O veneno

Erro político produziu Constituição difícil até para técnicos

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13 de junho de 2004, 10h05

Frustrada a luta pela aprovação da emenda constitucional que propiciaria eleição direta para a Presidência da República em 1984, o caminho da democratização levou à convocação da Assembléia Constituinte. A vitória das forças políticas a favor da Constituinte materializou-se na 26a emenda à Constituição de 1969. Os deputados federais e senadores eleitos em 1986 receberam a atribuição de lavrar as normas maiores.

Uma das discussões da época versava sobre a amplitude do texto constitucional: sintético ou analítico. Essa foi a opção vitoriosa, sobretudo porque recebeu a adesão dos partidos de esquerda. Defender texto enxuto tornou-se sinônimo de atraso. Elegante, politicamente correto, era constitucionalizar tudo, até miudezas da vida pública e privada. Estar escrito na Constituição bastaria para mudar a realidade. O texto político mor passou a ter a aura de um livro mágico, que guarda as palavras certas, aptas a produzir matéria, a determinar condutas. Algo assim como se as crendices e tolices cabalísticas que aparecem nos livros infantis pudesse mudar a realidade.

Não há palavras mágicas e livros são aglomerações de folhas de papel que dão suporte físico a idéias, expressas por sinais gráficos. Idéias movem e são movidas pelo mundo. Uma constituição com idéias civilizatórias postas no mesmo nível de temas absolutamente conjunturais, que não movem o mundo e sim são removidas dele, não tem o poder de guiar razoavelmente uma sociedade plural. A cinese das grandes idéias expressas na Constituição foi neutralizada pela inércia das insignificâncias alçadas ao status de magnas.

O erro político dos “progressistas” de 1988 produziu uma constituição analítica, difícil até mesmo aos técnicos. Rousseau dizia ser mal constituído o Estado no qual há mais leis do que a memória do cidadão pode conter. Ora, a Constituição Cidadã não é passível de conhecimento comum! As suas grandes idéias não fazem parte da pauta de valores cotidianos das pessoas porque é impossível a elas, conhecê-las.

A senilidade natural dos temas momentâneos, fugazes, aos quais se atribuiu a rigidez constitucional, fez a Constituição de 1988 envelhecer sem ter vivido. Por isso, as emendas em escala industrial, que causam a impressão de uma constituinte perpétua. A Assembléia Constituinte, a pretexto de exorcizar o passado, impingiu aos pósteros regras para acontecimentos rotineiros de uma realidade cambiável. De certa forma, a onisciência do Constituinte lembra a pretensão arrogante de Hammurabi que afirmou a perfeição de suas normas e a determinação de que os cidadãos do futuro deveriam obedecer a elas, sob pena de castigo divino.

O malefício profundo causado pela analítica Constituição de 1988 é a impossibilidade de governar sem maioria de 3/5 no Congresso. Em ambiente democrático não existe força política tão hegemônica.

Todos os governos que se obrigam a tal maioria são gelatinosos, melequentos, desprovidos de alma. Não há programa partidário que permaneça incólume a uma base aliada que alcança 80% do Parlamento. Na geléia geral, patina-se. Não há movimento para frente, progresso, sem vetores ideológicos. Talvez seja prudente arrumar as coisas para que haja governos apenas majoritários, não totais. Se tudo é constitucional, nada é magno.

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