Tortura em questão

É irônico que os Estados Unidos repudiem tribunais internacionais

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11 de junho de 2004, 10h27

Segundo velha anedota nas faculdades de Direito, certo figurão perdera sua bolsa durante um baile de Carnaval. Pensando ter sido furtado na penumbra do clube, girou o olhar para a mesa do lado e rapidamente foi ao telefone chamar a polícia. O suspeito tinha o “pecado original” da negritude. A polícia do amigo delegado chegou em minutos. Terminado o baile e acesas as luzes, lá estava a bolsa, distraidamente caída sob a mesa do figurão. Mais por remorso pela acusação injusta do que por dever jurídico, liga ao delegado para dizer que “tudo fora um engano”. A resposta veio em cima: “Agora não dá mais. O homem já confessou tudo!”

A piada já não tem graça. A tortura está no ar e não tem graça nenhuma.

A história da Humanidade é contada com bravuras e heroísmos em que morticínios são números de rodapé. Tortura com cores fortes e na língua original rende milhões, comprova Mel Gibson.

O julgamento de Nuremberg ignorou os massacres de Stálin. O mesmo rigor contra os nazistas não se viu décadas depois sobre a barbárie francesa na Argélia.

A civilização ocidental herdou dos mundos grego, judaico, romano e babilônico a idéia de “combater o mal com o mal”. Sem muitos recuos no tempo, Tomás de Aquino era incisivo aos adversários da fé: “Se os malfeitores são justamente enviados ao patíbulo pelos poderes seculares, com muito mais razão deveremos não somente excomungar, como também privar da vida os hereges” (Summa Theologica, 2.2, ques. II, art. 2).

A colonização brasileira coincide com o recrudescimento dos métodos da Inquisição na Europa. Não tivemos nenhum de seus tribunais, embora seus comissários tenham estado por aqui em suas visitações, o que explica a indignação do padre Antonio Vieira às técnicas de interrogatório e execução de penas que muitos jesuítas denunciavam em Portugal.

É nesse Brasil colonial que a tortura vem a reboque do regime escravocrata que marcou a política de expansão do capitalismo comercial. Mesmo que no século 19 os ingleses patrocinassem as insurreições abolicionistas nas colônias ibéricas, ninguém lhes opunha o quanto tinham espoliado na mão-de-obra escrava nas Índias e no Extremo Oriente. A escravidão legitimava a tortura dos senhores contra os escravos, afinal estes eram simples “coisas” para as Ordens do Reino, ou “criaturas sem alma” no discurso da catequese.

Em todas essas passagens a prática da tortura tinha fundamentação legal. Tanto a lei do Estado quanto os códigos de processo canônico autorizavam o castigo do senhor ao escravo e a coação do inquisitor ao herege. Ferro em brasa, chumbo derretido no ouvido e na boca, deglutição de excrementos e urina constavam no Livro das Sentenças da Inquisição do padre dominicano Bernardus Guidonis (1261-1331), que virou personagem em O Nome da Rosa. A tortura se justificava com a proteção de valores maiores: a pureza da fé e a proteção do poder econômico e político.

A crítica iluminista trouxe abaixo o que se tinha como obra da divindade ou desígnio do destino. Os homens, por nascerem iguais, devem ser livres. A Declaração dos Direitos do Homem, entretanto, foi insuficiente a repudiar a tortura, tanto que os jacobinos a sofisticaram para espetáculos de entretenimento da massa, algo muito próximo do que se vê na programação vespertina da televisão brasileira.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é nossa referência mais próxima de condenação à tortura. Quase quarenta anos depois, a Assembléia Geral da ONU aprovou a Convenção contra a Tortura (1984), pela qual cada país signatário se obrigava a criar mecanismos jurídicos internos para a repressão à tortura. Embora a Constituição de 1988 já consagrasse a prática de tortura como crime imprescritível (aquele que o tempo não apaga), só alguns anos mais tarde o Congresso editou lei específica. Os tribunais brasileiros refletem assim a lenta evolução legislativa transnacional e interna sobre o assunto, daí por que só nesta década surjam os primeiros condenados, a maioria policiais. É irônico que a violação de um dos direitos fundamentais da pessoa humana venha de quem tem como profissão o dever de reprimi-la.

Neste momento em que os olhares do mundo se voltam à exibição de atos de tortura como normalidade num quadro de retaliação contra o inimigo invisível do terrorismo, prefiro um otimismo não tanto panglossiano, mas forjado na indignação que enleva a opinião pública. Foi graças a ela que o mundo reagiu à fotografia da menina desnuda que fugia das bombas de napalm nos campos do Vietnã. Foi só assim que a Europa dita civilizada se incomodou com a limpeza étnica dos Bálcãs.

A utopia de um mundo que repudie a tortura não parece distante. Num julgamento de outubro passado, o Tribunal da ONU para os Crimes na ex- Iugoslávia condenou um prefeito sérvio que acobertava torturas de civis ao fundamento de que era dever seu “providenciar cárcere apropriado para evitar que cidadãos não-sérvios fossem tratados de modo cruel e desumano” (Caso Bosanski Samac, IT-95-9, § 1005). Aí está um exemplo da responsabilidade criminal para administradores de presídios e delegacias do resto do mundo. Outro tribunal da ONU emitiu na semana passada ordem de prisão contra o ex-comandante do massacre de timorenses em 1999. O general é forte candidato à presidência da Indonésia e o juiz é um americano que me sucedeu na Corte em Timor Leste. É irônico que os EUA, pátria do juiz e aliado incondicional de Jacarta, repudiem os tribunais internacionais e mantenham prisioneiros sem julgamento em Guantánamo.

A História se faz de ironias e utopias. A Igreja das masmorras séculos mais tarde se converteria em voz dos torturados do regime militar no mesmo Brasil dos açoites. Talvez por causa do mesmo remorso do figurão do baile. Ou pela utopia de que, algum dia, toda tortura será castigada – mesmo a dos vencedores.

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