Má-fé

Justiça de MS anula homologação de acordo trabalhista fraudulento

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26 de julho de 2004, 9h10

O Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso do Sul anulou acordo judicial entre uma trabalhadora e a empresa JV Representações e Comércio. Os juízes entenderam que a empregada foi coagida a assinar o acerto, sob a ameaça de ser demitida.

Segundo o TRT-MS, a empregada, que trabalhou como vendedora na empresa de 1993 até 2002, ingressou com ação rescisória junto à 1ª Vara do Trabalho de Campo Grande. Ela alegou que, na ocasião do acordo, a reclamação trabalhista foi ajuizada pela própria empresa, em seu nome.

Na época, a ação foi ajuizada para acertar valores de verbas trabalhistas que não vinham sendo pagos. A trabalhadora afirmou que foi pressionada a aceitar R$ 2.100, valor inferior ao que teria direito.

Ela afirmou, ainda, que só conheceu a advogada que patrocinou a sua causa no dia da audiência e que os honorários foram pagos pela empresa.

O relator da atual ação da trabalhadora, juiz Nicanor de Araújo Lima, afirmou que ficou clara — pelos depoimentos de ex-funcionários da empresa, que disseram também terem sido vítimas de pressões do empregador — a fraude na assinatura do acordo.

“Os documentos juntados aos autos demonstram que é praxe do grupo econômico a que pertence a Reclamada simular acordos nesta Justiça Especializada para se eximir do pagamento dos direitos trabalhistas de seus empregados, o que ocorreu também na hipótese dos autos, ensejando a rescisão da sentença para anular integralmente o processo simulado”, registrou.

Como conseqüência da fraude, o relator condenou a empresa ao pagamento de multa por litigância de má-fé, equivalente a 1% sobre o valor da ação.

O Ministério Público do Trabalho no estado requereu cópia de aproximadamente 30 processos envolvendo a empresa, que tramitam nas varas do trabalho da capital. O objetivo é apurar se há irregularidades também nesses casos.

Leia a íntegra do acórdão

A C Ó R D Ã O

Relator: Juiz NICANOR DE ARAÚJO LIMA

Revisor: Juiz MÁRCIO VASQUES THIBAU DE ALMEIDA

Autora: HONORINA AGUILLERA

Advogados: Antônio Pionti e Outro

Réu: JV REPRESENTAÇÕES E COMÉRCIO LTDA

Advogada: Marleide Georges Karmouche

Origem: Protocolo Geral TRT da 24ª Região

AÇÃO RESCISÓRIA – ACORDO JUDICIAL – FRAUDE SOB COAÇÃO. O ajuizamento de ação pelo empregador com fim único de obter quitação em juízo de direitos trabalhistas, ainda mais quando provado que exerceu sobre o empregado coação para formalizar acordo, dá ensejo à rescisão da sentença diante da evidente fraude perpetrada pelo coator.

HONORINA AGUILLERA ajuizou a presente ação res-cisória em face de JV REPRESENTAÇÕES E COMÉRCIO LTDA, visando desconstituir a sentença homologatória do acordo firmado nos autos da ação trabalhista de nº 0748.01/2001, da 1ª Vara do Trabalho de Campo Grande – MS, da lavra da MMª Juíza Ivete Bue-no Ferraz de Moura.

Alega a autora vício de vontade e consentimen-to, pois, para garantir a continuidade do seu contrato de tra-balho, foi coagida pela empresa a aceitar a ação trabalhista e firmar acordo em valor que, somente agora, soube ser muito in-ferior ao que realmente teria direito. Ao pedido de rescisão, cumulou o de novo julgamento da causa.

Documentos juntados às f. 13-92.

O réu contestou às f. 101-120, argüindo, preliminarmente, a extinção do feito por ausência de certidão do trânsito em julgado da sentença. No mérito, tendo alegado que as provas carreadas pela autora não demonstram os fatos narrados na inicial, pugnou pela improcedência do pleito rescisório. Trouxe aos autos, ainda, os documentos de f. 121-147.

Às f. 150-154, a autora manifestou-se acerca da contestação e dos documentos juntados pela ré, ratificando os termos da inicial. Na oportunidade, juntou os documentos de f. 155-222.

A ré, às f. 225-226, manifestou-se a respeito da impugnação à contestação e documentos carreados pela autora.

Intimadas as partes para especificarem as pro-vas que pretendiam produzir (despacho de f. 227), a autora, de forma genérica, manifestou a pretensão de produzir provas tes-temunhais, documentais e periciais (f. 228). Intimada para for-necer o rol de testemunhas, esclarecer acerca do requerimento para perícia e objetivo da prova requerida à f. 228, a autora quedou-se inerte. Por essa razão, mediante o despacho de f. 231v, a produção genérica de provas por ela requerida foi inde-ferida.

Os autos foram, então, encaminhados ao Ministé-rio Público do Trabalho, que, em razão da grave natureza dos fatos narrados na inicial, pugnou pela reabertura da instrução (f. 238).

Ante a relevância dos fatos expostos pelo Ministério Público do Trabalho e a teor do disposto no art. 765 da CLT, a instrução foi reaberta, tendo sido delegada competên-cia ao Juízo da 5ª Vara do Trabalho de Campo Grande (f. 241 e 254).


Na audiência que se realizou naquele juízo (f. 321), as partes acordaram, e o Ministério Público solicitou, a juntada de cópias das atas de audiência dos Processos n. 00091/2003-000-24-00-3-AR.0 e 1784-2003-003-24-00-2, em que foi ouvida a autora, bem como as testemunhas por ela arroladas, e cujas matérias são semelhantes a discutida na presente ação (f. 323-330).

Razões finais da autora às f. 370-372 e da ré às f. 373-374.

Mediante parecer de f. 388-395, o Ministério Público do Trabalho opinou pelo cabimento da ação, pela proce-dência do pedido da inicial para desconstituição da sentença homologatória do acordo, pela condenação da empresa ré ao paga-mento das custas processuais e por litigância de má-fé. Alter-nativamente, pugna seja proferido novo julgamento da ação tra-balhista ajuizada, julgando-se extinto o processo, sem aprecia-ção do mérito, atendendo ao imperativo inscrito no art. 129 do CPC.

É, em síntese, o relatório.

V O T O

1 – CABIMENTO

Pugna a ré pelo não-cabimento da ação rescisó-ria, por ausência da certidão do trânsito em julgado da decisão rescindenda.

Considerando, contudo, que a decisão atacada pela autora (cópia constante à f. 22) é homologatória de acor-do, o trânsito em julgado ocorreu na audiência em que houve a homologação, no caso, 08-08-2001.

Assim, ajuizada a ação em 15-05-2003, dentro do biênio decadencial do art. 495 do CPC, portanto, fundada no in-ciso III do art. 485 do CPC (fundamentos para invalidar a con-ciliação), bem como presentes os demais pressupostos, afigura-se cabível a rescisória.

2 – MÉRITO

2.1 – ACORDO – VÍCIO DE CONSENTIMENTO E VONTADE – FRAUDE

A decisão rescindenda (f. 22-23), prolatada pela 1ª Vara do Trabalho de Campo Grande no processo n° 748/01, homologou o acordo firmado entre as partes, no sentido de que a ré pagaria à autora, no ato, a importância de R$ 2.100,00. As partes declararam, também, que o valor do acordo correspondia, integralmente, a verbas de natureza indenizatória e que, após o cumprimento do acordo, a autora daria quitação quanto ao objeto do pedido e pela extinta relação jurídica entre as partes.

Na presente ação rescisória, a autora alega, contudo, vício de vontade e consentimento, pois foi coagida pela empresa a firmar acordo, sob pena de ser despedida, tendo a ré, de forma fraudulenta, ajuizado a ação trabalhista em seu nome. Além disso, somente agora descobriu que o cálculo efetua-do pelo contador da empresa (documento de f. 24), era muito su-perior ao valor que lhe foi imposto pela ré no acordo.

Insta frisar, inicialmente, que o acolhimento do pleito rescisório fundado no inciso VIII do art. 485 do CPC, pressupõe a clara demonstração da presença de erro, dolo, coa-ção, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores por par-te de uma ou de ambas as partes (vícios de consentimento capi-tulados nos art. 171, II e 849 do Código Civil/2002).

No caso, o equívoco na avaliação dos benefícios do acordo por parte da autora não caracteriza vício de consen-timento.

Contudo, como bem observou a Procuradoria do Trabalho, a instrução da presente ação demonstra que é praxe da ré simular e patrocinar ações trabalhistas de seu empregados, que, sob pena de perderem seus empregos ou não serem contrata-dos para trabalhar em outras empresas pertencentes ao sócio proprietário da ré, são coagidos a firmar acordos.

Com efeito, as testemunhas inquiridas, com firmeza e de forma unânime, confirmaram a afirmação da autora no sentido de que conheceram a patrona de suas causas, Ivone Tege Alves, somente no dia da audiência de conciliação e que quem contratou e pagou os honorários desta foi a ré. Declarou a au-tora da ação rescisória n° 0091/2003-000-24-00-3, Anamaria Allen, que “ficou conhecendo a advogada Ivone Tege Alves no dia da audiência da sua reclamatória trabalhista, não tendo ido ao escritório dela” (f. 323). As testemunhas Eronildo Maurício e Ricardo Ferreira, ouvidas naquele feito, declararam, respectivamente, que “a reclamação trabalhista que culminou com o acordo foi patrocinada por uma advogada contratada pela ora ré; que não sabe o nome da advogada, a qual só viu no dia da audiência; (…)que os honorários advocatícios da advogada foram pagos pela empresa, inclusive pelo trabalho de ajuizamento de ações trabalhistas para outros empregados; (…)” (f. 325) e que “a ré providenciou advogada para o depoente, a qual só veio a conhecer na data da audiência” (f. 325).

O depoimento dos referidos empregados demons-tram, ainda, que os acordos foram firmados como condição indispensável à permanência no emprego. Anamaria Allen declarou que “fez o acordo com a ré a pedido do Sr. Wanderley Amado; que o patrão prometeu que depo-ente continuaria empregada noutra empresa de sua propriedade, a Renascença Veículos” (f. 323) e que aceitou a proposta “por medo de perder de vez o emprego; (…) que se trata de um acordo efetivamente. Mas que a empresa pressionou no sentido de que se não aceitassem as condições, seriam demitidos” (f. 328).


Eronildo Maurício disse que “celebrou acordo judicial, mas continuou em atividade até 2003; (…) que se sentiu obri-gado a fazer o acordo, pois poderia perder o emprego” (f. 325). Ricardo Ferrei-ra confirmou que o dono da ré propôs-lhe que “fizesse um acordo de pendências passadas, e lhe apresentou o valor que entendia ser o correto. E disse ao depoente que, se não fizesse o acordo, era para procurar o rumo” (f. 325), tendo declara-do, ainda, que, “apesar do acordo (…) continuou em atividade por mais cinco meses, daí em diante passando a atuar em vendas externas” (f. 329).

Diante de situação análoga a que exsurge do contexto probatório dos presentes autos, pronunciou-se o Colen-do TST:

AÇÃO RESCISÓRIA AJUIZADA COM FUNDAMENTO NOS INCISOS III E VIII DO ART. 485 DO CPC – SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE ACORDO – RECLAMATÓRIA SIMULADA, COM COAÇÃO PARA FIRMAR O ACORDO. Não é possível ocorrer dolo da parte vencedora em prejuízo da parte vencida quando a decisão res-cindenda é uma decisão homologatória de acordo, em que não há parte vencedora nem parte vencida (OJ 111 da SBDI-2 do TST).

Por outro lado, o acolhimento de pleito de corte fundado no inciso VIII do art. 485 do CPC pressupõe que tenha havido clara remissão a um dos víci-os de consentimento, subjacente à decisão homologatória, na confor-midade do disposto nos arts. 171, II, e 849 do novo CC. Impõe-se, portanto, seja demonstrada a presença de dolo, coação ou erro essen-cial quanto à pessoa ou coisa controversa por parte de algum ou de ambos os personagens envolvidos no negócio jurídico. “In casu”, restou comprovado que o Reclamante foi coagido, pois se não aceitasse o acordo imposto pela Reclamada, seria demitido, sem contratação por outra empresa do mesmo grupo econômico. Por outro lado, os documentos juntados aos autos demonstram que é praxe do grupo econômico a que pertence a Reclamada simular acordos nesta Justiça Especializada para se eximir do pagamento dos direitos trabalhistas de seus empregados, o que ocorreu também na hipótese dos autos, ensejando a rescisão da sentença para anular integralmente o processo simulado.

Com efeito, o Poder Judiciário examina lides e tenta conciliá-las ou solucioná-las. Se não havia conflito, não havia fundamento para se co-locar em funcionamento a máquina judiciária estatal, já assoberbada pela quantidade descomunal de processos que recebe. Ajuizar recla-matória com o exclusivo intuito de obter a quitação plena dos direitos dos trabalhadores é perpetrar simulação, incompatível com a boa-fé que deve pautar a conduta daqueles que vêm ao Judiciário postular a solução de seus conflitos. Recurso ordinário desprovido. (Processo ROAR n° 67930-2002-900-04-00 – Órgão Julgador: Subseção II Especializada em Dissídios Indivi-duais – Relator: Ministro Ives Gandra Martins Filho – in DJ de 01-08-2003).

Assim, provado que a ação foi simulada e que a autora foi coagida a firmar o acordo, dou provimento à ação rescisória para anular a sentença homologatória do acordo.

Reconhecida a ocorrência de fraude sob coação, atendendo ao imperativo inscrito no art. 129 do CPC, extingo a ação trabalhista sem julgamento de mérito, nos termos do art. 267, V do referido diploma legal.

Ainda em face do reconhecimento da fraude sob coação, condeno a ré ao pagamento de multa por litigância de má-fé, equivalente a 1% sobre o valor dado à referida ação, nos termos dos artigos 17, II, c/c 18, do CPC.

3 – C O N C L U S Ã O

Isso posto, admito a ação rescisória e, no mé-rito, julgo-a procedente para anular a sentença homologatória do acordo judicial.

Extingo a ação trabalhista sem julgamento do mérito, nos termos do art. 267, V do CPC e, de ofício, condeno a ré ao pagamento de multa por litigância de má-fé, equivalente a 1% sobre o valor dado à referida ação.

Custas pela ré, no importe de R$42,00 (quarenta e dois reais), calculadas sobre o valor dado à causa.

É o meu voto.

Nicanor de Araújo Lima

Juiz Relator

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