Desprezo à legislação

Direitos individuais constitucionais têm sido postos à margem

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7 de junho de 2004, 15h05

Durante a posse do Ministro Maurício Corrêa na presidência do Supremo Tribunal Federal, o presidente do Conselho Federal da OAB, Rubens Approbato Machado, teceu críticas severas à política do governo. Agora, enquanto Nelson Jobim era empossado em substituição a Maurício Corrêa, foi a vez de Roberto Busato criticar o presidente da República, centrando a censura na pequenez do salário mínimo.

No entrevero, Luiz Inácio ficou quieto, porque o protocolo o impedia, mas Nelson Jobim deu o troco, afirmando que “só os desalentados se entregam ao discurso e à retórica e não querem enfrentar com lucidez o desenvolvimento da nação e as melhorias para os avanços e a inclusão que estão sendo feitas por este governo”.

Dentro do debate democrático é tudo muito edificante, porque a OAB deve preocupar-se com a fome do povo e o presidente do STF não pode deixar em branco o ataque a quem, no fim das contas, é o chefe do Poder Executivo.

Aliás, até poderia fazê-lo, mas não quis, dando demonstração certa da não antipatia entre o Poder Executivo e a cúpula do Poder Judiciário. Entrecruzando-se nisso, resta saber se segmentos da magistratura devem ou não intrometer-se na política externa, sabendo-se que dentro da Jurisdição hão de ser desovados, em arredondamento, os grandes debates atinentes a aspectos delicadíssimos da arte de governar.

Sabe-se, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, de certa época a esta data, começa a desempenhar papel importante nas refregas políticas, com seus onze integrantes dando, seguidamente, opiniões sobre os temas que fazem a angústia dos economistas, dos banqueiros em geral e dos entendidos em finanças públicas.

Tudo isso se faz ainda antes de provocações objetivas à manifestação da Suprema Corte, trazendo perplexidade àqueles que tinham, no juiz, a imagem pétrea de imutável equilíbrio. Na medida em que o Supremo Tribunal Federal desenvolve essa função entremeada de manifestações ligadas à politéia, os juristas clássicos são colhidos por uma imensa dose de perplexidade, porque os analistas, postos frente a uma dessas questões tormentosas, começam a fazer as contas, procurando saber quanto adeptos, entre os onze, teria um ou outro segmento partidário.

Assim, Fernando Henrique teria nomeado três, Lula outros três, Collor quatro, Sarney cinco e Itamar um. Abrindo-se outra vaga, será ocupada por Eros Grau, seguramente excelente advogado paulista e profissional inatacável, quer por seus méritos morais, quer pela cultura jurídica que soube difundir.

Se assim fosse, ou seja, se o Supremo Tribunal Federal fosse assemelhado a um time com várias cores, ter-se-ia uma baderna, mas de certa forma inteligível, porque já se saberia antecipadamente qual o destino de cada jogo.

Felizmente não é assim, porque o juiz, uma vez nomeado, deixa o cordão umbilical que o prendia ao padrinho, passando a respirar seu próprio oxigênio. Assim deve ser. Reflita-se, apesar disso, na tristeza com que os velhos artífices do contraditório examinaram o último contraste verbal entre o presidente da OAB e o novo presidente do Supremo Tribunal Federal, um falando da falta de pão e o outro sugerindo que o alimento virá, bastando apenas ter confiança e esperança no futuro do país.

Tocante a esse ponto de divergência, vale lembrar que não só de pão vive o homem. O ser humano precisa satisfazer o estômago e necessita, também, de uma boa porção de segurança quanto à liberdade, pois o Brasil não é um país em que o cidadão deva transformar-se em um apático e cevado escravo.

Em suma, o presidente Busato e o Ministro Jobim, ambos respeitadíssimos por um passado repleto de lutas, os dois angariando forças no sul do país, não tiveram tempo de relembrar um ponto fundamental.

O Brasil, com ou sem projeções alvissareiras, está a se transformar numa nação em que as garantias e os direitos individuais assegurados na Constituição têm sido postos à margem, com imenso desprezo à legislação vigente. Dentro do contexto, destruídas a ferro e fogo as prerrogativas dos advogados, sobreleva o medo.

Aos juízes tem faltado a coragem indispensável à prevalência da lei fundamental. E não se diga que o apontamento de tal problema se faz na tentativa de proteção de privilégios advindos do estatuto da advocacia.

É exatamente o oposto: quando se enfraquece o advogado, é destruído o direito do cidadão. Nessa medida, melhor seria o aplauso ao presidente Busato por ter defendido o pão do povo, mas igualmente importante teria sido lembrar ao Supremo Tribunal Federal que aquela Corte é, no país, um quase solitário bastião de resguardo de prerrogativas envolvendo o direito de ir, de vir, de ficar, de ter o cidadão seus bens protegidos, seu lar preservado, sua honra reforçada, sua boa-fama mantida dentro da sociedade, tudo em função de pressuposto do estado de inocência.

Dentro de tal contexto, mal vai o direito protetivo, deixando-se à repressão o livre movimento em parceria com rede de televisão que, só a título de exemplo, prepara, com exclusividade, armadilhas mil, pondo-as a lume, depois, com a vaidade e orgulho de ser a única a envilecer os perseguidos, independentemente da inocência ou culpa destes últimos.

Coisa feia, presidente Busato; coisa horrível, Ministro Jobim. O povo quer pão. Os advogados querem liberdade e garantia para que o povo possa comer seu pão em paz. Aqui, não se cuidaria do “pão e circo”, mas do trigal e da liberdade. Há os que preferem a fome e até perdem a vida para poderem deambular. Eis aí, presidente Busato. Logo, nosso irmão Eros Grau tomará posse. Será outra oportunidade. Hoje falamos do centeio. Amanhã falaremos das algemas deixadas em ferrete nos pulsos de nossos processados e expostas, sem pejo, à lapidação televisiva. É uma boa idéia.

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