/11/2003 e 22/03/04, entrevistas realizadas com o Presidente de FURNAS José Pedro de Oliveira e o Consultor Jurídico de Furnas Luiz Fernando Silva de Magalhães Couto. Foi através das declarações publicadas no Jornal que o Ministério Público do Trabalho se inteirou de todas as manobras utilizadas praticadas pela Ré para manter em seu quadro profissionais sem concurso público (doc. n.°10).

Em 23/03/2004, dia seguinte à publicação da matéria no Jornal, o Presidente de FURNAS José Pedro Rodrigues de Oliveira compareceu espontaneamente nesta Regional, ocasião em que confessou a pretensão da Empresa em admitir, aproximadamente, 380 empregados não-concursados, que prestam serviços à FURNAS antes de 06/06/90 (lapso temporal estipulado pelo TCU), em depoimento prestado perante a Representante do Ministério Público do Trabalho que esta subscreve e o Dr. Cláudio Tenorário Figueiredo Aguiar, membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Eis a transcrição de um trecho do depoimento prestado pelo Presidente de FURNAS (doc. n.° 09):


“ (…) que dos aproximadamente 9000 candidatos aprovados a empresa pretende nomear até o mês de maio de 2004 aproximadamente 900 candidatos aprovados; que até o mês de maio de 2004 pretende, também, efetivar os 380 empregados que prestam serviços a Furnas antes de 06/06/90; (…)”

A contratação de, aproximadamente, 380 (trezentos e oitenta) empregados ou mais, livremente escolhidos pela administração de FURNAS, sem a necessária aprovação prévia em concurso público, somado ao fato de que há 9000 (nove mil) candidatos aprovados no último concurso público, aptos e ávidos para nomeação e posse em seus cargos, demonstra de maneira irrefutável o total desrespeito por parte da Ré à Carta Magna, certamente para prestigiar os seus apaniguados políticos.

Cumpre notar, a proteção exarcebada da Empresa ao pessoal não-concursado, inclusive, o seu Presidente ao falar aos empregados de FURNAS na rede interna de computadores (intranet) faz questão de ressaltar que os não-concursados serão mantidos na Empresa. Aliás, o prestígio aos não-concursados em detrimento aos concursados é claramente evidenciado no documento n.° 12, uma vez que demonstrado está o pagamento de salário superior a um não-concursado ao valor que é pago a um servidor concursado que exerce as mesmas funções, em evidente malferimento aos Princípios da igualdade, moralidade, impessoalidade e legalidade.

É de relevo notar a contribuição da sociedade na colheita das provas necessárias para o ajuizamento da presente ação. Desde o dia 22/03/2004, data em que foi noticiada na imprensa o posicionamento do Ministério Público do Trabalho a respeito da conduta ilícita de FURNAS, até a presente data o Parquet vem recebendo inúmeros e-mails (doc. n.° 11), telefonemas e visitadas nos candidatos que lograram êxito no último concurso realizado pela Ré.

Inclusive, no dia 30 de abril do corrente ano, o Ministério Público do Trabalho tomou conhecimento por meio de e-mail que FURNAS, valendo-se da decisão do TCU, efetivou dez empregados admitidos na Empresa entre os anos de 1989 e 1990 sem concurso público, na Usina de Serra da Mesa em Goiás.

Por fim, há que se destacar que a contribuição espontânea da sociedade foi de fundamental importância para que o Ministério Público verificasse, com nitidez, o total desrespeito da Ré à Constituição da República e aos cidadãos que almejam ingressar em seu quadro pelo meio legal do concurso público.

Diante da gravidade dos fatos e da conduta recalcitrante da Ré, outra alternativa não resta ao Ministério Público do Trabalho a fim de evitar maiores danos à moralidade administrativa e ao erário, senão o ajuizamento da presente ação civil pública.

III – DO DIREITO

III.1 – Da Exigência Constitucional de Concurso Público para Provimento dos Cargos da Administração Pública Indireta

A investidura em cargo ou emprego público depende de prévia aprovação em concurso público na administração pública direta, indireta ou fundacional, excetuadas apenas as nomeações para cargos em comissão, assim declarados em lei.

Esse princípio, insculpido no art. 37, II, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), alcança também as empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades de que o Estado participe, que explorem atividade econômica.

O renomado jurista Celso Antônio Bandeira de Mello ao tratar da extensão do preceito constitucional supra referido às empresas estatais que exploram atividade econômica, faz esclarecedoras considerações, dentre as quais destacamos as seguintes:

“Ante o teor do art. 37, caput, evidencia-se, com luminosa clareza, que todas as empresas públicas, sociedades de economia mista e mesmo as fundações governamentais de direito privado estão sujeitas à realização do concurso público para admissão de pessoal”. (2)

No mesmo sentido pronunciou-se o emérito tratadista Adilson Abreu Dallari:

“Em resumo, o concurso público é instrumento de realização concreta dos princípios constitucionais da isonomia e da impessoalidade. Fique perfeitamente claro que os dispositivos do art. 37 da Constituição Federal se aplicam ao gênero servidores, abrangendo funcionários estatutários e empregados celetistas, inclusive das empresas estatais que exercem atividades econômicas (art.173 da CF). Conforme ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a possibilidade de contratar servidores pelo regime celetista não torna ninguém imune à Constituição.” (3)

Desse modo, conforme repetidamente ressaltado pelos administrativistas, o concurso público representa o mais aperfeiçoado instrumento de aferição objetiva do mérito pessoal visando à composição dos quadros da Administração, atendendo – a um só tempo – ao princípio da igualdade de acesso ao serviço público e ao ideal de seleção dos melhores candidatos ao munus estatal, buscando-se, por seu intermédio, a identificação daqueles que se apresentam mais capacitados ao desempenho das relevantes funções relativas à administração da res pública.


Por defluir diretamente da isonomia, cânone erigido pelo próprio texto constitucional ao status de direito fundamental (art. 5º, caput, da CRFB), o princípio do livre acesso aos cargos públicos guarda íntima correlação com o próprio ideário republicano de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, da CR), o que bem demonstra a importância de sua incidência integral a todo e qualquer ato concursal público, única fórmula capaz de legitimar a seleção levada a cabo pela Administração.

A finalidade do concurso público é, justamente essa, a de assegurar igualdade de condições para todos os concorrentes, evitando-se favorecimentos ou discriminações, permitindo-se, assim, à administração a seleção dos melhores.

Resta claro, portanto, a disposição do constituinte em moralizar o ingresso nos quadros da Administração Pública, dando a todos um tratamento igualitário, sem nenhum privilégio de qualquer sorte.

A obrigatoriedade do concurso público para preenchimento dos cargos e empregos na Administração Pública, segundo escólio de Hely Lopes Meirelles, existe em decorrência dos seguintes motivos:

“O concurso público é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se a moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CF. Pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados que costumar abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder leiloando os cargos e empregos públicos. (4)

Esse é o fim almejado na presente ação obstar que FURNAS escolha com quem quer contratar independentemente de concurso público em evidente malferimento aos princípios da impessoalidade, igualdade, publicidade, probidade e legalidade, princípios esses consagrados na Constituição da República.

Sintetizando magistralmente todo o plexo principiológico informativo dos comandos contidos no art. 37, caput, incisos I e II, da CRFB assevera o Prof. José dos Santos Carvalho Filho, que:

“Baseia-se o concurso em três postulados fundamentais. O primeiro é o princípio da igualdade, pelo qual se permite que todos os interessados em ingressar no serviço público disputem a vaga em condições idênticas para todos. Depois, o princípio da moralidade administrativa, indicativo de que o concurso veda favorecimentos e perseguições pessoais, bem como situações de nepotismo, em ordem a demonstrar que o real escopo da Administração é o de selecionar os melhores candidatos. Por fim, o princípio da competição, que significa que os candidatos participam de um certame, procurando alçar-se a classificação que os coloque em condições de ingressar no serviço público”. (5)

O Administrador Público deve agir inspirado nos princípios constitucionais vigentes, cabendo trazer à colação os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“…violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremessível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.” (6)

Certo é que:

“Na administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’; para o administrador público significa ‘deve fazer assim’. As leis administrativas são, normalmente, de ordem pública e seus preceitos não podem ser descumpridos, nem mesmo por acordo ou vontade conjunta de seus aplicadores e destinatários, uma vez que contêm verdadeiros poderes-deveres, irrelegáveis pelos agentes públicos. Por outras palavras, a natureza da função pública e a finalidade do Estado impedem que seu agentes deixem de exercitar os poderes e cumprir os deveres que a lei lhes impõe. Tais poderes, conferidos à Administração Pública para serem utilizados em benefício da coletividade, não podem ser renunciados ou descumpridos pelo administrador sem ofensa ao bem comum, que é o supremo e o único objetivo de toda ação administrativa.” (7)

Dessarte, na contratação de pessoal sem a prévia aprovação em concurso público, estará a administração indevidamente abrindo mão do direito-dever de recrutar os melhores dentre os candidatos que concorreram às vagas, com violação a direitos constitucionais dos cidadãos e prejuízos à qualidade dos serviços contratados, com lesão a direitos dos outros potenciais interessados de concorrer em igualdade de condições, dentro de critérios impessoais.


Portanto, diante do ordenamento jurídico pátrio, dúvida não pode haver quanto à necessidade preemente de que os trabalhadores não-concursados que desempenham suas funções em FURNAS sejam afastados, tendo seus contratos de trabalho rescindidos, e substituídos por aqueles que tenham logrado aprovação em concurso público.

Ora, se já existem 9.000 (nove mil) candidatos aprovados no último concurso público realizado por FURNAS, o caminho natural a ser seguido pela Ré é a nomeação e a posse de tantos candidatos aprovados quantos forem os postos de trabalho atualmente ocupados por empregados não-concursados.

A jurisprudência sobre a matéria está pacificada pelo Excelso Supremo Tribunal Federal que assim se posicionou:

“CARGOS E EMPREGOS PÚBLICOS. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA, INDIRETA E FUNDACIONAL. CONCURSO PÚBLICO. A acessibilidade aos cargos públicos a todos os brasileiros, nos termos da lei, e mediante concurso público é princípio constitucional explícito, desde 1934, art. 168.

Embora cronicamente sofismado, mercê de expedientes destinados a ilidir a regra, não só foi reafirmado pela Constituição, como ampliado para alcançar os empregos públicos, art. 37, I e II.

Pela vigente ordem constitucional, em regra, o acesso aos empregos públicos opera-se mediante concurso público, que pode não ser de igual conteúdo, mas há de ser público.

As autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista estão sujeitas a regra, que envolve a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Sociedade de economia mista destinada a explorar atividade econômica está igualmente sujeita a esse princípio, que não colide com o expresso no art. 173, parágrafo 1º.

Exceções ao princípio, se existem, estão na própria Constituição.” (8)

Como bem evidenciado pelo E. Supremo Tribunal Federal, ”exceções ao princípio, se existem, estão na própria Constituição, ora ao deixar prevalecer o lapso temporal criado pelo TCU 06/06/90 (data da publicação da decisão que dirimiu a celeuma em torno da obrigatoriedade do concurso público para a contratação de empregados pela Administração Pública Indireta) estar-se-á dando azo a uma exceção não contemplada na Constituição da República, portanto ilegal.

Observe-se que o fato de o STF ter estabelecido jurisprudência sobre a questão somente em 06.06.90 não assegura qualquer espécie de “direito adquirido” àqueles que ingressaram irregularmente antes daquela data. Primeiro, porque não há que se falar em direito adquirido decorrente de interpretação equivocada da Constituição; segundo, porque não há direito adquirido contra a Constituição; e, finalmente, em terceiro lugar, porque a interpretação do STF em matéria constitucional em regra não gera efeitos ex nunc. Tanto assim é que a Lei 9868/99 estabelece que somente excepcionalmente o STF pode decidir que a decisão em ação direta de inconstitucionalidade tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de qualquer outro momento que venha a ser fixado. E, veja-se, em relação à decisão em questão, sequer se tratava de julgamento em ADIN. Portanto, o TCU decidiu de forma absurda e estapafúrdia ao reconhecer àqueles que foram admitidos sem concurso entre 05.10.88 e 06.06.90 um “direito adquirido” que de forma alguma pode ser reconhecido.

E mais, o art. 37, “caput” e inciso II, é de uma clareza cristalina não havendo razão para lançar-se dúvidas acerca da exigência do concurso público para preenchimento dos cargos ou empregos públicos da Administração Pública Indireta. Em verdade, a justificativa apresentada pelas entidades que a compõem para explicar a suposta dúvida quanto a tal obrigatoriedade, nada mais foi, do que a utilização de via transversa para burlar a regra constitucional impositiva do concurso público.

III. 2 – Da Nulidade das Contratações

Na senda dos subsídios doutrinários acima destacados, os princípios administrativos da igualdade, impessoalidade e moralidade formam, assim o substrato inafastável de todo e qualquer certame, cuja violação conduz à nulidade absoluta dos atos praticados e a punição da autoridade responsável pela desobediência à regra, uma vez que:

“A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado” (9)

Afora a investidura nos casos de cargos em comissão, desse modo declarados em lei, as demais admissões sem concurso público feitas pela administração direta e indireta serão írritas e deverão ser desconstituídas de imediato, sem prejuízo da ação de responsabilidade daí decorrente, conforme dicção do §2º do art. 37 da CRFB: “A não-observância do disposto nos incisos II e III implicará a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, nos termos da lei.”

No caso sub lumen, restou cabalmente demonstrada a intenção da Ré em preencher empregos públicos com pessoas que não prestaram concurso público em afronta direta ao que dispõe o art. 37, inciso II, da Constituição da República, ainda mais, diante da extensa lista de candidatos aprovados no último certame público, aptos e ávidos para nomeação e posse.


No entanto, oportuno ressaltar que há uma convergência doutrinária e jurisprudencial no sentido de não convalidar os atos tidos como nulos pela Constituição.

“Na administração Pública direta ou indireta, não pode ser reconhecido o contrato tácito ou chamado ‘contrato realidade’, uma vez que seus atos estão submetidos aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Aliás, a ninguém ocorreria, seriamente, sustentar a validade de atos em fraude à Constituição. Quod nullum acto est nullum effectum producit (quando nulo o ato, nenhum efeito produz). O Poder Judiciário deve ser, sempre, o guardião da Constituição”. (10)

Ao julgar caso idêntico ao em tela tendo como parte CENTRAIS ELÉTRICAS DO SUL DO BRASIL S/A – ELETROSUL, decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região:

“CONTRATO DE EMPREGO. NULIDADE. A contratação irregular de empregado pela administração pública direta e indireta, em conflito com o art. 37, II, da Constituição não gera efeitos. Os atos nulos, como tais declarados pela Lei e pela Constituição, não podem gerar efeitos, e a declaração judicial de nulidade opera na sua origem (art. 37, §2º, da CF).” (11)

É preciso deixar claro que nesta Ação está em questão um princípio: pode o administrador contratar impunemente, sem concurso, fazer tabula rasa da lei e ficar tudo por isso mesmo? Pode cometer tais irregularidades e mandar a conta para os cofres públicos?

III.3 – Da Inviabilidade das Justificativas de FURNAS com base na Decisão do TCU, à Luz da Constituição

Ocorre que referida decisão não se sustenta quando confrontada com os valores e princípios da Constituição da República.

A se entender que a decisão do TCU permita a contratação de empregados pela Administração Pública Indireta, sem prévio concurso público, até 06.06.90, estar-se-ia dizendo que o referido Tribunal acabara de legitimar a violação expressa ao art. 37, II, da Constituição da República, promulgada no dia 05 de outubro de 1988, aos princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade e da moralidade dos atos da Administração, à dignidade da pessoa humana, o que não se pode admitir.

Numa eventual ponderação entre os princípios constitucionais em conflito, diante de um juízo de certeza e outro de probabilidade e de um juízo de legalidade e outro de ilegalidade, o maior peso deverá recair sobre o princípio vinculado a uma idéia de certeza e legalidade.

O que se pretende dizer é que a contratação de empregados sem prévia aprovação em concurso público, em detrimento dos candidatos aprovados no último certame, estar-se-á realizando uma ilegalidade/inconstitucionalidade por conta da violação ao princípio da exigência do concurso público para privilegiar uma situação hipotética no caso da nomeação dos concursados, qual seria, a interrupção da prestação de serviços.

Em verdade, decisão do TCU tem como substrato a alegada experiência desastrosa do ‘apagão’. Esse acontecimento foi utilizado como forma de persuasão para garantir a permanência dos terceiros em seus quadros, bem como, a contratação dos empregados não-concursados que foram admitidos na Empresa até 06.06.90, em detrimento aos candidatos aprovados.

Infelizmente, conclui-se que o TCU ao assim decidir, acabou por dar mais peso para ilegal e o provável (manutenção da mão-de-obra não-concursada diante da possibilidade de haver problemas na continuidade da prestação do serviço público em caso de substituição pela concursada) em evidente detrimento ao valor legal e certo (exigência de concurso público).

III.4 – Da Não-Vinculação à Decisão do TCU

O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição da República, garante que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, assegurando a todo aquele que se sentir lesado ou ameaçado na concretização de seus direitos, o acesso aos órgãos judiciais.

Sendo três as funções exercidas pelo Estado através dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, cabe a esse último como decorrência do Princípio da Separação dos Poderes, dizer o direito com força de coisa julgada.

Por tal razão, as decisões proferidas pelo Tribunal de Contas, integrante que é do Poder Legislativo, não possuem as características de definitividade (coisa julgada) e a vinculação para todos (efeito erga omnes), haja vista que os atos por ele praticados possuem natureza administrativa, concernente, basicamente, à fiscalização.

Nesse sentido e elucidativos a respeito são a doutrina e jurisprudência a seguir transcritas:

“O inciso II do art. 71 atribui ao Tribunal de Contas competência para julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiro, bens e valores públicos da Administração Direta ou Indireta, bem como as contas daqueles que provocarem a perda, extravio ou outra irregularidade, causando prejuízo ao erário. O termo julgar no texto constitucional não tem sentido normalmente atribuído aos juízes no exercício de sua função jurisdicional. O sentido do termo é o de apreciar, examinar, analisar as contas, porque a função exercida pelo Tribunal de Contas na hipótese é de caráter eminentemente administrativo. Por isso, esse exame se sujeita, como qualquer ato administrativo, ao controle do Poder Judiciário no caso de contaminado de vício de legalidade, e não tem a definitividade que qualifica os atos jurisdicionais.” (12)


“Nesse caso, a função do Tribunal de Contas não é controlar, no sentido próprio da palavra, mas sim opinar, porque somente ao Poder Legislativo cabe julgar as contas do chefe do Poder Executivo, nos termos do art. 49, IX.” (13)

É por essas razões que a nova decisão exarada pelo TCU quando do reexame da decisão 1465/2002, nenhum efeito vinculativo gera para o Ministério Público e Judiciário.

Aliás, é paradoxal a decisão do TCU no caso em apreço, visto que em casos semelhantes ao em tela o Tribunal de Contas da União exige que admissão de pessoal seja precedida de prévia aprovação em concurso público, inclusive, tendo até consolidado o seu entendimento acerca dessa exigência para a Administração Pública Indireta no Enunciado n.º 231, cujo teor merece transcrição:

“A exigência de concurso público para admissão de pessoal se estende a toda a Administração Indireta, nela compreendidas as autarquias, as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, as sociedades de economia mista, as empresas públicas e, ainda, as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, mesmo que visem a objetivos estritamente econômicos, em regime de competitividade com a iniciativa privada. (…)”

Dessa forma, são ilegais as contratações realizadas por FURNAS após a promulgação da Constituição Federal em 05 de outubro de 1988.

Oportuno notar que não há que se falar em direito adquirido dos admitidos sem concurso público até 06/06/90 pela sociedade em tela, porque não existe direito adquirido emanado de ato ilegal. Tampouco, há que se falar em segurança jurídica de uma decisão emanada do Tribunal de Contas da União, de natureza meramente administrativa, porque a segurança jurídica de uma decisão emanada pela Administração Pública está condicionada à adoção da forma e dos procedimentos legalmente exigidos, o que não ocorreu no caso em foco.

IV) DO REQUERIMENTO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

O art. 12 da Lei 7347/85, que instituiu a Ação Civil Pública, autoriza: “Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo.”

De início, cabe ressaltar que a medida liminar prevista na ação civil pública não tem natureza cautelar; trata-se de típica hipótese de antecipação de tutela e, assim, devem estar presentes os requisitos do art. 273 do CPC, conforme lição de HUMBERTO THEODORO JUNIOR:

“A propósito, convém ressaltar que se registra, nas principais fontes do direito europeu contemporâneo, o reconhecimento de que, além da tutela cautelar, destinada a assegurar a efetividade do resultado final do processo principal, deve existir, em determinadas circunstâncias, o poder do juiz de antecipar, provisoriamente, a própria solução definitiva esperada no processo principal. São reclamos de justiça que fazem com que a realização do direito não possa, em determinados casos, aguardar a longa e inevitável sentença final.

Assim, fala-se em medidas provisórias de natureza cautelar e medidas provisórias de natureza antecipatória; estas, de cunho satisfativo, e aquelas, de cunho apenas preventivo.

Entre nós, várias leis recentes têm previsto, sob a forma de liminares, deferíveis ‘inaudita altera pars’, a tutela antecipatória, como, por exemplo, se dá na ação popular, nas ações locatícias, na ação civil pública, na ação declaratória direta de inconstitucionalidade, etc.” (14)

No caso estão presentes todos os requisitos que ensejam o deferimento de tutela antecipada.

Quanto ao requisito da verossimilhança (art. 273, caput), resta fartamente demonstrado pelas provas colhidas durante o procedimento investigatório realizado pelo Parquet e que instrui esta ação. Ou seja, decorre da possível investidura de empregados, sem a prévia aprovação em concurso público, inclusive, para cargos em que há candidatos aprovados no último concurso público, que é, sob qualquer ângulo da questão, absolutamente ilegal.

Frise-se que a contratação de trabalhadores sem concurso público após a vigente Constituição da República possibilita situação de extrema desigualdade, no interior do estabelecimento patronal, entre os seus empregados concursados e aqueles meramente contratados sem prévia aprovação em concurso público, além de escancarar as portas da administração pública a toda sorte de subterfúgios inclusive no que se refere à inobservância dos maiores cânones do Direito Administrativo, os Princípios da Moralidade, Impessoalidade e Legalidade, aqui materializados na necessidade de realização de certame para contratação de empregados na esfera pública.

Assim sendo, não se pode deixar de invocar, como translúcido sinal de verossimilhança, a manifesta violação ao art. 37, II, da Constituição da República.


Quanto ao fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação é objetivamente apreciável e de fácil constatação, pois não sendo concedida a presente tutela antecipada que ora se pleiteia, comprometido estará a moralidade pública, ante a possibilidade dessa conduta ilícita se perpetuar até final julgamento da lide. Há que se falar, também, que a lesão se estenderá ao empregados contratados diante da possível declaração de nulidade do contrato celebrado.

Aliás, é absurda a quantidade de trabalhadores, sem concurso público, que estão prestes a serem investidos nos quadros da ré, causando grave lesão ao interesse daqueles que aspiram tornar-se empregados da ré pela via legal (concurso público). Isso sem falar no gasto do dinheiro público com a referida contratação ilícita.

Ora, a ordem jurídica, se concretizadas forem as contratações, estará irremediavelmente sendo violada junto com os cofres públicos.

É importante salientar, inclusive, que é notória, pois anunciada à exaustão por toda imprensa, a liberação do Governo Federal para a realização de concurso público e FURNAS com 9.000 candidatos aprovados está em vias de contratar trabalhadores sem concurso público, relegando para segundo plano os profissionais que pela via legal submeteram-se a um concurso público.

Por fim, da mesma forma, torna-se indispensável e inadiável a concessão de medida liminar inaudita altera pars a fim de evitar que não se torne inócua a tutela jurisdicional

Em suma, verifica-se, na hipótese em foco, a preemente necessidade de impedir a investidura de trabalhadores, sem prévia aprovação em concurso público de provas e títulos, cujas contratações iniciar-se-ão no início do mês de maio de 2004.

Outrossim, o deferimento da antecipação da tutela não prejudicará a população, porquanto FURNAS dispõe de mão-de-obra concursada para ocuparem os cargos deixados pelos, aproximadamente, 380 (trezentos e oitenta) trabalhadores contratados pela ré. A alegação da Empresa que de essa mão-de-obra é especializada e que a mão-de-obra concursada não é hábil para o desempenho das tarefas inerentes aos cargos para os quais foram aprovados, é mais uma manobra da ré para prestigiar os apaniguados políticos e manter esses empregados contratados em seus quadros.

Desse modo, em virtude na própria natureza das investiduras a serem realizadas, não se pode deixar perpetuar-se a fraude ao concurso público e aos direitos sociais constitucionalmente garantidos aos trabalhadores e permitir que essa lesão, inclusive aos cofres públicos, se concretize.

V – DO DANO GENÉRICO

Aplica-se à presente ação as prescrições relativas à composição do dano genérico causado a todos os postulantes aos cargos públicos ilicitamente ocupados. É um dano cuja quantificação dos lesados não é possível precisar. É um dano genérico, de abrangência difusa, que não se confunde com o dano individual comum ao direito do trabalho.

Trata-se de um prejuízo moral potencial de que foi alvo toda a coletividade de trabalhadores da Ré, como também, a própria sociedade na medida em que violada a ordem social, conforme demonstrado acima. Por essa razão, justifica-se a reparação genérica, não somente pela dificuldade de se reconstituir o mal já impingido à coletividade, mas, igualmente, por já ter ocorrido a transgressão ao Ordenamento Jurídico vigente.

Destaca-se, ainda, que esse dano desferido, potencialmente, a um universo de pessoas que é impossível de determinar, tanto a priori, como a posteriori, deve ser reparado in continenti, não se confundindo, em absoluto, com as eventuais reparações individuais que venham a ser impostas à Ré.

Necessário se faz, portanto, um meio que, a um só tempo, impeça o transgressor de eximir-se da obrigação de reparar o mal causado – sob o argumento de que seria impossível individualizar os lesados e permita, ao menos de forma indireta, que todos os atingidos pela conduta contrária aos preceitos legais (utilização e contratação de mão-de-obra, após 05 de outubro de 1988, em atividades cujos cargos somente deveriam ser ocupados através de admissão de pessoal mediante prévia aprovação em concurso público) sejam ressarcidos pelos danos sofridos.

Com o fim de solucionar tais inconvenientes é que o legislador inseriu no art.13, da Lei nº7.347/85, a possibilidade de ser cobrada indenização reversível a um Fundo criado com a finalidade de proteção aos bens lesados, artigo esse que assim dispõe, in verbis:

“Art.13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados.”


No mesmo sentido é a lição de Antônio Augusto Melo de Camargo, Edis Milaré e Nelson Nery Júnior, a seguir transcrita:

“Uma solução inovadora exigia também o problema da destinação da indenização: como o bem lesado é coletivo, como os interesses desrespeitados são difusos, seria tarefa impossível distribuir a indenização por todos os prejudicados (muitas vezes toda a coletividade).

Titular do direito à indenização não pode ser também o Estado-Administração, que muitas vezes é o causador direto do dano e que sempre será indiretamente responsável por ele.

(…)

A alternativa que nos parece eficaz é a da criação de um fundo, constituído pela soma das indenizações que venham a ser fixadas e que deverá ser aplicado para recomposição dos estragos perpetrados contra os bens de uso coletivo”. (15)

Pelo exposto, requer o Ministério Público do Trabalho a condenação da ré ao pagamento de indenização pelos danos genéricos causados, reversíveis ao Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT.

VI – DA COMPETÊNCIA

Nos termos do art.114, da Constituição da República. “compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores (…) e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho (…)”.

O artigo 83, inciso III, da Lei Complementar nº75/93, estabelece que “compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho: … III – promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para a defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos”. (grifo nosso)

A própria natureza da lide possui nítido caráter trabalhista, o que torna irrefutável a competência da Justiça do Trabalho para conhecer e julgar a ação. Registre-se que os servidores de FURNAS são regidos pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho.

VII – DA LEGITIMIDADE PARA A CAUSA

Por força do art. 127 da Carta Magna é dever do Ministério Público a proteção do ordenamento jurídico, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Mais adiante no seu art. 129, diz a Norma Constitucional:

“São funções institucionais do Ministério Público:

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.”

Na mesma esteira seguem as disposições da Lei Completar n.° 75/93, que disciplina as atribuições do Ministério Público do Trabalho. O art. 6º, integrante do Capítulo II da Lei n.º 75/93, destaca dentre as atribuições do Parquet, a seguinte:

VII – promover o inquérito civil público e a ação civil pública para:

a) a proteção dos direitos constitucionais;

b) a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

c) …

d) outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos;

XIV – promover outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, especialmente quanto:

a) ao Estado de Direito e às instituições democráticas;

c) à ordem social;

f) à probidade administrativa…”

A presente visa a tutelar direitos e interesses difusos, eis que não restritos a uma única categoria, mas abrangendo todos os cidadãos que poderiam ter acesso a tais empregos e que têm direito a uma Administração impessoal e cumpridora dos preceitos legais – art. 37 da CRFB.

Inicialmente cumpre frisar que a presente não tem qualquer caráter reparatório, pretendendo apenas que a ré seja condenada a abster-se de contratar empregados sem prévia aprovação em concurso público, nos termos do art. 37, II, da Constituição da República e, no que tange aos contratos já celebrados ao arrepio da Carta Magna, a declaração de nulidade do mesmos, eis que tal forma de contratação afronta dispositivos constitucionais, tais como: o que determina que os servidores da administração pública indireta devem ser contratados após prévia aprovação em concurso público; o que dispõe sobre a proteção da relação de emprego; o que prevê que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a valorização social do trabalho humano; o que dispõe sobre a proteção da relação de emprego; o que reza que a nossa ordem social tem como base o primado do trabalho e o que estabelece o princípio do pleno emprego como indispensável à nossa ordem econômica. Por óbvio que esses direitos tutelados são de interesse difuso.


Esses direitos têm como titular não só a coletividade de trabalhadores os quais são insuscetíveis de individualização, mas que pretendem obter um emprego efetivo e permanente, mediante concurso público, que lhes assegurem todos os direitos trabalhistas a que fazem jus seus colegas que trabalham na mesma empresa e, ainda, toda a sociedade. Sociedade essa tutelada pelas normas constitucionais, dentre as quais a que determina que a contratação de servidores pela administração pública indireta depende de prévia aprovação em concurso público.

São características dos direitos e interesses difusos: a) a transindividualidade, vale dizer, a circunstância de ultrapassarem a esfera pessoal do indivíduo pelo fato de não pertencerem exclusivamente a ele, mas eventualmente a todos, podendo, até mesmo, transferir-se de um para outro conforme condições de tempo e lugar; b) indivisibilidade, ou seja, não poderem fragmentar-se, pois, interessam a toda a coletividade e não apenas a um ou a alguns de seus membros; c) a indeterminabilidade dos titulares respectivos, na medida em que esses não estão claramente individualizados, do mesmo modo que nenhuma pessoa, isoladamente, pode intitular-se seu sujeito; d) a circunstância de se ligarem a seus titulares por simples fato e não, necessariamente, em decorrência de relação jurídica.

Ora, o direito que o Ministério Público pretende ver tutelado na presente ação possui todas essas características. É transindividual, eis que de interesse de toda a coletividade como já descrito. É indivisível, na medida em que não interessa apenas a um ou alguns membros da coletividade. Seus titulares são indeterminados, por não poderem ser individualizados. Seus titulares se ligam por um simples fato e, não somente, em decorrência de uma relação jurídica, uma vez que o fato de a ré praticar atos contrários à lei atinge não só os indivíduos que participam da relação jurídica propriamente dita, mas os demais indivíduos que dela não participam e têm seu direito violado em função da mesma.

Nesse sentido, decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região:

“Ação Civil Pública. Objeto. A ação civil pública, conquanto não se preste a amparar direitos individuais, é instrumento processual adequado para reprimir ou impedir danos a qualquer interesse difuso ou coletivo, sendo certo que o provimento em cargo público sem a observância de concurso igualmente público, atinge os interesses de todos aqueles considerados potenciais candidatos ao cargo preenchido de forma ilegal ou irregular, porquanto interesse difuso de natureza trabalhista, que atrai a incidência do citado remédio processual.” (16)

VIII – DO PEDIDO

Ante o exposto, o Ministério Público do Trabalho pede:

A) EM CARÁTER PROVISÓRIO:

A.1) a antecipação dos efeitos da tutela, inaudita altera parte, na forma do art. 461, parágrafos 3º e 5º, do CPC, c/c o art. 12 da Lei 7.347/85, a fim de que a Ré seja impedida – imediatamente e até julgamento final da presente ação – de contratar empregados, inclusive os admitidos entre 05.10.88 e 06.06.90 (relação em anexo), sem prévia aprovação em concurso público de provas e títulos, na forma do art.37, II, CRFB/88, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais), por trabalhador contratado em desacordo com a decisão, reversível ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (art. 11, VI, da Lei n.º 7998/90);

A.2) a antecipação dos efeitos da tutela, inaudita altera parte, na forma do art. 461, parágrafos 3º e 5º, do CPC, c/c o art. 12 da Lei 7.347/85, a fim de que a Ré, para que a ré seja compelida – imediatamente – a afastar os empregados não-concursados que prestam serviços à Empresa (inclusive os admitidos entre 05.10.88 e 06.06.90 – relação em anexo), sob pena de pagamento de multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), reversível ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (art. 11, VI, da Lei n.º 7998/90);

B) EM CARÁTER DEFINITIVO:

B.1) confirmação da tutela antecipada requerida no item anterior;

B.2) a condenação da Ré, na forma do art. 461 do CPC c/c o art. 11 da Lei 7.347/85 na obrigação de não fazer, consubstanciada na abstenção de contratar empregados sem concurso público, nos termos do art.37, II, CRFB, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais), por trabalhador contratado em desacordo com a decisão, reversível ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (art. 11, VI, da Lei n.º 7998/90);

B.3) a condenação da Ré, na forma do art. 461 do CPC c/c o art. 11 da Lei 7347/85 na obrigação de fazer, sempre que entender necessária a contratação de trabalhadores, realizar concurso público de provas ou de provas e títulos, na forma da legislação, sob pena de pagamento da multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais), por trabalhador contratado em desacordo com a decisão, reversível ao FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador (art. 11, VI, da Lei n.º 7998/90);


B.4) a condenação da Ré a reparar os danos perpetrados a toda coletividade (indeterminável) de trabalhadores, no valor de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais), quantia a ser depositada no Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT), a título de reparação do dano genérico sofrido, na forma do art. 13 da Lei 7347/85.

B.5) que seja declarada a nulidade de todos os contratos de trabalho, porventura firmados com trabalhadores sem concurso público, após 05 de outubro de 1988, com a conseqüente rescisão dos mesmos.

IX – DOS REQUERIMENTOS FINAIS

a citação da Ré para, querendo, contestar a presente ação;

b) a produção de todos os meios de prova admitidos em direito, inclusive, o depoimento pessoal dos representantes legais da Ré e, ainda, prova documental;

c) a intimação pessoal e nos autos do Ministério Público, nos termos do art. 18, II, “h”, da LC 75/93.

Dá-se à causa o valor de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais).

Termos em que pede deferimento.

Rio de Janeiro, 07 de maio de 2004

GUADALUPE LOURO TUROS COUTO

Procuradora do Trabalho

CÁSSIO CASAGRANDE

Procurador do Trabalho

JÚNIA BONFANTE RAYMUNDO

Procuradora do Trabalho

RELAÇÃO DE DOCUMENTOS EM ANEXO:

Apreciação Prévia;

Ofício desta Regional, convocando o Presidente de FUNAS para prestar esclarecimentos;

Termo do Depoimento prestado pelos Representantes da Ré;

Resolução n.° 14, de 28 de outubro de 1997, do Ministério do Planejamento e Orçamento;

Termo de Depoimento dos Representantes da Ré e carta de preposto;

Esclarecimentos prestados por FURNAS aos 27/05/2003 em audiência realizada nesta Regional;

Decisão do TCU;

Relação nominal dos 2500 empregados contratados por FURNAS sem concurso público;

Ata da Audiência realizada nesta Regional com a presença do Presidente de FURNAS José Pedro Rodrigues de Oliveira e do Promotor de Justiça, Dr. Cláudio Tenório Figueiredo Aguiar;

Cópia das matérias publicadas no Jornal do Brasil;

Cópia das denúncias recebidas por e-mail;

Cópia do contra-cheque de um concursado, cujo salário é de R$1.051,20, e de uma comunicação interna solicitando aumento salarial de um contratado sem concurso público, onde se verifica a violação ao princípio da igualdade;

Mensagem do Presidente de FURNAS transmitida aos empregados por meio da rede interna de computadores;

Relação dos trabalhadores que serão admitidos sem concurso público.

Notas de Rodapé:

1) Relação nominal dos candidatos sem concurso público que serão admitidos em maio de 2004 (doc. n.°14)

2) In ‘Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta’, São Paulo, RT, 1990, p.35.

3) In ‘Regime Constitucional dos Servidores Públicos’, 2ªed.ver.e atual., São Paulo, RT, 1990, p. 27.

4) “Direito Administrativo Brasileiro”. São Paulo Malheiros, 24ª ed., 1999, p. 387.

5) “Manual de Direito Administrativo”, Lúmen Júris, 11ª ed., 2004, p. 512.

6) RDP n.º 15/283.

7) Hely Lopes Meirelles, ob.cit. p. 82.

8) MS 21332-1 – DF – Ac TP, 03.12.92, Rel. Min. Paulo Brossard.

9) ADI n.º 2661/MA, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno.

10) Hely Lopes Meireles, ob. cit., p. 191.

11) RO-V 1958/97, Ac. da 2ª Turma, Rel. Roberto João Motta, Recte. Nasareno da Silva Oliveira e Rcdo. Centrais Elétricas do Sul do Brasil S/A – ELETROSUL, origem 2ª Junta de Conciliação e Julgamento de Tubarão/SC, publ. 03/11/97.

12) Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11ª ed. Lúmen Júris, 2004, p. 836.

13) STF, Pleno, RE 132.747/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, RTJ, 157: 989.

14) In “As Inovações do Código de Processo Civil”, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 12.

15) In “A ação civil pública e a Tutela jurisdicional dos interesses difusos”. São Paulo: Saraiva, 1984, pp81 e 82.

16) TRT- RO – 096/2000, Ac. 1ª Turma, Rel. Juiz Pedro S.A. Navarro, Rectes: Ministério Público do Trabalho e Serviço Federal de Processamento de Dados – SERPRO. Rcdos: Os mesmos. Origem: 4ª Vara do Trabalho de Brasília.

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